Deformações perspectivas entre Índia e Brasil

“Brasil e Índia têm pouco em comum do ponto de vista da suas formações históricas e culturais. Não temos castas, não fomos colonizados por ingleses, não temos um passado ancestral de invasões muçulmanas e mongóis, nem nos formamos em uma cultura da sabedoria politeísta com 33 milhões de divindades. Mas há uma espécie importante de homologia que podemos propor para esses dois países: lá e cá notamos a ausência seletiva do Estado, a tolerância seletiva do assassinato de minorias e da corrupção, compreendida como forma de gestão política.”

Christian Ingo Lenz Dunker, no Blog da Boitempo

Brasil e Índia têm pouco em comum do ponto de vista da suas formações históricas e culturais. Para além da narrativa de que fomos descobertos como um desvio da rota portuguesa para as Índias, há uma espécie importante de homologia que podemos propor para esses dois países. Lembremos que a analogia requer uma função ou origem semelhante, ao passo que a homologia nos mostra soluções diferentes para problemas semelhantes. Não temos castas, não fomos colonizados por ingleses, não temos um passado ancestral de invasões muçulmanas e mongóis, nem nos formamos em uma cultura da sabedoria politeísta com 33 milhões de divindades. Mas lá e cá notamos a ausência seletiva do Estado, a tolerância seletiva do assassinato de minorias e da corrupção, compreendida como forma de gestão política.

Somos o país do namoro, da exuberância sexual e da ausência de pudor ou constrangimento, ao passo que em qualquer cidade indiana andar de mãos dadas na rua, ainda que seja com a sua esposa é algo entre o vexaminoso e o deselegante. Não se trata de enaltecer os bons e velhos tempos pré-civilizatórios onde a comunidade orgânica entre as pessoas e a democracia racial resolvia nossas diferenças entre famílias ou entre jagunços, mas a experiência real que desnaturaliza nossa conformidade. Lá e cá há uma cultura do estupro.

O trânsito lá é caótico, com vacas caminhando por estradas de alta rodagem, tuk-tuks (uma espécie de triciclo motorizado) ultrapassando por todos os lados, junto com rick-chás (triciclos movidos por uma bicicleta), motos com sus típicas mulheres na garupa sentadas de um lado só (sem abrir as pernas), carros e caminhões enfeitados como se fossem elefantes. Isso tudo acontecendo junto e misturado com pedestres. Muitas pessoas, andando nas ruas em franca desobediência a faróis, mãos de tráfego, preferenciais ou filas. Aliás, o conceito de fila indianaparece uma contradição em termos inventada por brasileiros ou portugueses desesperados. Apesar disso, tudo funciona. Ou melhor, tudo não funciona muito bem, e mesmo assim todos chegam aos seus lugares. Não há gritos como na Turquia, nem xingamentos como na Itália. Não se vê acidentes, que evidentemente devem acontecer. Na traseira dos veículos nota-se um obsequioso: “Buzine, por favor”. As vacas, inconcebíveis para um paulista de ventre e alma, são uma espécie de aviso moral de que existe outro tipo de temporalidade, que independe de seu acelerador ou da morosidade alheia. Tudo funciona, se todos conseguem manter 40 quilômetros por hora. Lá e cá não há como dar razão a Doria.

Há lá uma notória ausência do Estado na vida das pessoas comuns. Isso torna-se ainda mais gritante quanto se observa que apesar da miséria, da sujeira e da desordem isso não avança para um sentimento de insegurança social. Pobreza e crime não são fatos naturalmente ligados entre si. A experiência da pobreza difere, subjetiva e objetivamente, do que Freud chamava de miséria neurótica. Andei por favelas em Nova Deli e por cortiços em Pondecherry, nos quais jamais poderia pisar, sozinho ou acompanhado, se penso em seus equivalentes em São Paulo. Não havia intimidação ou respeito porque estivéssemos protegidos por um nativo investido de autoridade, mas uma grande curiosidade com a existência de um estrangeiro naquelas condições. Pediam para tirar fotos com minha filha como se fossem eles os turistas. Talvez seja essa a melhor definição possível de empatia: tornar-se hóspede em sua própria morada.

O exército revistava carros que se aproximavam dos hotéis. Os pontos de embarque nos aeroportos envolviam 10 a 15 encarregados por inspeções nos passageiros e certos templos tinham acesso vetado por temor de ataques terroristas. Olhando de fora, tudo isso combinava com as vacas andando nas ruas, de forma lenta, ritual e ineficiente. Ninguém disposto a fazer algo de errado cairia nas defesas militares indianas. O exército, por toda parte malemolente, transformou-se em um grande cabide de empregos. Lá e cá fica difícil dar razão a Bolsonaro.

Uma pesquisa recente sobre como diferentes países percebem aspectos da sua própria realidade revela uma série de convergências entre a percepção social dos brasileiros e a dos indianos, a começar pelo fato de que ambos manifestam certa tendência a achar que as coisas estão piores do que efetivamente estão.

Achamos que o número de homicídios cresceu muito desde 2000. A percepção social diz que este crescimento é de 76%, segundo os brasileiros, e de 60% de acordo como os indianos. Na verdade os dados indicam que estamos no mesmo patamar desde 2010, ao passo que para os seguidores de Brahma, Vishnu e Shiva a taxa desceu 29%. Quando o assunto é a percepção exagerada do aumento do terrorismo, verifica-se essa mesma tendência de se piorar, no imaginário social, a realidade.

Quando o assunto é saúde, Brasil e Índia estão juntos na crença de que somos muito mais doentes do que a realidade está disposta a confessar. Tomando a diabete por termômetro a cifra é: tanto brasileiros ou indianos acham que 47% da população sofre de diabete nos respectivos países. Mais uma vez a realidade é semelhante: 10% na real para nós e 9% para os filhos de Gandhi.  Ocorre que esta percepção ampara mudanças na saúde. O recém saído ministro da Saúde cortou custos em medicina de maior complexidade baseado no fato de que é preciso alcançar o maior número de pessoas que sofrem de doenças circulatórias e de diabete, deixando a saúde mental e a oncologia à própria sorte. Veja-se que é isso o que significa “redução do Estado”: menos saúde, educação e segurança. Lá é cá é difícil dar razão a Alckmin.

A pesquisa mundial sobre a leitura que as pessoas têm de sua própria realidade social traz dados interessantes para os que se interessam pelas narrativas de sofrimento. Tradicionalmente, pensamos que aumentar a gravidade da situação é um forte estímulo para desencadear nosso desejo de transformação. Segundo essa teoria, no limite, a revolta advém de condições subjetivamente insuportáveis de vida, combinada com a percepção coletiva e organizada sobre as causas modificáveis do problema. É assim que o sofrimento foi, desde sempre, um fator politico importante. Contudo, muitas vezes o exagero da situação concorre exatamente para que nos desincumbir de tomar uma providência. O exagero melancoliza as pessoas produzindo uma espécie de consenso baseado na impotência. O limite desse exagero é justamente a consideração do caráter nacional, da essência de um povo ou de sua disposição “natural”.  No limite, isso nos leva a deflacionar o valor da própria vida, seja ela a nossa própria, seja ela a dos que nos cercam.

Essa imagem deteriorada de nos mesmos aparece, por exemplo, na estimativa, para 49% dos brasileiros, que nós estamos no pódio do consumo mundial de álcool, quando na verdade estamos em vigésimo primeiro lugar. Contrariamente, apenas 25% de indianos percebem o país entre os três que mais bebem no mundo, quando na verdade estão em 31o lugar. Talvez aqui esteja uma das chaves da homologia que estamos propondo. Se objetivamente apresentamos índices de pobreza, desenvolvimento humano e distribuição de riquezas semelhantes aos indianos, nossa percepção de quem somos é muito diferente da deles. Isso vale para nossa imagem da extensão da gravidez adolescente e ainda do número de suicídios. Achamos que 48% de nossas adolescentes engravidam, quando na verdade são 6.7%. Os indianos acham que são 26% enquanto na realidade são 2.3%. Nós pensamos que a taxa de suicídio entre 15 e 24 anos é de 39%, quando na realidade é de 4.3% para mulheres e 3.3% para homens.

No índice geral de percepção equivocada, o Brasil está em segundo lugar e a Índia em quinto. Aqui há um fator diferencial muito importante.  Enquanto os indianos são os mais convictos do mundo quando se trata achar que entendem e percebem corretamente a sua própria realidade, os brasileiros ocupam um modesto 18o posto. Pelo menos há uma razoável percepção da precariedade de nossa auto-percepção.

Não sabemos como o Brasil é e do que ele é feito, e isso tende a afetar demasiadamente o peso proporcional da nossa experiência de sofrimento em nossa teoria da transformação. Se pensamos que estamos muito pior do que estamos, exigimos grandes viradas e reformulações drásticas. Não nos contentamos com pouco, ainda que esse pouco seja realmente significativo. Vale dizer que o discurso que desqualifica genericamente o brasileiro – por exemplo, vinculando a corrupção a uma espécie de endêmica falta de caráter, atribuindo-nos defeitos de origem ou subqualificações de essência – não apenas reforça preconceitos contra minorias, que são o alvo preferencial para sintetizar imaginariamente tais deficiências, como confirma a impotência que mantém as coisas como estão.

A Índia é hoje governada por um primeiro ministro de origem delit, ou seja, da casta dos párias ou intocáveis – algo até pouco tempo atrás impensável. Ela caminha, lenta como uma vaca sagrada, para ocupar nosso lugar entre os Brics. Investindo fortemente na educação das mulheres, ainda hoje excluídas seriamente das escolas e dos espaços públicos em geral, ela enfrenta níveis mórbidos muito acima de corrupção hospitalar brasileira. Enquanto isso, nós estamos a desejar grandes solavancos, para frente e para trás, expurgamos nosso representante popular da política, instrumentalizamos nossa iniquidade de renda e flertamos com mais ressentimento social, mais prisões e mais evasão política.

*Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP.

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