Provimento 71: Controle ideológico e amordaçamento contra juízes no CNJ

Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue[1]

Por Valdete Souto Severo, no Justificando

Um dos principais sintomas do autoritarismo é a preocupação com a linguagem, com a expressão de pensamentos que não reproduzam a ideologia dominante. E, consequentemente, a perseguição a quem pensa diferente.

É que a força da linguagem pode promover uma revolução. Para o bem e para o mal. Chamar empregado de colaborador ou usar o termo “desligar” ou “dispensar” para a cessação da relação de emprego, tem a força de obscurecer o caráter de oposição de interesses e de exploração que identifica essa relação jurídica. Dizer que entre sindicatos ou entre sindicato e empresa ocorre negociação coletiva é outro modo poderoso de naturalizar a renúncia a direitos fundamentais em uma prática construída e justificável historicamente apenas sob a perspectiva da tensão do trabalho sobre o capital e, portanto, da conquista de mais direitos. Referir-se à “rescisão unilateral” ou à “denúncia imotivada do contrato” são formas potentes de disfarçar a violência simbólica e real ocasionada pela perda do posto de trabalho em uma sociedade na qual trabalhar não é escolha, mas modo de sobrevivência física.

As palavras têm força.

A força da violência simbólica das palavras não assusta quem detém o poder. Ao contrário, é poderoso instrumento de dominação, através do disfarce, do eufemismo, mas também de prescrições contidas em texto de lei, regulamentos, provimentos.

O viver democrático permite, porém, que a dominação seja denunciada também com palavras que identificam quem rasga a Constituição, elogia a tortura, nega a participação pelo voto, suprime direitos fundamentais como o de presunção de inocência ou o direito de greve.

“Dar nome aos bois”, como propôs o amigo Jorge Luiz Souto Maior, em palestra proferida anos atrás na cidade de Salvador, é um exercício essencial à formação do conhecimento humano e não poderá se tornar um “ato de coragem”. Quando isso ocorre, é porque a lógica democrática foi rompida.

Em tempos de exceção autoritária, defende-se “escola sem partido”, “país sem política” e “juiz sem juízo” (de valor). Ora, o juiz, como qualquer ser humano, toma partido. E não falo, obviamente, de partido político. Refiro-me à participação na vida política. Refiro-me a tomar partido diante de situações de injustiça.

O medo de palavras como “golpe” ou “inconstitucionalidade” já está presente há tempo. A perseguição a quem pensa diferente é já uma realidade, basta lembrar o episódio dos Quatro de Copacabana.

Esta semana, fomos surpreendidos com o Provimento n. 71 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Juízes não devem fazer política partidária, é o que diz a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), que é de 1979. Uma lei editada durante o período de Ditadura civil-militar, enquanto ainda vigia o AI-5.

A revisão da LOMAN, para adaptá-la aos tempos democráticos em que hoje deveríamos estar vivendo, sequer é cogitada. Pelo contrário.

O Provimento 71 do CNJ, publicado no último dia 13 de junho, proíbe juízes e juízas de expressarem suas convicções pessoais em “manifestação pública que caracterize, ainda que de modo informal, atividade com viés político-partidário”. Apesar de assegurar o direito de manifestação contra “ideias, ideologias, projetos legislativos, programas de governo, medidas econômicas”, veda “ataques pessoais a candidato, liderança política ou partido político com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública, em razão de ideias ou ideologias de que discorde o magistrado, o que configura violação do dever de manter conduta ilibada e decoro”. Determina que os magistrados e magistradas ajam “com reserva, cautela e discrição ao publicar seus pontos de vista nos perfis pessoais nas redes sociais”.

Curiosa a preocupação com o “viés político partidário” em ano eleitoral marcado pela ameaça da impossibilidade de concorrência por parte de Luiz Inácio Lula da Silva, que figura entre os principais destinatários das intenções de voto, mas que está preso há quase 70 dias, sob acusação questionada por juristas de todo o país[2]. E justamente quando o pleito se avizinha e aumentam o número de atos denunciando o que boa parte da comunidade jurídica brasileira qualifica como golpe à Democracia.

Ao final, o Provimento 71 contém a determinação de que as corregedorias dos tribunais deem “ampla divulgação ao presente provimento” e fiscalizem seu efetivo cumprimento mediante atividades de orientação e fiscalização, sem prejuízo da observância de outras diretrizes propostas pelos respectivos órgãos disciplinares”.

E estende essas determinações aos servidores. Os mesmos servidores que foram surpreendidos, no mesmo dia 13 de junho, com uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) considerando constitucional Decreto do Estado da Bahia (Decreto 4.264/95) que determina, em caso de movimento paredista, sejam os grevistas convocados a reassumirem imediatamente seus cargos, haja instauração de processo administrativo disciplinar caso persista o afastamento, desconto dos dias de greves e exoneração imediata dos ocupantes de cargo de provimento temporário e de função gratificada que participarem do movimento grevista[3].

Nenhuma das prescrições do Provimento 71 do CNJ preocuparia, se vivêssemos na normalidade. O uso de termos genéricos em sua redação permite compreendê-lo à luz da Constituição, que garante o direito ao livre pensamento como limite às possibilidades de patrulhamento dos agentes políticos.

O período de exceção em que vivemos autoriza, porém, preocupação.

O Provimento possibilita controle ideológico e amordaçamento incompatível com o viver democrático.

A Constituição completa 30 anos. Ela garante o direito fundamental à livre manifestação de pensamento, assim como garante o direito de greve. E inaugura seus dispositivos declarando o constituir, depois de décadas de opressão militar, de uma sociedade livre, fundada na cidadania.

Diante dela, sequer a LOMAN poderia resistir. Menos ainda, uma determinação que estende o conteúdo dessa lei inconstitucional, para vedar manifestações de pensamento, da forma como faz o Provimento 71 do CNJ.

Também a Constituição é feita de palavras, cuja força dependerá daquilo que fizermos com seu texto. O direito fundamental de greve, por exemplo, não passará de palavra escrita se os trabalhadores que o exercerem tiverem o ponto cortado, forem afastados, perseguidos ou proibidos de paralisar suas atividades.

O conteúdo do Provimento 71 do CNJ impõe uma reflexão importante. Por que importa tanto controlar as manifestações de pensamento dos juízes e juízas? De que modo a livre manifestação de pensamento pode constituir entrave à dignidade humana ou à garantia de direitos e deveres fundamentais, como diz o Provimento em suas considerações iniciais? A abertura democrática no Brasil não foi construída com silêncio, mas sim com denúncia, com greve, com grito, com embate de ideias.

Em 1991, a Associação dos Juízes para a Democracia – AJD, da qual faço parte, foi constituída com a finalidade de lutar pelo “respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito”; promover a “conscientização crescente da função judicante como proteção efetiva dos direitos do Homem, individual e coletivamente considerado, e a consequente realização substancial, não apenas formal, dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito”; defender a “independência do Poder Judiciário não só perante os demais poderes como também perante grupos de qualquer natureza, internos ou externos à Magistratura” (Artigo 2º do Estatuto da AJD)[4]. Seus fundadores viveram o processo conciliado de abertura democrática e temiam justamente a fragilidade dos novos ares que finalmente sopravam em solo brasileiro. Compreenderam a necessidade de união, vigília e luta constante pela manutenção dos propósitos contidos na Carta de 1988.

2018 é ano de eleição presidencial e parlamentar. Quem ocupa a cadeira da Presidência está sendo investigado por uma série de atos que em tese configuram crimes graves. O Rio de Janeiro está sob intervenção. Figuras públicas sugerem a tomada do poder pelos militares. Ativistas dos direitos humanos são assassinados. O STF relativizou a presunção de inocência e praticamente fulminou o direito de greve de servidores e empregados públicos. Há recessão; desemprego e aumento exponencial da violência.

Por que querem nos calar diante de tudo isso?

O Provimento 71 do CNJ inaugura uma nova fase no período de exceção que estamos vivendo. Não é possível contemporizar com uma tal tentativa de instaurar a punição a ideias divergentes como prática a ser adotada pelas Corregedorias.

Se insistimos em dizer que juízes não devem fazer política partidária, precisamos reconhecer que também não devem assistir inertes a prisões seletivas e ilegais; ao desmanche dos direitos sociais; à quebra do pacto firmado em 1988.

A disseminação do medo, cujo objetivo imediato é paralisar, impedindo a resistência, pode ter efeito contrário: despertar a reação de quem ainda acredita na possibilidade de uma cultura democrática, plural, em que as opiniões possam ser manifestadas e respeitadas.

Temos compromisso com a democracia, com a pluralidade, e, sobretudo, com a possibilidade de manifestar o pensamento, seja em que ambiente for. Somos juízes, não somos máquinas.

Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

[1] Trecho da música Cálice, Chico Buarque, composição de 1973, lançada em 1978, durante a Ditadura Civil-militar
[2] PRONER, Carol. E tal. Org. Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula. Rio de Janeiro: Canal 6 Projetos Editoriais, 2017.
[3] Decisão proferida em relação às ADI´s 1306 e 1335.
[4] http://www.ajd.org.br/quem_somos_estatuto.php

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