Índios na Universidade: a bolsa ou a vida? Por José Ribamar Bessa Freire

“Eu não falo bem o português, porque não nasci dentro dessa língua.
Eu nasci fora dela. Eu nasci dentro da minha língua Ticuna”.
(Adélia Bittencourt)

No Taqui Pra Ti

Novecentos reais é muito ou pouco? Depende. Para 4.000 índios e quilombolas, essa quantia mensal é a própria vida mantida pela bolsa permanência na universidade. Mas para o bolso do ministro da Educação, Rossiele Soares (DEM vixe vixe), é uma gorjeta, uma merreca que sai na urina. Com perfil ideal para compor o ministério do Temer, ele já foi condenado pelo Tribunal de Contas do Estado a devolver R$1.4 milhões por não comprovar o uso dos recursos financeiros, quando gestor do Fundo Estadual de Incentivo à Educação no Amazonas. Tal bufunfa, se dividida em R$900,00 mensais, mantém um índio na Universidade durante 130 anos.

O ministro, em um anúncio fúnebre na semana passada, decidiu cortar essas bolsas para “contenção de despesas”. Os protestos em todo o país foram tantos, que ele agora recuou, o que foi comemorado na UNICAMP, nessa sexta-feira (15), durante a defesa de tese de Luciano Cardenes, que discute justamente a educação superior indígena dentro do contexto da política indigenista no Brasil, a partir da presença de índios do Alto Solimões na universidade, mas também com referências a outras licenciaturas como a da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Instituto Insikiran da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

A tese, de extrema atualidade, compara o protagonismo indígena em dois cursos da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) e o perrengue pelo qual passaram os alunos, ocorrido também em outras universidades, mas que aqui fica visível quando o agora doutor Cardenes, que conversou e entrevistou os índios, registra a escrita biográfica dos professores Ticuna nos trabalhos de conclusão de curso (TCC) e dos memoriais que lhe permitem analisar o gênero narrativo indígena.

Os cursos

No primeiro caso, são os índios que vão à Universidade no projeto coordenado pela pedagoga Graça Barreto, que coloca indígenas e não-indígenas no mesmo barco, promovendo o diálogo entre eles, o que contrariava a tendência até então dominante. O Curso de Pedagogia Intercultural (PROIND), com estrutura centralizada em Manaus, aconteceu de 2009 a 2014, as aulas eram transmitidas por vídeo conferência a partir de uma plataforma digital localizada no bairro do Japiim, para 2615 alunos, dos quais 745 eram indígenas de diversas etnias, atingindo mais de 400 localidades em 52 municípios do Amazonas.

Já a Licenciatura para Professores Indígenas do Alto Solimões (PROLIND), conhecida também como “Curso da OGPTB”, é o primeiro curso universitário a ser ministrado em terra indígena, de 2006 a 2011, quando a UEA se deslocou até a aldeia Filadélfia, em Benjamin Constant, transformada numa extensão do campus. O projeto original elaborado pela OGPTB – Organização Geral dos Professores Ticuna Bilingues – contou com a assessoria de Jussara Gruber, artista plástica e educadora, que acompanhou os Ticuna por mais de duas décadas e contribuiu decisivamente para o anterior Curso de Magistério (2º grau) de 1993 a 1996, responsável por formar 212 professores ticuna para o ensino fundamental.

Financiado pelo MEC, o que não seria possível com o atual ministro da Educação, pau mandado do governo Temer, o projeto formou docentes indígenas para o ensino fundamental e médio nas licenciaturas em Estudos da Linguagem (Letras Português-Espanhol, com habilitação em Língua Kokama ou Ticuna), Ciências da Natureza (Biologia e Química), Ciências do Corpo (Artes e Educação Física), Ciências Exatas (Matemática e Física) e Ciências Humanas (História e Geografia ou Filosofia, Antropologia e Sociologia).

A relação tensa e conflituosa com a UEA é analisada na tese, que registra o discurso de muitos professores indígenas entre os quais Adélia Bittencourt, formada em Artes, conhecida como uma das mais talentosas artistas Ticuna, seu esposo Raimundo Bittencourt, professor de história e sociologia e pastor de uma igreja evangélica, Justina We’tanuna,  Artêmio da escola de Belém do Solimões, Chiquinho e Manoel Tenazor, Santo Cruz, Sansão Flores e outros já falecidos como Constantino Ramos e Reinaldo Otaviano do Carmo.

A formatura

No prólogo, Luciano descreve a formatura em Benjamin Constant (AM), que ele presenciou, de 204 estudantes Ticuna, Kokama, Kambeba, Kaixana e Witoto. Está tudo lá. As regras da cerimônia, a decoração do espaço, o juramento, a entrega dos diplomas, os discursos, as gozações dos alunos, a discussão entre os índios sobre o traje ideal da formatura, a opção pela beca preta, o cocar usado por alguns, o capelo jogado por outros para o alto como a gente vê nos filmes americanos, o culto ecumênico, as comunicações e anúncios feitos durante a cerimônia em português e na língua ticuna, o coral Ewaré cantando na língua nativa Patchoru princesa (Minha princesa).

Trata-se de uma descrição fina, crítica e respeitosa de um observador atento aos mínimos detalhes significativos, escrito com qualidade literária, mas com rigor acadêmico, que observa a formatura como “um fato social total”, como uma situação social e ao mesmo tempo como ritual de passagem num contexto intercultural. A formatura permitiu identificar as instituições sociais e a organização social indígena, as formas de representação e disputa política, as categorias de alteridade, religiosidade, relações interétnicas com sujeitos, agentes e agências diversas. Vale a pena reproduzir alguns trechos.

“Era dia 14 de dezembro de 2011, quando cheguei ao município de Benjamin Constant para ter notícias do evento de formatura dos professores indígenas e fazer os primeiros contatos para a possível pesquisa sobre educação superior indígena junto aos professores Ticuna.(…)  Naquela ocasião, toda a cidade de Benjamin Constant estava movimentada. Os moto-taxistas se amontoavam à beira do porto da cidade e saiam em disparada para voltar à disputa por passageiros que não paravam de chegar de Tabatinga”.

“Na feira de produtos agrícolas, um dos principais pontos de encontro do centro comercial da cidade, as barracas de café da manhã estavam lotadas e a chegada dos indígenas enchia os balcões dos comerciantes com cestos de farinha, caixas de goma, bananas e outras frutas silvestres regionais. Os vendedores das lojas de confecções e calçados anunciavam preços baixos de “sapatos e roupas sociais para a formatura”. Os dois maiores salões de beleza abriram cedo naquela manhã. Os donos de restaurante limpavam seus estabelecimentos e se preparavam para a clientela do almoço”.

“Nas ruas movimentadas do centro, alguns indígenas andavam por pensionatos e pequenos hotéis ao redor da feira em busca de hospedagem. Foi assim que encontrei um dos professores Ticuna que me cumprimentou:

 Veio para a formatura professor?

Respondi com um aperto de mão e um abraço:

 – Sim. Acabei de chegar.

Ele me disse que o local escolhido para a formatura desagradou aos professores indígenas e prontamente me respondeu: […] mudaram tudo professor! A UEA mudou tudo e a formatura agora vai ser na Quadra Esportiva Frei Samuel.

Enquanto tudo era organizado sob forte orientação das agentes de cerimonial da universidade, observei um docente que se encarregava de explicar aos professores indígenas todas as regras da cerimônia de formatura:

– Vocês já vão chegar vestidos com a beca preta e vão se organizar em fila lá ao lado de fora. As famílias de vocês ficarão aqui dentro”.

São apenas alguns trechos do prólogo da tese, que merece ser lida e que foi aprovada pela banca, com mais um doutor em antropologia na praça. Ela aborda em diferentes momentos os conflitos que envolvem as tentativas de apagar as línguas indígenas. Nas considerações finais, Luciano afirma que a experiência do curso ministrado a partir da plataforma digital em Manaus, envolvendo alunos indígenas e não indígenas, foi uma experiência muito válida, porque o currículo intercultural e a convivência com os índios formou professores não indígenas mais conscientes da realidade amazônica.

Tive oportunidade de participar como professor do curso de magistério (2º grau) dos professores ticuna e depois dos dois cursos de ensino superior, quando   lecionei vários módulos em diferentes etapas. Assisti também a uma aula em Barcelos, dentro da sala, com alunos indígenas e não-indígenas, ministrada a partir da plataforma de Manaus, o que tornou a travessia pelas 363 páginas da tese uma viagem agradável. Apesar dos obstáculos criados pela burocracia preconceituosa, as experiências representaram um grande avanço na educação indígena.

Nesta segunda-feira (18) levo a tese de Luciano para a defesa da dissertação de Sansão Ricardo Flores (Tchobücü rü Goecü) Concepções Linguísticas e Luta Política, orientada por Marília Facó Soares no Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas da UFRJ. O conhecimento circula. A universidade e os índios resistem.

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P.S.1 – Luciano Cardenes Santos: Da tutela à interculturalidade: projetos indigenistas, Educação Superior e autonomia Ticuna. Unicamp. 2018. Tese defendida em 15 de junho no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Banca: Suely Kofes (orientadora), Deise Lucy Montardo (Ufam), Nashieli Cecilia Loera (Unicamp), Christiano Key Tambascia (Unicamp) e José R. Bessa Freire (Unirio-Uerj). É dedicada, entre outros, aos saudosos Constantino Ramos, professor ticuna, e ao historiador John Monteiro, o orientador inicial.

P.S. 2 – Ver também três crônicas, duas delas citadas na tese:

a) Ensino à distância: vai lavar teu tcherembó

b) Constantino, museólogo ticuna na canoa das almas

c) Aqui começa o Brasil: com lama ou sem lama, nós te ama

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