30 anos da Constituição Federal: tempo de resistência indígena

Por Ligia Apel

Kanamari, Madija Kulina, Deni, Miranha, Tikuna, Maku Nadëb, Kokama, Kambeba, Apurinã e Kaixana. Esses são os povos dos municípios de Tefé, Alvarães, Japurá, Maraã, Itamarati e Carauari que participam do projeto “Garantindo a defesa de direitos e a cidadania dos povos indígenas do médio rio Solimões e afluentes”, realizado pela Cáritas e Conselho Indigenista Missionário (CIMI) da Prelazia de Tefé e financiado pela União Europeia e CAFOD, Agência Católica para o Desenvolvimento Internacional.

Nesse mês de junho, o projeto concluiu seu 2º ano, continuando com atividades de formação, incidência e fortalecimento institucional. Os resultados alcançados até agora mostram que fortalecendo as capacidades indígenas, também se fortalece a resistência contra os desmontes das políticas indigenistas nacionais adotadas pelo atual governo brasileiro.

No ano em que a Constituição Federal completa 30 anos, a realidade é de ataques diretos e uma clara desestruturação dos direitos conquistados, em um evidente retorno ao não reconhecimento da cultura e modos de vida dos povos indígenas. Segundo o Relatório do CIMI, que apresenta as violências contra os povos indígenas no Brasil, são “ataques diretos às comunidades e o não cumprimento dos direitos constitucionais destes povos à demarcação de seus territórios, inviabilizam seu modo de vida tradicional”. Apresentando o relatório, o Presidente do CIMI e arcebispo de Porto Velho, Dom Roque Paloschi, diz que “cresce o número de comunidades submetidas ao absoluto abandono, tanto no que tange à efetiva garantia de seus direitos constitucionais – que se concretizam na demarcação de suas terras –, quanto em aspectos relativos à proteção, ao respeito à vida e à dignidade humanas”.

O cenário é desolador, mas há resistência

A situação das terras indígenas no Brasil, de acordo com o relatório, atualizado em setembro de 2017, revela o descaso: das 1296 terras indígenas, 836 (64,5%) estão “com alguma providência a ser tomada pelo Estado brasileiro” para “terem seus procedimentos demarcatórios finalizados”, sendo que 530 delas (63,3%) não tem nenhuma providência administrativa encaminhada. O que deixa as comunidades sem qualquer segurança e vulneráveis a ataques de invasores.

No Amazonas, estado que possui maior número (199) de terras indígenas sem demarcação estão vulneráveis tanto as comunidades indígenas quanto os recursos naturais que (ainda) existem na região. Os invasores, sabendo da indefinição de limites territoriais, sentem-se à vontade para explorar as florestas. E as comunidades, por não terem seus territórios garantidos por lei, não são reconhecidas como indígenas, ficando, portanto, desassistidas, sem políticas públicas específicas.

Ao que tudo indica, dado o sucateamento da FUNAI e sua clara utilização como favores políticos, os processos de reconhecimento territorial não terão a devida atenção. O último presidente do órgão nomeado, o empresário e pregoeiro Wallace Moreira Bastos, não tem nenhuma experiência com a questão indígena. Nomear uma pessoa completamente alheia ao tema, aos problemas e necessidades das populações indígenas para o posto máximo de decisões e definições pelo órgão, significa descontinuidade dos processos demarcatórios e enfraquecimento das políticas de proteção e segurança de direitos.

Tal situação é enfrentada, com gravidade, pelos povos da região do médio rio Solimões e denunciada pelas lideranças nas diversas atividades desenvolvidas pelo projeto. Para o coordenador indigenista e missionário do CIMI, Raimundo Freitas, o cenário nacional é desolador e os indígenas devem promover resistência. Para Freitas, as ações do projeto têm contribuído com as lideranças e comunidades para compreender e se posicionar frente à situação. “Esse cenário vai permanecer e vai afetar nossas ações. Mas, é preciso centrar nossa força nas atividades e trazer informações para os indígenas. Até aqui, o que o projeto já fez, as lideranças estão valorizando e se apropriando dos conhecimentos para resistir”, disse o missionário lembrando as atividades de formação, Oficinas Político-jurídicas, Incidências Políticas, Mutirões em Defesa de Direitos, Encontros Regionais, Fóruns Locais de Políticas Indigenistas e Campanhas na Semana dos Povos Indígenas desenvolvidas pelo projeto.

Valcidheice Alves Pereira Kokama, da aldeia Boará de Cima, em Tefé, mostra que sim, está valendo a pena os ensinamentos que o projeto vem trazendo: “A gente viu que a gente tem voz, que a gente pode falar. E que é dever deles respeitar a nossa cultura, cada povo, cada estilo de vida dos indígenas”, disse a Kokama conclamando as lideranças para a resistência.

Encaminhamentos conjuntos ganham peso político

O objetivo do projeto é contribuir para o fortalecimento das capacidades de lideranças e organizações indígenas para a defesa e proteção efetiva dos direitos civis e políticos e garantias constitucionais reafirmando o caráter pluriétnico do Estado Brasileiro. E um dos maiores desafios na luta pela garantia dos direitos indígenas é a informação e a formação em direitos civis, políticos, sociais e humanos. Fortalecer as capacidades e os conhecimentos indígenas para o protagonismo em suas lutas. Nesse sentido, o projeto vem, desde 2016, desenvolvendo atividades de formação em direitos, incidências políticas e criação de redes de proteção aos direitos indígenas nas cidades e comunidades da região.

Na intenção de unir os povos e encaminhar conjuntamente suas pautas e demandas, cujas violações em grande parte são comuns, para que ganhem peso político e não caiam no esquecimento das autoridades, foi realizado o Fórum de Políticas Indigenistas, nos dias 26 e 27 de maio deste ano, em Tefé. As lideranças representativas dos povos, Organizações da Sociedade Civil e Setor Público debateram sobre conjuntura da política indigenista e sobre o trabalho realizado por órgãos especializados em criar, implementar e/ou executar políticas públicas para as populações indígenas da região. Também refletiram sobre as demandas que encaminharam aos órgãos competentes através das reuniões de incidência, encontros e mutirões de defesa de direitos realizados nos dois anos do projeto e estabeleceram estratégias para o acompanhamento destes casos. O propósito, portanto, foi de reunir diferentes atores para dar visibilidade e reforçar os pedidos de reparação a casos de vulneração de direitos denunciados pelas comunidades indígenas das regiões de Alvarães, Itamarati, Carauari e Tefé.

Ao final do evento foi elaborado o Documento Final do Fórum de Políticas Indigenistas de Tefé com as demandas comuns aos povos indígenas presentes e sete documentos específicos dos povos Kaixana, Deni, Kanamari, Kokama, Tikuna, Kambeba, Apurinã e Miranha para encaminhamento aos órgãos competentes e autoridades. Os documentos foram entregues no decorrer do mês ao Ministério Público Federal; à Prefeitura Municipal de Tefé; ao Comando 16ª Brigada Infantaria de Selva; Conselho Distrital de Saúde Indígena – CONDISI; Secretaria Municipal de Saúde de Tefé – SEMSA; Coordenação Técnica Local – CTL/FUNAI–Tefé; Polícia Federal – Posto de Tefé; Secretaria Municipal de Meio Ambiente – SEMMA; Secretaria Municipal de Educação de Tefé – SEMED; Prefeitura Municipal de Itamarati; Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI; Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBIo; Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas – IPAAM e 3º Batalhão da Polícia Militar de Tefé. As lideranças indígenas e suas comunidades aguardam posicionamentos de apoio e, aos que lhe competem, a resolução dos problemas.

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DOCUMENTO FINAL DO FÓRUM DE POLÍTICA INDIGENISTA DE TEFÉ

Nós lideranças indígenas Kaixana, Deni, Kanamari, Kokama, Tlkuna, Kambeba, Apurinã e Miranha, das aldeias Boarazinho, Boará de Cima, Barreira da Missão de Cima, Betei, Barreira da Missão de Baixo, Mapi, Severino, São José do Jenipaua, Porto Praia de Baixo, Canataietu, Laranjal, Itaúba, Santa Luzia e Bauana, dos municípios de Carauari, Alvarães e Tefé, e representantes da instituições indigenistas e indígenas: FUNAI-CTL/Tefé, CONDISI-MRSA, Prefeitura municipal de Tefé, UNIPI- MSA, Articulação dos Povos Indígenas na Cidade de Tefé- AINCT, Coordenação Municipal de Assuntos Indígenas – COIPAM e Coordenação de Educação Escolar Indígena de Tefé, nos reunimos nos dias 26 e 27 de maio de 2018, em ocasião do Fórum de Políticas Indigenistas, com organizações da Sociedade Civil e setor Público, no auditório do Hotel Oliveira II, em Tefé, Estado do Amazonas, com o objetivo de dialogar sobre nossas demandas e traçar estratégias para que resultados práticos possam ser efetivados e transformem as situações de vulnerabilidade de nossos direitos.

Completados 30 anos da Constituição Federal de 1988, que consagrou a natureza pluriétnica do Estado brasileiro, os povos indígenas do Brasil vivem o cenário mais grave de ataques aos seus direitos desde a redemocratização do país. Condenamos e nos indignamos frente à falência da política indigenista, efetivada mediante o desmonte deliberado e a instrumentalização política das instituições e das ações que o Poder Público tem o dever de garantir, pois são nossos direitos.

O direito originário sobre nossas terras, assegurado pelo artigo 231 da Constituição, vem sendo sistematicamente violado pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, não apenas com a completa paralisação das demarcações das terras indígenas, mas também mediante a revisão e a anulação dos processos de reconhecimento dos nossos direitos territoriais. Tramitam no legislativo federal diversos projetos de lei e propostas de emendas constitucionais que visam a desconstrução de nossos direitos constitucionalmente assegurados, conquistas de anos de luta do movimento indígena que, da noite para o dia, podem ser reduzidos a nada.

Ao negociar nossos direitos com bancadas parlamentares anti-indígenas, especialmente a ruralista, o governo federal publicou o Parecer AGU n° 001/2017, que, de forma inconstitucional e contrária à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), tenta impor a tese do marco temporal, uma das mais graves violações contra os nossos povos. Sua condenável utilização tem servido para o estancamento dos processos de demarcação.

Não aceitamos o loteamento político da FUNAI, especialmente para atender interesses da bancada ruralista e demais setores anti-indígena, como as últimas negociações de presidente, incluindo a do Sr. Wallace Moreira Bastos, cujo currículo demostra completa ignorância das questões indigenistas. Igualmente, condenamos o intencional desmantelamento do órgão indigenista, com reduções drásticas de orçamento, que inviabiliza o cumprimento das suas atribuições legais, especialmente no que toca às demarcações, fiscalizações e licenciamento ambiental.

A CTL da FUNAI em Tefé não pode implementar seu plano estratégico de ações por falta de recursos, o que prejudica as ações desse órgão junto às aldeias. O estado do Amazonas possui 199 terras indígenas sem nenhuma providência adotada pela FUNAI em relação ao processo de regularização fundiária. A maioria destes territórios encontram-se na calha do Rio Solimões: no município de Carauari são 3, em Itamarati 1, em Alvarães 2, e em Tefé 12 terras indígenas sem providência. Estamos muito preocupados com a situação dos nossos territórios, pois são alvos de constantes e sistemáticas invasões para a exploração de recursos naturais.

Não bastasse isso, denunciamos a constante troca de favores entre o governo federal e o Congresso nacional e o desmente escancarado do Estado brasileiro provocado pela Emenda Constitucional 95, que congela o orçamento por 20 anos.

As investidas para a desconstrução de nossos direitos por parte de setores anti-indígenas em todos os poderes do Estado brasileiro são constantes. Diante dos ataques e das violências e violações de nossos direitos, conquistados através das lutas coletivas dos povos indígenas, reafirmamos nosso posição de luta e resistência para que esses direitos conquistados sejam respeitados pelas instituições públicas e pela sociedade em geral.

Tefé, 27 de maio de 2018.

Este artigo e esse documento foram elaborados com a participação financeira da União Europeia. O seu conteúdo é de responsabilidade exclusiva de Cáritas de Tefé e CIMI Tefé, não podendo, em caso algum, considerar que reflita a posição da União Europeia.

 

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