A lógica do suposto empreendedor de sucesso

Por Rochester Oliveira Araújo , no Justificando

O que há em comum entre um pipoqueiro com adesivo tucano, o “rei do morro” e o proprietário de uma franquia de chocolates? Embora pareça uma anedota, a resposta não é nada cômica.

No trajeto de retorno da creche da minha filha até a minha casa, que faço diariamente, passo por três espaços que provocam uma reflexão sobre a nossa sociedade e sobre a lógica que faz mover nossos pensamentos. E nessa que fez surgir a questão acima. A seguir, pretendo apresentar cada um desses espaços e a interação com as pessoas ao redor, para tentar aclarar o quanto essa força motriz da nossa sociedade tem influências profundas em nossa constituição, desde os aspectos políticos até os emotivos.

Inicialmente, destaco que as interações são muito mais comunicativas e receptivas nesse trajeto creche-casa, já que intermediado pela presença de uma bebê. Isso, em si, já tem significados que não poderão ser explorados nessa oportunidade.

Em uma primeira parte do percurso, trafego pela calçada de uma galeria de lojas pequenas às margens de uma rua movimentada. Entre boutiques, padarias, saladerias, inaugura uma franquia de chocolates e bombons. O proprietário se identifica sorridentemente na calçada e cumprimenta a todos, inclusive a nós, trajando uma camisa com os dizeres “Minha Primeira Franquia”. Há um semblante de orgulho e excitação. Evidentemente uma pessoa que realiza-se em seu sucesso.

Em breve interação, o empresário convida para conhecer sua nova loja. Agradeço o convite, mas sigo caminhando e me despeço desejando-lhe “boa sorte”. Ele responde com algo como “não é sorte, é sucesso!”. Sorte é aleatória. Sucesso é certo. Certo?

Dos três espaços que percorro, esse é o que possui maior coerência entre o discurso/experiência de interação e a força motriz da nossa sociedade contemporânea. Maior coerência pelo local-social que ocupa aquele indivíduo, de empresário, dono da sua primeira franquia. Mas é justamente nos outros espaços que propagam e disputam o mesmo discurso e experiência, provocando a aparente incoerência, que faz surgir um estranhamento. É essa lógica que precisamos apresentar antes de avançar no trajeto.

Vivemos em um tempo em que o capitalismo amadurecido impregnou-se muito além de uma teoria econômica, avançando para a conformação complexa de uma sociedade ao seu modo, e muitas vezes sequer percebemos a dimensão dessa conformação. Entre tais aspectos, o que destacamos nessa oportunidade é a criação de uma subjetividade egoísta e concorrencial, fardada de virtuosa. Talvez em um fenômeno de pejorização das pessoas, vivemos como pessoas com identidades de microempresas. Somos o Eu S/A de forma mais atualizada ainda, talvez, o Eu M.E.I., alterando-se a base legislativa para adequar a figura do Microempreendedor Individual (Lei Complementar 128). Micro, para permitir a identificação até mesmo de pessoas com patrimônios minúsculos. Empreendedor, que é justamente onde o capitalismo obteve o êxito de se expandir em nossas vidas em todos os âmbitos, nos tornando eternos investidores. Individual para marcar a característica egoísta que reveste toda essa estrutura, onde nos tornamos cada vez mais isolados, interessados apenas em uma micro-ética, embora criando milhares de instrumentos para uma interação que será concorrencial, via de regra.

No geral, do ponto de vista econômico, a perspectiva empreendedora fica mais evidente. Precisamos investir, inserir valores, nos empenhar para receber e colher proveitos depois. Como se magicamente esse investimento se convertesse em ganhos. Magicamente, porém não de forma aleatória. “Não é sorte. É sucesso“.

Ocorre que essa lógica e esses valores econômicos migram de seu sistema econômico para outros domínios da vida social. E fazem isso a tal ponto que passam a serem instituidores de novos processo e políticas de subjetivação, capazes de transformar os sujeitos de direitos – árdua conquista – em pequenas empresas/empreendedores. Nessa construção da nova subjetividade, o Ego passa a ser mais importante e o outro é afastado. Enxergamos a nós mesmos, somente, e não nos identificamos com os demais, por mais antagônico que possa parecer em uma sociedade massificada. Mas é exigido da lógica econômica esse “virar-se para si” com preponderância. Olhar para dentro. Conhecer-se. Saber seus potenciais.

A ideia de ser empreendedor, no conceito cunhado pelo próprio interessado, vincula-se a uma capacidade de ter “atitude criativa e arrojada, que busca inovar, criando novas formas de encarar um problema, propondo soluções e vendo possibilidades além do possível“. Ainda, “empreendedorismo é a capacidade que uma pessoa tem de identificar problemas e oportunidades, desenvolver soluções e investir recursos na criação de algo positivo para a sociedade. É, portanto, marcado por características como o otimismo, a autoconfiança, a coragem, a persistência e resiliência“. Tais características seriam indispensáveis e “valiosas para o mundo competitivo em que vivemos“.

Em uma análise discursiva bem superficial dos conceitos expostos, podemos destacar algumas características dessa subjetividade produzida pela lógica do empreendedorismo individual. Primeiro, o empreendedor precisa ser um sujeito de ações arriscadas (arrojadas) e criativo, sempre voltado à solução de problemas para construir saídas que possam superar a própria lógica das coisas. É na capacidade de sobrepujar o sistema que está seu êxito, o sucesso. E cada um é capaz de tal feito, individualmente, afinal, o empreendedor possui as virtudes da autoconfiança e persistência. Se não deu certo, faltou-lhe a virtude. Se não se deixar abater pelo pessimismo ou faltar coragem, sendo resiliente, poderá encontrar internamente as condições para superar qualquer obstáculo.

Nesse sentido, Paulo Skaf sintetiza muitíssimo bem ao proferir a mensagem empreendedora que “temos que acreditar que essas coisas passam. Todos nós temos a garra e a vontade de vencer”, disse, referindo-se às dificuldades geradas pela paralisação de caminhoneiros sobre o mercado. Tais características são fundamentais, sobretudo por se naturalizar uma sociedade competitiva, em que precisamos nos afirmar constantemente sob risco de sermos derrotados.

Ao criar uma subjetividade que se vê impulsionada a superar obstáculos contra a própria lógica do sistema capitalista, quase que como buscando a glória através do sacrifício-suicídio, deixamos de responsabilizar a estrutura social e passamos a nos responsabilizar individualmente por uma situação econômica adversa e injusta. Por isso que a ética fica restrita ao indivíduo. Fomentamos o egoísmo através da auto-responsabilização por questões que sequer temos noção ou capacidade de reverter.

Para Foucault, essa foi a grande sacada da Escola de Chicago na construção do valor “capital humano”, mas que expandiu-se e impregnou nossa sociedade em diversos âmagos. Esse conceito seria um dos responsáveis por sustentar uma governamentalidade, que seria “[…] o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bastante específica, embora muito complexa de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança“.

É através da governamentalidade que se busca programar as atividades e os comportamentos dos indivíduos, controlando suas formas de agir, sentir, pensar e enxergar a si mesmos. Isso é feito através de determinados processos de subjetivação que tem como ferramentas as mais variadas tecnologias gerenciais, ricas no campo da administração (management), práticas e saberes psicológicos voltados à dinâmica e à gestão de grupos e de pessoas, marketing, literatura de autoajuda, coaching, redes sociais etc. Tais ferramentas são aplicadas desde práticas esportivas e atividades físicas, até mesmo na “gestão” dos sentimentos e relacionamentos amorosos. Nesse processo, cria-se a ideia do capital humano e se converte o trabalhador em um meio de produção, capaz de converter o indivíduo em um equipamento de capital. Por isso, “investimos” em nós mesmos, buscando um retorno financeiro.

Formatada a subjetividade que nos torna pequenas pessoas, grandes negócios, a lógica de mercado não opera somente no nosso campo econômico, ou seja, nas decisões relacionadas ao nosso trabalho e finanças. Enquanto tecnologia de governamentalidade, o efeito de se construir subjetividades a este modo é que não enxergamos apenas a nós como microempresas, e sim também enxergamos desse modo o outro. Reconhecemos no outro um microempreendedor, uma pequena fábrica. É a partir desse momento que nossas interações com o próximo passam a ser mensuradas através da lógica mercantil do investimento ou concorrência. Se a condição categórica para o funcionamento de algo é a de fazer investimentos contínuos e disputar espaços com outras subjetividades, nossas condutas passam a ser avaliadas de forma racionalizada através das relações de custo/benefício que nossas decisões implicam.

Por um lado, acreditamos que a relação positiva com o outro é intermediada pela lógica do investimento de energia, afetos, tempo e outros tantos elementos, inclusive o dinheiro. A relação parental, por exemplo, autoriza que sobre um filho possamos fazer elevados investimentos, pois há uma segurança nessa relação. É um retorno muito seguro que aquele investimento nos traga bons frutos, no futuro. Podemos investir nosso afeto e nossa energia. Mas, para além disso, também submetemos aquela microempresa júnior à uma lógica precoce para desenvolvimento de “potencialidades”. Escolas que sejam bilíngues, trilíngues, incentivem o contato com a informática e conhecer tecnologias, muito mais do que qualquer preocupação com o brincar, os vínculos sociais e afetivos, a empatia. Sobre os efeitos da lógica microempreendedora na educação, ainda precisamos discutir muito. Mas a presença desse efeito será importante no segundo cenário do nosso trajeto (voltaremos logo em breve a ele).

Por outro lado, se não há interesse em investimento naquela relação com o outro, o que é a regra, já que reconhecidamente os recursos, por mais abstratos que sejam, são limitados, passamos à lógica concorrencial. Essa lógica concorrencial, que se banha na naturalização de uma sociedade de disputa e combate, cria um cenário ideal para um processo de não reconhecimento mútuo e exclusão. Na lógica do mercado, quem não consegue excluir a concorrência, por ela será eliminada. Bauman trata muito bem dessa lógica de “excluir para não ser excluído“, como se estivéssemos apenas lutando para sobreviver em uma sociedade de múltiplos fatores de exclusão.

Ainda que não possamos excluir o outro em todos os aspectos, mas ao não reconhecer suas subjetividades como sequer merecedoras de investimento, retiramos deles a própria condição de humanidade criada a partir dessa subjetividade. Se a existência do indivíduo é condicionada à sua capacidade de ter valor de capital, a pessoa que não demonstre tais atributos é imprestável ao sistema e poderá ser excluída. Se não em si, mas seus saberes poderão ser excluídos. Sua cultura ser repudiada. Seus espaços negados. Seus corpos ridicularizados. Seu gênero controlado.

Há um efeito de ideologia nessa regra. Nos identificamos mais como os que tem a capacidade de excluir do que os que tem o risco de sermos excluídos. As ferramentas que dispomos potencializam essa lógica de que, do dia para a noite, podemos nos converter de pixels de uma massa cinzenta em alguém com destaque na sociedade. O dinamismo da sociedade de informação pode me transformar em um formador de opinião através das redes sociais. Um investimento correto me fazer milionário, se conseguir entender as regras do mercado financeiro. A fama através de um reality show que pode servir como porta de entrada para uma vida de celebridade. Nada disso é por sorte, pois tudo depende somente de uma boa oportunidade para que você utilize adequadamente o seu capital humano.

Portanto, essa regra concorrencial ou de investimentos ultrapassa os limites do campo econômico e constrói uma subjetividade que interfere em diversos campos de nossas vidas. Da mesma forma, a filosofia do empreendedor individual, numa lógica egocêntrica que se quer crescer e expandir, alcança as opiniões políticas ou imagens construídas sobre nós mesmos.

Chegamos ao segundo lugar do trajeto creche-casa. E o segundo personagem. Na frente de uma escola particular, em um bairro de classe média alta, um pipoqueiro conversa e interage com naturalidade e proximidade com pais de alunos que aguardam a liberação de seus pequenos projetos futuros. No carrinho de pipoca, de alumínio, bem “tradicional” (não do tipo vintage ou gourmet) um pequeno adesivo “Bolsonaro 2018”, logo ao lado de vários surrados adesivos “Aécio 45” que não foram retirados ou cobertos. Quase que como uma herança ou sucessão. O que leva o pipoqueiro a estampar aquela opinião política é algo complexo. Pode ser pura estratégia de comunicação com os demais, já que a maioria da sua clientela devia ser apoiadora do candidato tucano.

Ao passar na calçada, o vendedor que não dá tanta atenção – já que sou um desconhecido – é interrompido quando peço uma pipoca. No diálogo com os mais próximos que ali aguardam, ele comenta que “com essa greve, o preço do milho vai subir. Não vou repassar o preço, mas devia pois já pagamos muitos impostos”. Pagamos. Não como um indivíduo qualquer, mas identificando-se com os seus supostos pares. O microempreendedor pipoqueiro, a despeito de não ter condições de ter a educação de seus filhos provida naquela mesma escola, de ter um carrinho de natureza diversa dos carrões que ali estacionam, de viver muito longe daquele bairro, se identifica com aqueles outros empreendedores. Pensa da mesma forma. Vota igual. Numa expectativa de ter, a depender apenas do seu esforço individual, o sucesso a partir da superação dos obstáculos.

Por último, não muito longe dessa parte do trajeto, uma banca de revista dobra a esquina. Na frente, além das diversas revistas, objetos para venda, livros expostos, os principais jornais da cidade ficam expostos com suas manchetes. Nos últimos dias, a crescente onda de conflitos entre a polícia e “grupos de traficantes” de determinado bairro ocuparam os noticiários. E um dos jornais do dia estampava a foto de um traficante, morto, que seria o braço direito do “rei do tráfico” de um morro. O “rei do tráfico” é vendido – não só desse morro, desse jornal, mas, como um todo, a imagem do traficante – como um indivíduo que, por vias ilícitas, constrói o seu “império”. Ostenta jóias e poder. Ele, odiado, consegue ascender na vida, mas faz isso por subterfúgios. Não jogou as regras do jogo, embora esteja ali ocupando a posição de um “vencedor”.

Um duplo efeito nessa construção do criminoso. Um: ele, trapaceiro, deve ser eliminado do jogo a qualquer custo. Não lhe é permitido vencer assim. E estamos falando de um negócio, a alma do capitalismo – já que o tráfico de drogas é, em análise econômica, o exercício do comércio. Dois: o próprio indivíduo que numa criminalização secundária se intitula “rei do tráfico” não tem a noção de que não é rei de nada. O rei que verdadeiramente acumula riquezas e poder, através do tráfico, não estaria trancafiado em um “castelo” no morro, fadado a morrer a qualquer momento através das mãos do Estado ou de seus concorrentes. As verdadeiras majestades do tráfico não estão ali. Mas, a visão do empreendedorismo individual alcança até mesmo a construção dessa imagem do traficante e da sua ascensão através do crime.

O que temos em comum nos dois últimos locais é o efeito potencializado dessa perspectiva do empreendedorismo individual, mesmo em uma situação antagônica. O que gera a “incoerência” alertada no início é o quanto se torna difícil, dentro dessa sociedade, fugir dessa lógica. O quanto a nossa consciência real é difícil de ser compreendida, o nosso local de fala, a nossa classe, a raça, o gênero, todos os elementos que compõe e situam verdadeiramente os papéis impostos na sociedade. Identificar o verdadeiro papel que é imposto é reconhecer a dureza das coisas e o quanto o mundo está indisposto à mudanças. É reconhecer que os pares são outros, e os ímpares nos querem fazer sentir dentro da “Casa Grande”, mas sem abrir as portas verdadeiramente.

Talvez um dos efeitos mais devastadores desse falso silogismo social que o empreendedorismo individual vende, que essa subjetividade formatada acredita ou faz acreditar, seja observado na expressão política. Quando, em tese, em um regime democrático, é através da experiência do voto que se pode modificar as bases estruturais, ou ao menos pleitear uma igualdade material na sociedade, e o sufrágio passa a ser expressão dessa subjetividade, o voto dos milhões de microempreendedores individuais de si será destinado à qualquer um que alimente essa falsa razão econômica. A visão egoísta fomentada impede que se veja que as verdadeiras oportunidades de mudança passam muito mais por um voto à esquerda, que se comprometa com uma mudança na estrutura social, do que à direita que lhe garanta uma falaciosa liberdade de disputar seu espaço ao sol.

Rochester Oliveira Araújo é Mestre em Direito Constitucional e Defensor Público do Estado do Espírito Santo.

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