A reflexão do psicanalista Christian Dunker sobre como a interação nas redes deforma a noção do ‘eu’

“Aprendemos que sentir pode ser perigoso e que reduzir o atrito com a realidade é um caminho sempre disponível.”

por Ana Beatriz Rosa, em HuffPost Brasil

Estamos cada vez menos dispostos a demonstrar nossas vulnerabilidades. A não ser que elas sejam calculadamente expostas de forma que nos rendam louros à nossa nova forma de sociabilidade: redes de exposição em que a vigilância é exercida de forma voluntária, e não por um “ser” que tudo controla.

Ao mesmo tempo, formatamos o nosso ego sem uma verdadeira referência do “outro”. Perdemos a noção de que o mundo é maior do que o que representa os nossos filtros-bolhas. Nos tornamos pequenos e, ao mesmo tempo, egocêntricos. Criamos esse fetiche que nos faz pensar o quanto nosso clique, like ou unfollow é importante.

O que significará, então, amar? Para Christian Dunker, psicanalista e autor do livro Reinvenção da intimidade: Políticas do sofrimento cotidiano, o amor será uma substância cada vez mais rara e por isso mesmo cada vez mais preciosa.

“Sua ocorrência se torna mais improvável. Estamos intoxicados com formas pré-fabricadas de amar e ser amado, formas institucionalizadas e garantistas de nos prevenir contra as decepções e dores, que são horríveis mesmo”, comenta em entrevista ao HuffPost Brasil.

A convite do HuffPost Brasil, o psicanalista refletiu sobre temas como relacionamentos, redes sociais, monogamia e narcisismo. Leia os melhores trechos da conversa:

HuffPost Brasil: As tecnologias têm afetado a forma como nós nos relacionamos. Em tempos de aplicativos e redes sociais, a mediação da tela dificulta a exposição de nossas fraquezas e vulnerabilidades?

Christian Dunker: É possível que se dê exatamente o contrário, ou seja, nossas fraquezas, como sinal de humanidade, compaixão ou solidariedade passaram a fazer cada vez mais parte do registro ético de nós mesmos. Passamos a suspeitar da ideia de que devemos compartilhar nossa vulnerabilidade, todos da mesma maneira, segundo narrativas como as do pecado e do vício ou do desamor e do abandono. Estar vulnerável tornou-se índice de nossa capacidade de ser afetado pelo mundo, pelo outro e por nós mesmos. E a intensificação da capacidade de ser receptivo a isso é um fator importante para definir uma vida intensa.

O que estou tentando dizer é que, assim como a vulnerabilidade se tornou mais aceita, ela se torna também mais codificada em sua expressão. Isso é um grande problema porque uma das características da verdadeira vulnerabilidade é que ela não encontra muito bem as palavras, as narrativas e as gramáticas de reconhecimento para se manifestar. Por isso as pessoas sentem vergonha, acham que os outros não vão entender, acham que só elas sentem e sofrem daquela maneira e que a forma como elas conseguem expressar isso “não cabe no mundo” e tem que ser vivida solitariamente. Assim, acabamos construindo um terreno fértil para tornar uma determinada forma de sofrimento fonte permanente para a causação de sintomas.

Até os anos 1980, fazer psicoterapia podia ser considerado uma coisa para fracos, pessoas que não sabem resolver seus problemas sozinhos e que potencialmente põe em dúvida a educação familiar recebida. Hoje, a vulnerabilidade é também ocasião para transformação, cuidado e busca de superação.

Por outro lado, fazer-se vulnerável tornou-se parte de nossa nova sociabilidade, o que traz traz novos problemas em torno de como nos tornamos “singularmente” vulneráveis, ou seja, o que nos oferece um caráter distintivo, pensado e administrado de nossas limitações e dificuldades, em contraste com a vulnerabilidade comum, baseada em condições de déficit, exclusão ou segregação.

Tomemos como exemplo as celebridades que calculadamente vem a público declarar os infortúnios de suas vidas íntimas, vejamos como isso contrasta com as pessoas comuns para as quais a vulnerabilidade torna-se fonte de vergonha e invisibilidade social, em vez de integrar-se a este tipo de neo-narcisismo.

A existência de códigos mais locais e mais exclusivos para expressar vulnerabilidade, como os ajustamentos de conduta, as normas corporativas e o “compliance” comportamental e discursivo criam esta sensação de que estamos presos em uma máscara de ferro social, cujo personagem é tão inautêntico que não deve revelar nada estranho ao que dele se espera. De fato, aqui surge uma crescente disposição para dirigir nossa agressividade e violência suprimida contra aqueles que se insurgem contra tais códigos não alternativos de expressão de vulnerabilidade.

O que significa ter “responsabilidade emocional” em uma relação? Como delinear um limite para entender o que é meu e o que é do outro? Seja quando falamos de expectativas, responsabilidades, medos, etc…

Esse é um tema importante. Nossas aspirações de equidade e justiça, tão importantes para diminuir o potencial de degradação e violência intersubjetiva, dependem deste elemento crucial que é a responsabilidade, mas nós nos acostumamos a reduzir a responsabilidade a uma função contratual.

Desta forma, nomeamos direitos e deveres, encargos e preferências de tal forma que muitas vezes isso transforma uma relação em um empreendimento mútuo para a gerência da casa, dos filhos, dos projetos de sociabilidade ou de aquisição. A expressão “responsabilidade emocional” tenta dar conta do caráter não contratual e não “troquista” pelo qual aqueles que se amam criam-se e recriam-se uma espécie de implicação mútua com o cuidado de algo que não é propriedade (logo, responsabilidade). Algo que não é nem de um, nem do outro, mas de ambos e que em alguma medida suspende, voluntariamente, a individualidade de cada um.

Responsabilidade“, vem do termo “respondere“, ou seja, tem que ver com a palavra e tem que ver com “prometer em troca”. Nos acostumamos a associar esse termo com a lei. Se cruzamos a lei, somos chamados à responder com nossa reponsabilidade. Vem da palavra “sponsor” que em latim refere-se a “promessa solene” tendo a conotação de apoio, incentivo ou aposta. Por isso, creio que o ponto chave aqui é a ultrapassagem do plano da responsabilidade civil ou social, das obrigações, direitos e deveres, para o que poderíamos chamar de implicação com a relação.

Digo isso porque vejo muitas relações nas quais a obsessão com as reponsabilidades de cada um cria uma “irresponsabilidade” geral com a relação, cada qual culpa o outro, ninguém cuida. Passar da responsabilidade para a implicação envolve um arco permanente entre o passado e o futuro. O mais comum é que aqui se interponha um terceiro termo que é a própria patologia da implicação, a saber: a culpa.

Muito frequentemente brigamos para saber de quem é a culpa simplesmente para suspender nossa responsabilidade e para destituir nossa implicação. Por exemplo, diante de um ato que ofende o “comum” de uma relação, o culpado “se” penitencia (para si), o responsável “promete” (para o outro), o implicado “repara” (para o comum).

Implicar-se não é apenas se fazer proprietário do que se tem, mas criador do que não se possui e do que ainda não está ali. Por isso nos responsabilizamos por atos e objetivos, mas nos implicamos em sonhos e desejos. Implicar-se é assumir e interiorizar uma regra de outro tipo, pois envolve assumir riscos e perdas imponderáveis de antemão. Este salto no abismo, como falava Kierkegaard, este desejo decidido como dizia Lacan, é o que o neurótico recusa até onde ele pode. Este é o ponto onde nossa dependência, que marca o início e o fim de nossa vida, se concilia misteriosamente com nossa autonomia.

É comum ouvir da geração mais jovem que essa é uma geração em que vigora a competição de “quem se importa menos”. Como perceber quando o meu ego está falando mais alto? As pessoas se auto-boicotam por medo de “sentir”? É uma geração que não está preparada para lidar com a frustração e, por isso, constrói muros de autoproteção?

Sim, é uma geração que cresceu sob o grande projeto do muro protetor, que aprendeu que diante da diversidade e do conflito é possível, antes de tudo, esquivar-se e modificar a realidade em vez de modificar-se a si mesmo e aos seus pontos de vista.

Junto com esta estratégia, que é social e política, mas também intersubjetiva e moral, aprendemos que sentir pode ser perigoso e que reduzir o atrito com a realidade é um caminho sempre disponível.

Lembremos que foi a geração na qual as medicações psicoativas e o discurso das neurociências aplicadas floresceram como grande expectativa para o tratamento de conflitos. Mas como age “subjetivamente” um anti-depressivo?

Pergunte para alguém que vem tomando isso há algum tempo. Ele cria uma espécie de colchão de ar entre você e a realidade, é um alívio, as coisas ficam mais leves, surge um conforto com seu próprio corpo e aquele sistema de coerções mentais que você aplicava a sua vida continua lá, mas parece muito menos “pesado”. Paralelamente, como uma espécie de bônus secundário, muitas das dificuldades ligadas à insatisfação ou a dificuldade de satisfação sexual ficam mitigadas, pois há um rebaixamento da libido.

Então o que temos: condomínios que nos afastam do outro, mas também aliviam o trabalho de negociação com a diferença que mora do outro lado, táticas de evitação do confronto e de repressão da diferença por meio de evitação calculada e redução do desprazer por meio de substâncias químicas (aqui vou colocar as legais e as ilegais no mesmo pacote).

Aprendemos que sentir pode ser perigoso e que reduzir o atrito com a realidade é um caminho sempre disponível.

Isso tudo é ruim e deveríamos enfrentar a realidade como ela é? Acho que não, as táticas de evitação e os sistemas protetivos são muito importantes, particularmente quando pensamos nas populações que sofrem os efeitos deste processo sem dispor dos mesmo meios e sem contar com os recursos para manipular a realidade, os que estão do outro lado do muro, por assim dizer.

O que é problemático é a redução artificial do tamanho do mundo, a expansão, igualmente ilusória do tamanho do eu, por exemplo, por meio de modos de criação e de discursos que nos fazem crer que somos realmente “especiais”, “únicos” e “naturalmente singulares”.

Cedo ou tarde o choque com um mundo muito maior ou com um ego, proporcionalmente muito menor, virá, e aí teremos um longo e penoso trabalho de readaptação.

dieta do ego, que ainda não consegui emplacar na mídia (risos!), é necessária quando começam os sinais de que seu narcisismo está entrando em obesidade mórbida:

– surtos recorrentes de cólera (este afeto dos que acham que tem mais poder do que realmente tem, como diziam os estóicos)
– disposição emulatória (fazer o outro pensar ou sentir que ele é muito mais do que ele é de fato e do que você realmente pensa que ele é)
– ressentimento reativo (diante de um choque de realidade, como por exemplo, fui demitido, orientar-se para a forma, a maneira e os modos como isso foi feito em vez de para o fato ele mesmo)
– muro da indiferença (crer que quanto mais indiferente alguém se mostra, mais independente e autônomo esta pessoa é)
– atitude de síndico (também conhecida popularmente como “mimimi”, ou seja, colocar-se como árbitro do mundo, dos discursos e das atitudes)
– e a bela alma (atitude descrita por Hegel daquele que observa o mundo do alto de uma montanha, descreve como ele está caótico e inabitável, mas não percebe que sua própria atitude concorre para manter o mundo e a si mesmo, tal como ele está).

Consulte sempre a balança de sua alma, verifique se você está fazendo exercícios na direção de deflacioná-la ou de inflá-la, analise que alimento você está fornecendo para sua alma: Conceição Evaristo e Paul Auster ou Facebook e Instagram?

Em certos casos o que pode estar faltando na sua vida é um regime.

Você chamou a atenção para a capacidade das redes sociais em “deformar o tamanho do eu”. Como se manter atento à isso? Podemos evitá-lo?

A palavra deformação é empregada aqui em sentido não inteiramente metafórico, pois o eu é algo que se “forma” (no sentido de que ele é produzido no interior de certas experiências de reconhecimento) e também que possui uma “forma”, uma vez que, como afirmou Freud, “o ego é antes de tudo a projeção de uma superfície (forma) corporal”.

Isso não quer dizer que o eu é uma forma, mas que ele se reconhece e se inscreve como uma imagem que o representa simbolicamente. A formação da imagem requer certas propriedades óticas: distância, proporção, volumes, cor e unidade.

O ambiente discursivo e relacional da vida digital define-se por padrões mais ou menos regulares que condicionam a nossa inscrição em imagens. As páginas das redes sociais pré-definem certos formatos e não outros, as mensagens são distribuídas por meio de regras opacas, como os algoritmos, e os efeitos do uso de uma palavra são relativamente imprevisíveis do ponto de vista do espaço-tempo na qual ela será lida e interpretada.

Isso explica, em grande medida, a prevalência dos dois afetos imaginários fundamentais descritos por Lacan: a paixão e a agressividade. O narcisismo é o nome conceitual para este sistema de formação e reconhecimento de formas que envolve também um tipo de satisfação que ocorre quando somos reconhecidos na imagem na qual nós mesmos nos reconhecemos.

A linguagem digital e as redes sociais em particular nos “viciam” tão facilmente porque nos oferecem meios para reduzir o tamanho do mundo, criar muros de invisibilidade, agregar massas de identidades semelhantes, projetar inimigos de ocasião.

Portanto, o tamanho do eu é uma função envolvendo três termos: alguém (x) se representa na imagem (y) para um terceiro (z). Este terceiro pode ser outro alguém (x) mas também o conjunto, o grupo e, no limite, o mundo humano como sistema simbólico organizado.

Percebe-se, assim, que quando o mundo é pequeno, o tamanho do eu se expande trazendo a satisfação de sermos amados simplesmente por existir nesta forma específica.

Ora, a graça de crescer é descobrir que há outras “interessâncias” no mundo e outras satisfações que vão além de reencontrar o nosso lugar especial no olhar do outro. Mas quando não conseguimos manter este trabalho de fazer reconhecer e realizar nosso desejo no mundo, frequentemente realizamos uma estratégia corretiva: diminuímos o tamanho do mundo.

Esta deformação de perspectivas emprega táticas como: tornar irrelevantes aqueles que nos contrariam, fazer de conta que aqueles a quem não damos importância na verdade não existem (simbólica ou materialmente), destituir o outros de dignidade, razão ou valor.

Ora, a linguagem digital e as redes sociais em particular nos “viciam” tão facilmente porque nos oferecem meios para reduzir o tamanho do mundo, criar muros de invisibilidade, agregar massas de identidades semelhantes, projetar inimigos de ocasião (só para gozarmos entre nós do fato de que não somos como eles), criar idealizações massivas sobre como são as vidas alheias (que primeiro nos fazem sentirmos maiores do que somos só porque pertencemos só clube A ou B) e último,mas não pior, o sentimento de que o outro (a rede) está sempre lá, esperando por nós, pronto para nos dizer: “você existe e é importante para nós apenas porque nos dá a sua maravilhosa presença”.

Ressalto que não há nenhuma necessidade de usar a rede e de fruir da experiência digital cedendo a tais tentações narcísicas, mas é possível que a nossa experiência ainda esteja muito desprevenida de como funcionam tais deformações.

Depois que elas se instalam, nós temos os efeitos terríveis gerados pela descompressão narcísica, que é quando saímos da bolha e damos de cara contra o muro, quando nos sentimos infinitamente pequenos, diante de um mundo infinitamente maior (cheio de perigos invisíveis) e diante dos quais nos sentimos mais e mais irrelevantes, frente a ideais mais e mais superficiais e empobrecedores.

A tecnologia potencializa o paradoxo da escolha por meio dos aplicativos de namoro: quanto mais opções eu tenho, mais dfícil é escolher. A impressão que se passa nesses apps é a de que o “custo de oportunidade” para estar com alguém é muito alto. Se eu posso viver mil sensações com mil pessoas, por que escolher viver apenas com uma?

Sou completamente a favor e defensor ferrenho de aplicativos. É um dos bons experimentos sociais que vi aparecer em minha geração. Mas como qualquer nova tecnologia ela destruiu muitos incautos e criou também novos problemas.

Se você usa um destes aplicativos como um self-service de sexo ou relacionamento fácil, o que você vai receber em troca é exatamente isso: ser usado como um pedaço de picanha. Mas não venha culpar o aplicativo, mas sim o uso débil e pouco criativo que se faz dele.

Considere o problema: 5 milhões de pessoas que precisam encontrar para si … uma outra pessoa. A tarefa é incrivelmente complexa.

Quando estava na faculdade, discutíamos uma destas pesquisas que provava como a maior parte das pessoas se casam com outras que moram no máximo a cinco quarteirões da sua casa. Tínhamos os dados antropológicos que as comunidades humanas não suportam mais de 150 pessoas, depois disso elas “naturalmente” se dividem e se afastam colocando a convivência novamente em um nível de complexidade suportável. Depois descobriu-se que as redes sociais também respeitavam este número mágico (chamado de Dunbar).

Ora, ter 5 milhões de pessoas pela frente é uma tarefa sem precedentes, incomparável com o tempo em que se colocava anúncio no jornal para achar uma noiva ou, até mesmo, à época de Freud, em que a função de casamenteiro era muito respeitada.

A graça dos aplicativos é que eles propõem que você se apresente de forma singular, que você diga a algum outro do que é feita a sua diferença e seja, consequentemente, capaz de reconhecer a diferença que faz diferença.

Se você diz que gosta de cerveja e assiste Faustão, é isso que você vai criar do outro lado. Se você acha que sua photoshop bonitinha é suficiente, então é isso que você terá do outro lado. Isso vale para papo mole, para os encontros pré-formatados, para o sexo regular.

Mas aí entra a conversa que fizemos acima, na hora de “forçar” a diferença, onde estão os recursos para isso? Não estão, em vez disso só vem comunidade de gosto e identificação: você gosta de séries eu de futebol, tu curte samba eu tecno, etc. Isso é baixa qualidade de conversa.

Lembro de uma paciente que descobriu esta regra do jogo e começou a fazer a sua apresentação em canto gregoriano. Quantos entenderam? Dois ou três … os que realmente importavam. Mas veja, isso dá trabalho, muito trabalho, de procurar, de falar, de escolher, de tatear, de experimentar. É esse trabalho que faz o amor valer a pena e cria qualidade para a experiência.

A monogamia não é algo natural. Ela foi aprendida por nós como sociedade. Mas, se estamos sempre nos transformando, por que insistimos nessa ideia?

Penso que a monogamia hoje reformulou bastante sua gramática. Há expectativas e tolerâncias que fazem a noção de fidelidade dilatar-se muito. Colocamos o desejo como uma condição maior para a realização de uma vida em seus próprios termos. Mas atenção, o desejo não é apenas a consecução erótica das pulsões, ele é também algo que acontece no interior de uma história, a história dos desejos desejados.

Esta história cria “regras”, “expectativas” e “limites” móveis como o litoral e não fixos como uma fronteira. Esperamos que alguém mantenha-se fiel, portanto, ao seu próprio desejo. Toleramos cada vez menos aqueles acordos nos quais um casal fica junto ou se constrange a ficar junto por causas “externas”.

Mas manter-se fiel ao próprio desejo é difícil e intricado quando percebemos que nosso desejo é causado pelo desejo do outro. Se quero muito que você queira, às vezes isso cria um efeito “milagroso” de que você passa a querer simplesmente porque percebe que eu quero. Esse transitivismo do desejo é infernal pois ele leva a zonas cinzentas de indiferenciação que valem para a causação e para a “descausação” do desejo. Ou seja, se eu não quero, isso é um efeito despotencializador para o desejo do outro.

Mas atenção. Surge aqui a ilusão de que este efeito mágico do contágio desejante nos dá poderes para “criar” e “controlar” desejos alheios, e pior, os desejos próprios. Isso não é bem verdade. Como todos que enfrentaram a tarefa de criar filhos sabem, um dos capítulos mais amargos do desejo é aquele da criança que faz birra e diz que justamente algo se torna impossível de querer simplesmente porque os outros, neste caso, os pais, querem.

Portanto, a monogamia se tornou mais complexa, há formas de traição sem amor, com amor, com intimidade sem intimidade, envolvendo amigos próximos e frequência, ou até lugares comuns, bem como quarentenas e regimes de vigilância consentida. Tudo isso respeitando mais ou menos a regra geral de que o desejo é soberano, logo, se há terceiros e quartos (geralmente os quartos são os piores), envolvidos a escolha pode ser alterada sem grande consequência.

Mas na prática a teoria é outra. Não conseguimos nos separar tão fácil assim como um delete ou um unfollow nos faz acreditar, nossa timeline insiste em guardar memórias indesejáveis e somos surpreendidos por um ciúmes devastador quando encontramos x com y.

Queremos uma vida com o desejo no timão e o gozo na popa, mas ela logo começa a fazer água e lembramos que uma vida de amores fugares é uma vida de cansaço e déficit de intimidade.

Logo, acabamos colocando em cartaz ainda que seja no mais escondido de nosso cine privê: Monogamia II, o Retorno … desta vez com emoção. Isso torna o casamento contemporâneo uma perversão consentida, um contrato impossível entre pessoas e coisas.

Ao mesmo tempo, novos modelos de relacionamento estão cada vez mais sendo discutidos, apesar de sempre terem existido, vide os trisais, amor livre, poliamor, etc… É possível que, para cada indivíduo, passe a existir um tipo de “contrato” que funcione? Como lidaremos com essa multiplicidade de acordos?

Não acredito em “contratos” que funcionem para esta matéria justamente porque a coisa mais interessante no amor é que ele suspende ou mostra os paradoxos de nosso desejo de contratualizar relações.

Certo que desde a marcha triunfante da modernidade nos tornamos cada vez mais indivíduos, deixando para trás vínculos e formas de afeto mais coletivas, cuja matriz girava sempre mais ou menos em torno do estado, da família e das formas religiosas.

Nosso processo de individualização é também o processo de institucionalização das relações e de consequente declínio das experiências em torno do comum. Assim, nos tornamos nascidos e criados para nos entendermos cidadãos livres, capazes de livremente efetuar contratos e livremente impor sistemas de responsabilidade e controle garantido pela hierarquia de regras, regulamentos leis e normas.

Muito legal, né? Só que quando vamos aplicar a regra da livre associação às formas de relação, ressurgem todos os problemas ligados às experiências comunitárias e que foram suprimidos historicamente. Não quero sentir que serei substituído ou que posso substituir o outro como uma peça contratual. Não quero sentir a solidão a dois que existe quando as relações estão contratualizadas. Não quero ter que cumprir fidelidades por meio coerções e compromissos.

O pacto de todos os pactos não vem de fora apenas, ele vem também da palavra das pessoas, de sua potência de responsabilidade e criação, não apenas de obediência e força. Os pactos são formados também na intimidade da indeterminação, onde nos ligamos lá mesmo onde não somos perfeitos e acabados indivíduos. Os pactos, aliás, são feitos para tratar nosso sofrimento por ter que viver uma vida inteira e totalmente no formato “indivíduo”.

O que pode estar atrelado à ideia de amor para as próximas gerações?

O amor será uma substância cada vez mais rara e por isso mesmo cada vez mais preciosa, justamente porque sua ocorrência se torna mais improvável. Estamos intoxicados com formas pré-fabricadas de amar e ser amado, formas institucionalizadas e garantistas de nos prevenir contra as decepções e dores, que são horríveis mesmo.

A vida em estado de cansaço e precariedade, a vida em fluxos de despersonalização, causadas pela intrusão do privado sobre o público e do público sobre o privado, sem a criação correlata de efeitos de intimidade tende a ter seu valor reduzido.

Quando digo isso, penso na observação crítica de Freud contra as religiões, não contra o sentimento comunitário as ilusões produtivas que elas podem criar, mas ao que ele considerava o pior malefício que elas traziam para vida psíquica, que não era a repressão sexual e a normatização dos costumes, mas o cultivo do baixo valor da vida.

Seja pela narrativa de que a boa vida começará depois desta, seja pela ideia de que a vida na comunidade é soberana em relação a vida de cada um, seja ainda pela ideia de que uma vida em pecado não vale a pena ser vivida, temos por todos os lados algo que inusitadamente se casa com os apelos mais contemporâneos do capitalismo neoliberal de última geração, ambos concordam no axioma de que “você é irrelevante“.

Estamos intoxicados com formas pré-fabricadas de amar e ser amado, formas institucionalizadas e garantistas de nos prevenir contra as decepções e dores, que são horríveis mesmo.

E esta irrelevância é consumada em teorias de transformação muito empobrecidas. Esta irrelevância é institucionalizada por meio de políticas de indiferença e da consagração da cultura depressiva de que se você perdeu o emprego, se não tem um amor, se você se sente irrelevante ao se medir com ideais plásticos ou operacionais, sem espessura ou história, isso tudo acontece por culpa sua.

O amor é, por definição, uma pequena máquina que permite criar e manter relevâncias para além disso. Ele é um antídoto para o vírus da indiferença, do tédio e do baixo valor agregado de nossas vidas, que acaba autorizando nossa tolerância obscena para com vidas que são desprezadas e exterminadas sem consequência.

Mas como tal, ele terá que sair do lugar de uma substância fácil e barata, que muda todas as coisas por sua própria presença. O amor precisa ir para o lugar que lhe convém mais, não sem desejo e gozo, mas como efeito de um trabalho de subjetivação que hoje ainda desprezamos porque não são inteiramente institucionalizáveis.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Guilherme Carvalho.

Foto: O psicanalista e professor Christian Dunker.

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