Acusação de 2012 voltou a julgamento. Alunas e professoras relembram que a violência sexual ainda persiste na universidade
por Giovanna Costanti, Carta Capital
Na manhã da quinta-feira 2, um grupo composto em maioria por mulheres se agrupava no corredor do segundo andar do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Praça da Sé. A movimentação já era esperada, vide as duas viaturas e alguma meia dúzia de policiais militares a postos nas entradas.
As mulheres foram chegando aos poucos, na manhã gelada e nublada. De idades variadas, alunas e professoras da Universidade de São Paulo aguardavam pelo julgamento da apelação pela absolvição de Daniel Tarciso de Silva Cardoso. Em 2012, quando ainda era estudante da Faculdade de Medicina da USP, Daniel foi acusado de ter dopado e violentado sexualmente pelo menos seis alunas.
Três vítimas fizeram a denúncia formalmente, mas apenas um dos casos foi parar na Justiça. É este que aguardava o julgamento. A opinião geral das mulheres que ocupavam o corredor era de que o episódio, apesar de não estar isolado, é paradigmático. Isso porque Daniel já havia sido absolvido em primeira instância, quando o caso foi a julgamento em 2015, pelo juiz Klaus Marouelli Arroyo, da 23ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob a alegação de que não haveria provas suficientes.
Além da absolvição, o ex-policial militar não foi expulso da universidade. Sob forte pressão dos movimentos de mulheres que começaram a se organizar na época e por conta da grande exposição midiática sofrida pela USP, Daniel foi suspenso por 180 dias. Depois disso, retornou à universidade e concluiu o curso. Tudo de forma sigilosa, afirmam as representantes do Coletivo Feminista Geni, da Medicina.
Na época, a professora Ivete Boulos tomou a coragem de tentar impedir que Daniel recebesse seu diploma. Foi em vão. Ivete foi afastada e Daniel se formou. Hoje atua como médico com um registro do Conselho Regional de Medicina emitido em Pernambuco, já que o Cremesp recusou-se a emiti-lo. Segundo as estudantes, Daniel já declarou mais de uma vez que pretende se especializar em Ginecologia e Obstetrícia.
Na sessão, marcada para começar às 9h, o caso foi o terceiro e último a entrar em discussão. A expectativa era de que as quase 50 mulheres aglomeradas em frente a última sala do corredor pudessem assistir ao julgamento. “Foi um pedido da própria vítima”, contou uma das manifestantes.
Depois de aguardarem por mais ou menos uma hora, a advogada e membra da Rede Feminista de Juristas, Marina Ganzarolli, que teve contato com as partes da vítima, saiu da sala afirmando que a entrada não seria possível. Segundo Ganzarolli, o advogado de Daniel pediu que apenas o réu, os advogados e a parte participassem da sessão. A defesa do acusado “alegou proteção à vítima”. Não colou com as manifestantes, mas o desembargador deferiu o pedido.
As professoras da Rede Não Cala, alunas dos coletivos feministas – em especial da Medicina – membras do DCE da USP, advogadas e ativistas resolveram, então, esperar no corredor. Uma das membras do Coletivo Geni, contou, preocupada, que da última vez, no dia 19 de julho, a sessão havia sido cancelada e adiada.
Ontem a expectativa era grande. Combinaram que, em caso de vitória, gritariam “justiça”. Mas não foi dessa vez.
O resultado foi anunciado mais uma vez por Ganzarolli. Um dos desembargadores pediu mais tempo para reavaliar o caso e o seu voto. “O relator apresentou o voto mantendo a absolvição e o revisor pediu vistas. Isso significa que ele não proferiu o voto e existe a possibilidade de ele mudar de opinião”, explicou.
A advogada acredita que o revisor decidiu verificar o processo com mais calma depois de ouvir o advogado da vítima. Para ela, isso é um indicativo de que ainda existe a possibilidade de ele apresentar um voto dissidente. Se esse voto for a favor da vítima, uma desembargadora mulher e um desembargador com experiência em violência de gênero, que também participam do processo, podem endossar uma maioria contra o voto do relator, o único já deferido.
Se o réu foi declarado culpado, nas próximas sessões, será uma vitória. Isso porque seria o primeiro caso de estupro sofrido por uma aluna da USP a ser punido na Justiça. Entretando, vale lembrar que que esse caso passa longe de ser pontual.
Casos persistem e são subnotificados
O caso de Daniel, apesar de correr sob sigilo na Justiça, está descrito na famosa CPI dos Trotes, instaurada em 2014, na Alesp, e finalizada no ano seguinte. A CPI foi criada pelo ex-deputado estadual Adriano Diogo (PT) e foi estimulada pelos casos de estupro que vinham sendo relatados na USP.
A comissão reuniu também relatos de violências físicas, racismo, LGBTfobia e humilhações de todo o tipo, em todas as universidades paulistas, principalmente durante os trotes, na recepção dos calouros. O relatório final constatou mais de 100 casos de estupro na USP e, segundo a professora de Antropologia, Heloísa Buarque, ele expôs um verdadeiro pacto de silêncio que ocorria dentro da universidade.
Heloísa é uma das coordenadoras da Rede Não Cala, criada no momento da eclosão dos casos da CPI. Segundo ela, há uma subnotificação do estupro no campus. Para Marina Ganzarolli, é a própria ineficácia da universidade em punir, que gera a subnotificação. Uma das alunas do Coletivo Feminista Geni, Mariana Limberg, concorda e afirma com o fim da comissão, em 2015, o assunto foi esquecido mais uma vez. “Existe uma cultura do silêncio, tudo acontece na surdina”, acrescenta.
A USP tem um escritório dedicado à mulheres, mas segundo Heloísa, ele só tem três funcionárias contratadas. A professora relembra uma fala da coordenadora do USP Mulheres, que afirmou que “na USP nem tem tanto caso assim, só chegou um”. A professora rebate: “Se só chegou um caso não quer dizer que não houve outros. Se só chegou um provavelmente teve mais nove, porque só 10% dos casos são denunciados.”
Segundo ela, a cada ano a Rede recebe, pelo menos, dez casos de alunas que sofreram estupro, no campus ou em festas da universidade. Algumas buscam as professoras procurando atendimento. “Só eu já atendi umas 15 meninas nos últimos dois anos. Mas dessas só uma fez denúncia formal na universidade”, conta.
Segundo dados do Instituto Avon, de 2015, 13% dos jovens no Brasil já cometeram violência sexual contra uma mulher na universidade. A mesma pesquisa afirma que 38% já cometeram algum tipo de violência contra mulheres no ambiente universitário. Por meio de buscas na internet, o Jornal do Campus, que circula na USP e é produzido pelos alunos do curso de jornalismo, mapeou cerca de 130 casos nos últimos cinco anos. Para o mesmo período, as estatísticas da Superintendência de Segurança da USP apontam somente 1 caso no campus da capital.
Segundo Mariana, antes da CPI os casos eram escrachados e os alunos se vangloriavam de terem transado com meninas bêbadas ou desacordadas, que não consentiram com o ato sexual. “Eu não era nem da USP e eu já sabia que se você fosse numa festa da Pinheiros [FMUSP] você tinha altas chances de ser estuprada e isso era algo que todo mundo sabia”, relembra a aluna do segundo ano.
“Eles adulteravam bebida sistematicamente, tinham barracas, “os cafofos”, onde eles levavam meninas bêbadas para transar. Mas era tudo encoberto pela diretoria”, afirma Carolina Henandes Rodrigues, que entrou na universidade em 2009, e cursava FAU na época. Hoje, ela também é aluna de Medicina e participa do Coletivo.
“Hoje em dia se isso acontece não é tao aberto. Por exemplo, dentro dos alojamentos quando tem eventos dos times a gente ouve que ainda existem algumas práticas, mas agora se sabe que é feio, ninguém fala. É menos aceito”, comenta Carolina.
As alunas do Coletivo Geni também afirmaram que o entendimento do estupro como um ato negativo e criminoso faz com que um fato surpreendente aconteça: a aluna que denuncia é vista como inimigo comum dentro da universidade, por estar “sujando o nome” do instituto. Os agressores não são vistos dessa forma. A retórica vem tanto dos alunos quanto dos funcionários dos altos escalões. Entre a Atlética, Mariana conta que é nome comum o dito que a aluna está “sujando o nome da casa de Arnaldo”, em referência ao Doutor Arnaldo, que tem seu busto como um dos símbolos da FMUSP, também chamada de Pinheiros.
Hoje em dia, segundo as estudantes, antigos cartazes de festas estampam as paredes da sala da Atlética da Medicina. Mulheres nuas são retratadas de forma sexualizada nos folhetos de uma das tradicionais festas, hoje proibida, que acontecia em um bosque. Lá, elas contam que os estupros eram sistemáticos e considerados normais. Mas não eram chamados de estupro. Entre os homens, ainda hoje, se prolifera a retórica de que “foi só sexo”. O consentimento ainda é um tema pouco discutido.
“É importante dizer que o Daniel usa o mesmo tipo de argumento que está na maior parte dos casos de violência sexual. Que é dizer que foi só sexo, não foi estupro. Então primeiro esse tipo de alegação é muito comum porque é o que funciona de algum jeito no sistema jurídico ainda”, afirma Heloísa.
Segundo a professora, a maioria dos atos de violência acontecem porque o agressor não entende o “não”. “O caso da medicina é mais chocante porque alguns dos casos que a gente viu a menina estava bêbada e o jovem não reconhecia a própria violência, o que já não justifica o ato. No caso do Daniel é mais grave ainda porque é planejado. Ele literalmente dopou as meninas, é preciso dizer que esse tipo de caso que a vítima está em total situação de vulnerabilidade”, completa.
Segundo Marina Ganzarolli, até mesmo o judiciário parece não compreender o que é consentimento. “Mesmo após Daniel ter afirmado que dopou as vítimas, o juiz usou o fato de que ela consentiu entrar no apartamento para provar consentimento no ato sexual”, afirma. Para ela, parece que o judiciário só entende que não foi consentido quando a mulher é amarrada ou gravemente violentada.
Denúncias não levam a nada
“Ele se formou tendo estuprado seis meninas. Se ele não é punido, imagina os outros casos”, comentava Mariana, antes do julgamento. A impressão da maioria das alunas é realmente essa: casos em que a punição ocorre, são exceção. As denúncias praticamente não levam a nada dentro da universidade.
Fora dela, na Justiça, o processo também é doloroso à vítima, que passa por violências institucionais. Segundo Marina Ganzarolli, os argumentos do agressor são valorizados em detrimento dos argumentos da vítima. “Uma desvalorização da palavra da mulher”, afirma. Mas, segundo ela, o índice de falso testemunho nesses casos é igual ao de qualquer outro caso, que é de 1 a 2%.
“É muito raro haver condenação nos casos de estupro porque apesar do fato narrado se enquadrar totalmente no crime de estupro, normalmente por um conservadorismo do sistema policial e do sistema judiciário, por uma desigualdade de gênero, um machismo muito naturalizado, as suspeitas recaem muito mais sobre a vítima do que sobre o agressor nesse tipo de crime”, explica Heloísa.
“A Justiça leva a sério uma versão e desacredita a outra. Se já há desconfiança quando o estuprador é uma pessoa violenta e desconhecida, imagine quando é um colega de faculdade”, completa. De fato, os casos de estupros nas universidade se encaixam no perfil dos tipos de violência sexual mais comuns no Brasil: em 70% dos casos, os agressores são pessoas próximas, como colegas, namorados e membros da família.
Segundo a professora, só os casos extremamente violentos não sofrem uma desconfiança tão grande, por exemplo, quando deixam marcas no corpo da mulher. Porém, as marcas não visíveis muitas vezes não são levadas em conta.
A saúde mental das alunas que passam por uma experiência de assédio ou violência sexual é colocada em xeque. Heloísa conta que muitas adoecem, faltam as aulas, começam a ter um desempenho mais baixo na faculdade e acabam não permanecendo no curso. Enquanto isso, os culpados ficam terminam seus cursos impunes.
“A impressão que dá é que nunca se responsabiliza ninguém por essa violência. A sensação que fica é da impunidade. A denúncia formal não vem exatamente porque as pessoas desacreditam do sistema”, explica a professora. Por outro lado, ela acrescenta que alguns dos rapazes, por conta dessa impunidade, repetem a cena de agressão diversas vezes. E fazem isso com tranquilidade.
Quando as mulheres rompem as barreiras sociais e fazem a denúncia formal, elas conhecem as barreiras institucionais. A primeira investigação, dentro da universidade, é a sindicância. O processo administrativo é a segunda etapa. Só ele pode levar a uma punição ao agressor. A punição mais “grave” que o diretor da unidade pode dar ao aluno é a expulsão. Mas Heloísa reitera que só o sistema jurídico, fora da universidade, pode realmente punir o aluno.
“A mulher tem que abrir uma sindicância, depor na sindicância, depois depor no processo administrativo. E no processo administrativo ela pode ter que depor frente a frente com o agressor. Isso constitui uma nova violência. Uma revitimização da pessoa. Por isso que a gente está dizendo que é preciso mudar as regras do regimento”, afirma Heloísa.
Segundo Heloísa, o ex-reitor Marco Antonio Zago afirmou em sua gestão que as alunas não tinham a “hombridade de denunciar”. “Ele fala isso sem entender como é difícil denunciar, como não há um lugar de atendimento adequado para fazer a denúncia, não há sigilo adequado, as comissões de direitos humanos não têm uma normativa, não têm uma regulação”, comenta Heloísa. “Eu mesma já atendi vários casos de meninas que me contaram coisas, e que não tinham força e coragem de denunciar, que estavam muito fragilizadas.”
As denúncias formais são raras não só por conta desse processo. As alunas da Medicina contam que fazer a denúncia pode colocar por água abaixo a carreira da aluna.
“O mundo da medicina é muito pequeno, todo seu círculo social é da faculdade. Depois você se forma, como você vai entrar na residência se fez a denúncia? Quem vai querer te dar estágio? Quem vai te chamar pra fazer plantão?”, indaga Carolina.
“Existe a história que quando as meninas faziam a denúncia falavam para elas que quando elas chegassem no internato, ninguém passaria caso para elas, como forma de represália”, explica Mariana.
Uma das membras da Rede relata um caso muito famoso de alunos que produziram um “carômetro”, com os rostos das alunas que fizeram a denúncia na unidade de Medicina. A lista circulou por WhatsApp. O texto pedia aos médicos do internato e da residência que não ensinassem as aulas, alegando que elas “não eram pessoas de confiança”. “As pessoas pensam muito na colocação delas no mercado mais tarde”, afirma a professora.
Segundo Heloísa, o mesmo acontece na FFLCH, principalmente com alunas que desejam seguir o meio acadêmico. Acuadas elas resolvem não denunciar um aluno ou professor. Elas recorrem a táticas, como mudar de turma, trocar o orientador e até mesmo ingressar em outro curso.
A universidade está despreparada
“No momento da CPI, veio a confirmação de como a universidade não estava sabendo atender esse tipo de coisa, aliás, um problema que a gente ainda está enfrentando”, explica Heloísa. “No geral a estrutura de mais poder da universidade continua culpabilizando as vítimas por elas não denunciarem, sem perceber que não é possível que elas denunciem se elas não confiam na estrutura da universidade.”
O despreparo começa na subnotificação. É difícil saber da totalidade dos outros casos denunciados na USP porque as denúncias são sigilosas e elas são sempre feitas na unidade. O único e pequeno escritório do USP Mulheres não tem a estrutura necessária. Segundo membras da Rede, a ouvidoria, instaurada após a CPI, também tem sido bastante omissa. Com os cortes de gastos da gestão Zago, o número de assistentes sociais foi cortado. Na Superintendência de Assistência Social, um funcionário é responsável por 700 bolsistas.
Frente às falhas, a Rede Não Cala elaborou propostas, que foram levadas para a reitoria anterior. O projeto propunha a criação um centro de referência, mudanças no regimento da universidade e a criação de um lugar de encaminhamento jurídico interno mais independente de cada unidade. “O reitor formou um outro grupo de trabalho fora da Rede, não chamou nenhuma de nós. E a gente não sabe como está sendo feito isso na atual reitoria”, afirma Heloísa.
Segundo ela, outro problema é que o regimento não tem uma declaração de igualdade. As regras do regimento não foram feitas para esse tipo de caso. “Todas as universidades que querem combater violência elas tem que ter no seu estatuto uma declaração de igualdade das mulheres, das pessoas negras, das pessoas LGBT”. Sem essa declaração, segundo Ganzarolli, a universidade só reforça um projeto hierárquico, que reforça violências de gênero, sexuais e raciais presentes na sociedade.
Unicamp e UFPR são exemplos de universidades que têm investido no debate da violência sexual. Elas apostam em um tripé: acolhimento e assistência social e psicológica, mudança no regimento e prevenção. Segundo a professora, o acolhimento deve ser feito principalmente por mulheres, especializadas nesse tipo de atendimento. Ela também elogia a iniciativa da Unicamp, que instalou um centro de saúde da mulher em seu Hospital Universitário. A USP, segundo ela, perdeu a oportunidade, com o desmonte do HU.
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Imagem: Grupo aguarda na frente da sala, no Tribunal de Justiça, enquanto julgamento acontece – Giovanna Costanti