Maria do Carmo Leal: “As mulheres são maltratadas, tem gritaria, sofrimento”

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Mortalidade infantil e materna, violência obstétrica, parto seguro e uma série de outros temas correlatos são os temas desta entrevista com Maria do Carmo Leal, professora do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/ Fiocoruz). Ela coordenou a pesquisa Nascer nas Prisões, cujos dados foram utilizados na argumentação a favor do habeas corpus coletivo para que as grávidas e mulheres que têm filhos até 12 anos fiquem em prisão domiciliar – vitória importante dos direitos humanos. Antes disso, coordenou também a pesquisa Nascer no Brasil, cujos resultados vêm sendo trabalhados por diversos setores, seu grupo inclusive, para melhorar a situação da atenção ao parto no país.

Esta é uma versão reduzida da publicada originalmente no periódico Cadernos de Saúde Pública. O conteúdo completo está disponível aqui.

A entrevista é de Marilia de Sá Carvalho e Luciana Lima, publicada em Cadernos de Saúde Pública, 06-09-2018.

Eis a entrevista.

Como é a sua história com o tema da saúde da mulher e da criança?

Quando cheguei na ENSP/Fiocruz, recém-formada, para fazer o curso de Saúde Pública, fui chamada para fazer parte da equipe do 1º inquérito populacional sobre hipertensão arterial, no Rio Grande do Sul. Foi um inquérito muito bem feito, eu aprendi muito. Um tempo depois, apareceu a oportunidade de participar do Programa Ampliado de Imunizações (PAI) e me envolvi muito com os programas de imunização, com as campanhas de vacinação.

Em 1984, fiz um projeto de pesquisa para estudar a etiologia das diarreias, que à época era causa muito importante de óbito infantil. Esse estudo foi financiado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), e com este recurso conseguimos comprar um dos primeiros microcomputadores da nossa escola, pois não havia por aqui. Nessa época comecei nessas questões na saúde da criança e depois fui estudar a mortalidade infantil.

Meu envolvimento foi cada vez maior com a mortalidade infantil, que aos poucos foi se tornando neonatal e se aproximando do momento do parto.

Atualmente, 52% dos óbitos ocorrem na primeira semana de vida, mas destes, a metade no primeiro dia após o nascimento, ou seja, em torno do parto. Fui amadurecendo a necessidade de estudar o parto e o nascimento. Fomos verificando também que eram poucos os grupos de pesquisa trabalhando nesse campo com uma visão de saúde pública. Se na área da criança tínhamos muitos e excelentes grupos, na área da mulher somente o grupo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tinha estudos de grande porte. Na nossa cronologia, estávamos já em meados da década de 2000.

A maioria dos estudos com a mulher era somente relacionado à saúde da criança.

Era uma forma nossa de enxergar a mulher apenas como mãe. Nós fomos descobrindo aos poucos que quando entramos para estudar a mortalidade da criança, em torno do parto, estávamos sem ver a mulher, víamos apenas a gestante. Se a criança está morrendo quando nasce, provavelmente a mulher também está morrendo, por problemas comuns.

A mulher fica esquecida, ou foi relegada, digo, até por nós mesmos, nosso grupo de pesquisa. Mas fomos aos poucos tomando o partido da mulher e atualmente publicamos mais com temas da mulher do que da criança, porque é uma área pouco trabalhada, quase abandonada e que temos de olhar com muita atenção, porque esta sociedade não vai melhorar enquanto não diminuir o desinteresse pela mulher, que é uma expressão do machismo que nos constitui.

Acho que essa questão do machismo nos arruína como sociedade, que combinado com a convivência acrítica com essa desigualdade social enorme que temos, faz de nós uma sociedade perversa. Se acrescermos a isso o racismo, a intolerância com as diferenças étnicas… Não somente a população negra, os  indígenas também. São questões gravíssimas que a gente tem.

Nosso primeiro projeto sobre a mortalidade perinatal, com ênfase na atenção ao parto, foi em cooperação com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Esse projeto, de âmbito municipal, foi o protótipo, o laboratório pra o Nascer no Brasil. No nosso próximo inquérito sobre parto e nascimento, o Nascer no Brasil II, nós vamos introduzir a temática do aborto.

O que você tem a dizer sobre as desigualdades regionais no Brasil? Antigamente era brutal a diferença da mortalidade infantil.

Isso mudou muito, e o que aconteceu nesses últimos 15 a 20 anos é que as diferenças regionais diminuíram bastante na mortalidade infantil. A mortalidade infantil no Brasil está em torno de 13 por mil nascidos vivos, no Rio de Janeiro está em 12 e nos estados do Nordeste 17, não muito acima. Quando comparada à de países desenvolvidos, temos 4 a 5 vezes mais óbitos.

E a mortalidade materna? Esse é um problema porque creio que esse indicador no Brasil é muito pior do que o da mortalidade infantil. O que tem a ver com a falta de valor, discriminação, com a falta de lugar para a mulher na sociedade, que termina por não cuidar dela da forma adequada. Cuidou-se muito mais da criança, fez-se um investimento grande para reduzir a mortalidade infantil e se obteve sucesso. Como visto, diminuiu muito a diferença entre as regiões e também entre os grupos sociais, mas na mortalidade materna nós temos um padrão que, se por um lado reflete também as diferenças regionais (variando entre 40 e 70 óbitos por 100 mil nascidos vivos entre as regiões mais ricas e mais pobres) e entre os grupos sociais, por outro, nos coloca em uma situação muito desconfortável, quando comparada à dos países desenvolvidos. Eles têm esse indicador 6 a 10 vezes menor que o nosso. Aliás, se considerarmos os estados do Brasil separadamente, em alguns nós temos valores mais elevados que 100 óbitos por 100 mil nascidos vivos, muito acima da média nacional que é de 60.

Não há explicação aceitável para a mortalidade materna ser tão alta. Recentemente, escrevemos um artigo para a Enciclopédia de Saúde Pública da Oxford e nos surpreendemos com os dados de Cuba: tem a menor mortalidade infantil da América — igual à do Canadá, de 6 por mil nascidos vivos, mais baixa que a dos Estados Unidos —, porém, tem uma taxa de mortalidade materna alta, de 30. Pra confirmar a minha hipótese da desvalorização da mulher latino-americana.

Isso é um dado radical, o óbito materno, mas eu estou ressaltando que o machismo da nossa sociedade latino-americana tem a ver com isso, com a desvalorização e falta de cuidado com a mulher, dado que a maioria dessas mortes é evitável.

E a proibição do aborto?

É a quarta causa da mortalidade materna no Brasil, é uma causa expressiva. Isso porque não é tudo investigado, eu suponho que seja maior. O aborto como causa de morte deve estar subnotificado porque é crime. As mulheres omitem.

A primeira causa de mortalidade materna é?

Hipertensãohemorragiasinfecções e aborto. Praticamente tudo é evitável. Nos países desenvolvidos predominam causas menos ou mesmo não evitáveis, mortes ligadas a doenças que a mulher traz. Por exemplo, lupusdoenças autoimunes, que são complicadas. Então, a maioria é causa indireta de morte, não é causa direta. No nosso caso, quase tudo é causa direta, que se bem tratadas num pré-natal adequado e/ou com uma boa atenção no parto, as mulheres não morreriam.

O pré-natal é fundamental para todos os resultados obstétricos e perinatais, mas o momento do parto tem grande importância. Já é conhecido o papel fundamental que têm as três demoras no atendimento ao parto para complicações obstétricas graves e o óbito materno: a primeira relacionada à percepção do problema pela gestante, que vai ser tanto mais precoce quanto mais informada ela for; a segunda, diz respeito à demora em chegar ao serviço de saúde; e a última, a demora para ser atendida adequadamente depois que chega ao serviço de saúde.

Todas elas, como podem imaginar, aumentam em mulheres com piores condições sociais e que vivem em lugares sem uma boa assistência ao parto. São casos dramáticos, por exemplo, de um sangramento cuja demora na percepção da gravidade, no atendimento e na efetividade do tratamento é fatal. O mais incrível no Brasil é que a elevadíssima taxa de mortalidade materna convive com 99% dos partos ocorrendo dentro de um hospital. Não era para estar assim, pois, de alguma forma, o acesso está garantido para todas.

Fale um pouco sobre parto no hospital e fora dele, esses movimentos que estão acontecendo agora de doulas, enfermeiras obstétricas.

Isso é uma coisa bem interessante que está acontecendo no Brasil. Temos dois tipos de resultado para o parto domiciliar: se ele ocorre no interior do Norte e Nordeste, em áreas de municípios muito pobres, onde a subnotificação do óbito infantil é grande, o parto domiciliar é associado à maior mortalidade ao nascer. Nós visitamos esses municípios de alta subnotificação de óbitos infantis, cuja taxa de mortalidade infantil não era compatível com as condições sociais dos lugares, para fazer busca ativa de óbitos em 2008. Íamos ao cemitério, falávamos com as pessoas da comunidade e por meio destas informações identificamos as mães de recém-nascidos mortos e não notificados tanto como óbito quanto como nascidos vivos. Fazíamos então uma avaliação nos domicílios desses municípios, onde encontramos muitos partos domiciliares, que nessas áreas, se associam à mortalidade infantil. Família em extrema pobreza, cujas mulheres são atendidas por parteiras que não têm formação e sem serviços de saúde de apoio por perto.

Distante, muito distante, do que ocorre nesses municípios pobres está o parto domiciliar nas capitais das regiões Sudeste e Sul. O nascimento domiciliar numa cidade como o Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, que algumas mulheres da classe média hoje optam por fazer, é realizado por enfermeiras obstétricas competentes para este atendimento e não vem representando risco para a saúde materna e do bebê. Ao contrário, são relatados como experiências de grande realização pessoal e familiar para as mulheres que o vivenciaram. Então, tudo no Brasil que você for trabalhar com parto tem duas versões, uma que é negativa e outra que é um bom indicativo.

Sobre o risco do parto domiciliar existe um estudo clássico feito na Inglaterra, denominado Birth Place, de 2014, que mostrou que, no contexto inglês, não há problema para a mulher e isto fica por conta da sua decisão e escolha. O estudo mostrou um risco ligeiramente aumentado para as primíparas, mas um estudo posterior comprovou que isto foi devido à qualificação inadequada das midwives nas áreas onde o problema ocorreu. Na multípara nenhuma diferença nos resultados para a mãe e o bebê quando a atenção era domiciliar ou hospitalar. É preciso dizer que os problemas com as gestantes são adequadamente identificados durante o pré-natal, que na Inglaterra também é feito pelas midwives. Quando há problemas de saúde e as gestantes são classificadas como de risco, elas são encaminhadas ao obstetra.

Sobre a questão das doulas, as pessoas confundem muito dizendo que elas fazem parto. Doulas não fazem parto, dão suporte físico e emocional, como orientar posições, respiração, ajudar no empoderamento da mulher. E fazem muito bem para a parturiente. Há, às vezes, uma grande confusão com esses papéis porque estamos vivendo uma mudança no modelo de atenção ao parto, com novos atores, com resistências por parte dos atores anteriores e isto sempre causa um estranhamento no início.

As doulas fazem um curso curto e adquirem noção de trabalho de parto e de complicações. Geralmente é uma mulher envolvida com essa questão, que quer ajudar as outras a terem um bom parto. Na maioria das vezes essa decisão de ser doula veio da própria experiência com um parto anterior.

Nós tivemos alguns problemas com a entrada da doula no serviço público. Às vezes, as doulas cobram pelos serviços no setor privado e isto está dentro do esperado. A gestante resolveu contratar uma doula, e tudo bem. Mas dentro do serviço público, nada pode ser cobrado. Então, houve enfrentamentos em algumas maternidades. E apareceu como proibição, mas, na verdade, a questão era a cobrança, não a doula. Agora as coisas estão mais calmas e são experiências interessantes que estamos vivendo no Brasil. A literatura também mostra que a presença da doula é boa para a mulher que está em trabalho de parto.

Como você leva essas coisas que você está nos contando para enfrentar o problema da Saúde Pública no país? Umas das discussões atuais da epidemiologia é o retorno do foco para a intervenção, para a saúde pública.

O compromisso é também de devolver para a sociedade, para os serviços de saúde, para os profissionais. E isso é uma coisa muito forte dentro do nosso grupo de pesquisa. Então, quando a gente viu essa situação tão ruim da assistência ao parto e ao nascimento, nos posicionamos com a intenção de participar do movimento de mudança.

O contato com as experiências de atenção ao parto em países desenvolvidos e toda a discussão sobre a necessidade de reforçar a autonomia da mulher para que ela possa ter o parto que ela quiser, fizeram toda a diferença para o nosso grupo de pesquisa, que é também de militância pela causa da maternidade feliz e autônoma. Digo mesmo que eu voltei muito injuriada com a nossa situação no Brasil depois que eu vi como são tratadas as gestantes e como nascem as crianças nesses países, comparando com o que nós fazemos aqui.

Estamos muito distantes dessa realidade?

Muito distantes. Em Londres eu fui num hospital universitário que tem a área da maternidade quase toda ocupada pelas midwives [parteiras]. E o que as separa da área obstétrica é uma porta. A maioria dos quartos não tem aspecto de hospital, com equipamentos embutidos na parede, parece um quarto de casa. Mas, se necessário, está tudo ali. E o companheiro dela, ou quem ela escolher para acompanhante, fica com ela, isto é assegurado. Tem banheiras, mas nem todas as mulheres desejam ter os filhos dentro d’água, embora possam se quiserem. A área para deambulação durante o trabalho de parto é muito ampla, cheia de plantas, climatizada para ter plantas o ano todo e com música suave, relaxante. A música ajuda as mulheres a se acalmarem e esse espaço tão agradável e silencioso permite o contato com elas mesmas, com seus bebês.

É um grande contraste com o que se vê por aqui, com as nossas mulheres pobres. O sistema de saúde inglês atende a todos, as mulheres que vi eram pessoas simples, mas estavam muito bem tratadas. Eu tive uma plena lição de cidadania, o que é receber uma criança, um cidadão inglês. Aqui não, as mulheres são maltratadas, gritaria, sofrimento, falta de espaço físico e de atenção. A luta das midwives é pelo cuidado uma a uma, ou seja, para cada mulher uma midwife, cuidado em tempo integral e dedicação exclusiva. Há também uma grande luta das midwives contra o excesso de trabalho burocrático, gastando muito tempo para anotar todos os procedimentos por causa dos processos que ocorrem, a judicialização da saúde.

Voltando à pergunta anterior conte sua experiência na intervenção, para mudar essa realidade de fato.

Fizemos muitas coisas. A primeira, junto com a publicação dos resultados desse estudo nos Cadernos de Saúde Pública foi o lançamento de um Sumário Executivo numa linguagem mais simplificada e agradável para jornalistas, profissionais de saúde e a sociedade em geral. Esse sumário executivo também foi distribuído pelo Ministério da Saúde e enviado com uma carta de agradecimento para todas as 266 maternidades que participaram da pesquisa. Um aspecto interessante desse documento era o item de recomendações para todos os setores envolvidos: gestores, profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e outros), universidades formadoras dos profissionais, famílias e também comunicadores sociais. Depois, lançamos outro número temático, numa revista inglesa denominada Reproductive Health, e na ocasião do lançamento, já em 2016, fizemos outro sumário executivo da mesma forma, com uma linguagem simples, apresentando os principais resultados. Esse foi um mecanismo interessante para aumentar o acesso aos achados da pesquisa e muito bom para os jornalistas fazerem suas matérias, suas pautas sobre o tema. Demos incontáveis entrevistas para jornais, televisão, rádios, blogs etc. Foram muitas mesmo, eu dei quase uma centena… Isso dá um trabalho imenso, que nós, pesquisadores, muitas vezes não temos paciência para fazer.

Outra coisa que deu certo nessa divulgação das ideias desses trabalhos foi a realização dos vídeos (aqui e aqui), dando voz às mulheres que mostraram com o relato das suas experiências que a atenção ao parto era ruim, sofrido e que elas se sentiam abandonadas e sozinhas. Na segunda pesquisa, o Nascer nas Prisões, mostramos o tratamento dado às grávidas no sistema carcerário e nos hospitais no momento do parto. Nessa segunda vez, os vídeos tiveram mais amadurecimento e o grupo da pesquisa participou mais da edição. Esses vídeos foram importantíssimos para divulgar os resultados do estudo.

E são vídeos que circulam no setor de saúde?

Circulam. O do parto, principalmente, a gente fez para colocar nas salas de espera para as consultas de pré-natal no setor público. Um era sobre o parto vaginal, o outro, sobre a cesariana. Mostrava o que era ruim no parto vaginal, o que não era para ocorrer e ocorria em alguns serviços públicos de saúde e depois mostrava a assistência ao parto em outros serviços que já fazem uma atenção adequada, que gera satisfação para as mulheres. O da cesariana seguia na mesma direção.

O que vem ocorrendo no SUS?

No SUS foi a Rede Cegonha, um programa que já vem se organizando desde 2011. É um programa que retoma os compromissos, os princípios de garantia do acolhimento das mulheres, com avaliação e classificação de risco, melhoria da qualidade do pré-natal, garantia da vinculação da gestante à maternidade e melhoria da atenção ao parto e nascimento, e acompanhante de livre escolha em todos os momentos da internação para o parto. Além disso, se compromete com a oferta de atenção à saúde das crianças de 0 a 24 meses com qualidade e com o acesso às ações do planejamento reprodutivo.

O programa criou uma metodologia de intervenção que contava, dentre outras atividades, com um facilitador, contratado pelo Ministério da Saúde, para trabalhar nas maternidades junto com a equipe local, para processar as mudanças. Também investiu recursos para modificar a ambiência das maternidades: obras para adequar o espaço físico para as mulheres deambularem, comprou poltronas para acompanhantes, leitos PPP (pré-parto, parto e pós-parto), de maneira que a mulher não precise ir ao centro cirúrgico para parir porque o parto não é uma questão cirúrgica. Além disso, buscou criar uma rede de apoio à atenção ao parto, organizando inclusive essa questão da vinculação, da referência, e criou algumas Casas da Gestante que são casas para abrigar mulheres que vêm do interior, que não têm facilidade de acesso, mas têm complicações na gestação. Também para mães que precisavam acompanhar seus filhos que necessitavam de internação em unidade de tratamento intensivo (UTI).

Foi uma pena que poucas dessas casas foram criadas. A ideia era criar uma rede de proteção para que a mulher não peregrinasse, para que o pré-natal melhorasse sua qualidade. Em 2017, nosso grupo, junto à equipe da Universidade Federal do Maranhão, avaliou a Rede Cegonha. Visitamos 640 maternidades do SUS que atendem juntas à metade dos partos do país, e os primeiros resultados mostraram que melhorou a atenção ao parto no sistema público.

Quais as principais dificuldades para avanços mais substantivos?

Eu acho que ainda há uma grande incompreensão por parte dos médicos, não de todos, sobre as vantagens do parto normal principalmente com a centralidade da mulher na sua condução, em relação à cesariana. A cultura da cesariana como a melhor solução para a mulher foi criada aqui no país e nós vimos que é uma opção conveniente para otimizar o trabalho do obstetra no atendimento ao parto. Então, muitos argumentos são usados para justificar essa escolha, desde os riscos para deslocamentos noturnos dos médicos nas cidades grandes, até o baixo valor pago pelos planos de saúde pela assistência ao parto.

Mas os médicos, os obstetras, têm de centrar suas escolhas na melhor evidência científica e, para o parto sem complicação obstétrica, a grande maioria dos partos, a recomendação é o vaginal. Mas vejo que estamos num processo de mudança. Muitos jovens obstetras, embora formados em escolas cesaristas, estão optando pelo parto vaginal. Aqui nas maternidades públicas da cidade do Rio de Janeiro uma expressiva parte dos partos é atendida por enfermeiras obstétricas. Esse programa no Rio de Janeiro tem aproximadamente 30 anos e mostra o trabalho colaborativo entre médicos e enfermeiros, o que vai moldando uma nova mentalidade de convivência e respeito mútuo entre estes profissionais. Os jovens médicos também se formam num novo contexto da prática clínica, baseada em protocolos, que por sua vez se baseiam em evidências científicas e sabem dos riscos da cesariana para a mulher e para o bebê.

Também no setor privado já está acontecendo essa mudança, e esse compartilhamento de espaço da atenção ao parto com os enfermeiros parece uma tendência sem retorno. O enfermeiro obstetra é o profissional de escolha segundo a OMS para a condução da atenção ao parto, por se associar na literatura com os melhores resultados obstétricos. Mas isso está longe ainda de ser equacionado no Brasil.

O que te levou ao estudo Nascer nas Prisões?

Pesquisar o parto e nascimento nas prisões ocorreu por um convite de amigos que trabalham com a saúde prisional, a Alexandra Sánchez e o Bernard Larouzé, que vinham há muito tempo me seduzindo para trabalhar com a questão das mulheres encarceradas. Eu tive medo, não queria me envolver com algo tão pesado e triste. Mas, depois de muito insistir, conseguiram me convencer. Foi o trabalho de pesquisa mais difícil que tivemos, pois o cárcere é fechado com muitas chaves. São muitas barreiras para conseguir entrar e também para realizar a pesquisa.

As mulheres vivem em condições muito precárias, em profunda solidão, falta atenção pré-natal, falta todo tipo de cuidado. Elas sofrem muito porque ficam com o bebê no colo durante seis meses e um dia o bebê vai embora. É algo desesperante para elas e, suponho, principalmente para as crianças. Oitenta por cento delas têm outros filhos e quando são presas seus filhos são geralmente repartidos entre familiares, amigos ou mesmo vão para abrigos, desorganizando totalmente a família.

Acabamos nos envolvendo muito e o projeto resultou em muitas coisas: na produção de diretrizes de convivência mãe e filho para o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) e na nossa participação no processo do habeas corpus em favor de todas as mulheres submetidas à prisão provisória para ficarem em prisão domiciliar se estiverem na condição de gestantes, puérperas ou de mães de crianças com deficiências e até 12 anos de idade. Nós entramos com o processo pela Abrasco e os dados da pesquisa foram citados no parecer final. Nós ficamos muito emocionados porque tivemos a ousadia de participar disso e o resultado foi favorável para essas mulheres. Esse estudo sobre a maternidade encarcerada era composto de vários subprojetos, tinha a parte de Arquitetura, do Direito, Psicossocial e da Saúde. Essas quatro dimensões deram essa compreensão mais ampla da questão. Além de coordenadora geral, eu coordenei, em particular, o componente da saúde.

Fizemos um censo na saúde e os outros componentes foram analisados em quatro presídios. A Luciana Simas, advogada redigiu essa petição do amicus curiae. Foi ela foi quem escreveu e defendeu no Supremo Tribunal Federal (STF), na linguagem jurídica adequada para sermos escutados. E foi importantíssimo termos entrado, a Abrasco ter nos acolhido… Como falei, fizemos também uma matéria no Radis e os vídeos. Os vídeos estrearam na época do habeas corpus e foi importante para comover a sociedade sobre o sofrimento dessas mulheres. Começou a ser debatido em cineclube, sabia? Vários cineclubes fazendo sessão com o vídeo para discutir o encarceramento de grávidas e a maternidade no cárcere.

Fale também da questão do aborto. O STF está fazendo uma consulta sobre a legalidade, diga o que você sabe e o que gostaria de fazer.

No próximo Nascer no Brasil o aborto em mulheres hospitalizadas vai ser contemplado pelo estudo. Foi um pedido do Ministério da Saúde, muito bem aceito por nós.

O misoprostol, é frequente o uso?

Está em uso sim. E diminuiu a complicação do aborto e a mortalidade também, supõe-se que o uso do misoprostol como abortífero seja o motivo da queda nas internações por aborto no SUS.

Nós promovemos um centro de estudos com a perspectiva de pensar o aborto como uma questão de Saúde Pública. No nosso grupo de pesquisa, a Rosa Domingues, em parceria com a Sandra Fonseca da Universidade Federal Fluminense (UFF), está fazendo duas revisões sistemáticas sobre o aborto legal e o aborto inseguro na literatura brasileira. E assim estamos começando os seminários preparatórios para a realização do Nascer no Brasil II. O tema do aborto entrou na nossa pauta e consideramos que se não mudarmos isso não diminuiremos a mortalidade materna, nem o near miss materno que tem alta incidência no Brasil.

Você tem o dado de quantos abortos inseguros acontecem anualmente no Brasil?

Não, há uma estimativa de que era um terço dos nascimentos. Temos alguns dados do Nascer no Brasil sobre a gravidez não pretendida que é muito alta, de 55% para o conjunto das gestantes no Brasil. É claro que a maior parte das mulheres fica feliz depois com a notícia da gestação, mas encontramos 10% das puérperas dizendo que não estavam satisfeitas com aquela gestação mesmo depois do bebê ter nascido. Essas, de fato, não queriam ou não podiam ter aquele bebê naquele momento das suas vidas.

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