Cancelamento de títulos não afeta resultado das eleições, diz pesquisadora

Por Roberta Maia Gresta*, especial para o blog do Sakamoto

O Supremo Tribunal Federal se viu espremido nas cordas a pouco mais de duas semanas das eleições. Uma ação ajuizada em 19 de setembro pediu a reversão dos cancelamentos dos títulos de eleitor causadas pelas “revisões eleitorais de ofício” destinadas ao recadastramento biométrico.

O Partido Socialista Brasileiro (PSB), responsável pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 541, sustentava que eram inconstitucionais as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral que, desde 2007, preveem o cancelamento do título como consequência do não atendimento à convocação para atualizar os dados cadastrais e coletar fotografia e dados biométricos – a conhecida impressão digital. Assim, todos os eleitores atingidos deveriam ser autorizados a votar.

Em 26 de setembro, o STF (por 7 a 2) declarou a constitucionalidade da lei e das resoluções, de modo que os cancelamentos foram mantidos. Ou seja, segue o jogo.

Veio, então, uma avalanche de protestos, ecoando a ideia de que 3,3 milhões de “eleitores pobres” serão impedidos de exercer seu direito fundamental ao voto em mais um atentado da elite judiciária contra a democracia. Brotaram especulações sobre candidaturas prejudicadas, comprometimento da legitimidade dos resultados e, claro, sobre as razões ocultas da Justiça Eleitoral.

Todo mundo foi obrigado a escolher um lado: ser um democrata defensor do voto ou um burocrata insensível, disposto a ferir de morte a soberania popular.

Respondo as dúvidas mais frequentes sobre o tema para tentar fugir desse maniqueísmo, que não contribui com a democracia e só assusta a população:

1) Por que o STF acertou ao julgar improcedente a ação que cancelava os títulos de eleitores?

A propositura da ação fez parecer que o cancelamento das inscrições eleitorais teria ocorrido de modo súbito, às vésperas das eleições. No telefone sem fio das redes sociais, muitos entenderam que, na verdade, o STF é que estaria efetuando o cancelamento, enquanto só os manteve.

Acontece que, em abril, já estavam concluídos todas as revisões eleitorais e efetivados todos os cancelamentos. A ação teve, portanto, de um timing absolutamente infeliz: o mínimo para permitir uma discussão adequada da questão era que tivesse sido trazida antes do fechamento do cadastro eleitoral em maio, longe das especulações sobre o direcionamento de cancelamentos para prejudicar ou beneficiar candidatos que despontam nas pesquisas de intenções de voto.

Claro, porém, que o STF não poderia se esquivar de julgar o pedido imediatamente. Afinal, aí sim serviria o prato cheio para qualquer candidato que quisesse fazer da derrota uma discussão sobre a confiabilidade do sistema de votação, tal como se assistiu em 2014 e como infelizmente já antecipam, em 2018, as declarações de candidato que diz não aceitar nenhum resultado que não seja sua vitória.

A revisão de eleitorado para fins de atualização de dados dos eleitores se insere na sistemática do registro prévio concretizada no Cadastro Nacional de Eleitores. E o cancelamento de inscrições atende a uma finalidade compatível com o exercício legítimo do direito ao voto.

Fica-se, então, com um problema que não é de constitucionalidade da revisão de eleitorado e do recadastramento biométrico, mas de possível lesão a direitos daqueles que não compareceram posteriormente para reativar sua inscrição, em qualquer município do Brasil. Mas, afinal, quem seriam esses eleitores?

A ADPF não fornece indicativos a respeito, mas pode-se afirmar que não são necessariamente eleitores ativos. Descontados os que não vão votar e os falecidos, não é possível afirmar que a ação no Supremo defendia o direito de 3,3 milhões de eleitores que serão impedidos de votar.

Nem mesmo quanto aos eleitores ativos efetivamente atingidos se pode afirmar que o cancelamento decorre de falta de conhecimento ou impossibilidade de comparecimento à revisão. É necessário considerar o não comparecimento voluntário. Seja por negligência pura e simples, seja pelo consentimento tácito com o cancelamento para regularização posterior no domicílio atual.

É preciso fazer um alerta quanto à retórica da defesa de direitos políticos sem que se saiba o que quer o seu titular desses direitos. A ideia de que todos os cancelamentos resultam de ignorância e incapacidade do eleitor de lidar com as obrigações decorrentes da cidadania é tutelar e infantilizadora e pode ser preconceituosa. Por isso, se é possível pensar em questionamento judicial por parte do cidadão que se considera prejudicado, é temerário admitir que uma ação proposta semanas antes tenha legitimidade para bem representar os interesses de todos os atingidos.

Assim, a reversão geral dos cancelamentos não pode ser tratada como o resgate de direitos sequestrados pela burocracia. Ainda que pontualmente favorecesse alguns cidadãos, o faria aleatoriamente, sem que se pudesse adequadamente dimensionar as violações ao direito fundamental ao voto que também acarretaria.

Como a ”ressurreição dos mortos”, a diluir a relevância da votação dos vivos, e o ”comparecimento dos ausentes”, que não podem ou não querem se fazer presentes.

2) Há risco de que os 3,3 milhões de cancelamentos alterem o resultado das eleições?

Vindo a ADPF 541 a levantar a lebre dos cancelamentos num momento eleitoral em que as pesquisas sugerem um segundo turno entre Bolsonaro e Haddad, seria inevitável que pipocassem leituras enviesadas dos dados da biometria.

A alegação mais frequente é que os cancelamentos teriam atingido o Nordeste de forma muito mais intensa. Logo, apontaram alguns, isso traria prejuízo a Haddad. Chegou-se a suscitar um direcionamento para que os trabalhos de recadastramento corressem mais rápido no Nordeste, para propositalmente reduzir o eleitorado nessa região.

Os números não confirmam essa especulação. Na análise por Estado, se a Bahia de fato desponta com 586.333 cancelamentos, tem-se na sequência São Paulo e Paraná, respectivamente com 375.169 e 257.941 cancelamentos. Os outros estados com mais de 200.000 cancelamentos são Ceará, Goiás, Maranhão, Minas Gerais e Pará. A soma desses estados já ultrapassa os 2 milhões de cancelamentos com dispersão razoável entre as regiões.

Quem planeja e executa o recadastramento biométrico em cada estado é o seu Tribunal Regional Eleitoral. Existem metas anuais, escalonadas tendo em vista a meta final de conclusão do recadastramento até 2022. A pressão e o empenho são tantos que deve fazer rir os dirigentes o fato de alguém pensar que poderiam retardar propositalmente os trabalhos para – veja bem – evitar a depuração do cadastro sob sua responsabilidade.

O que se tem é que estados menores em extensão e eleitorado avançaram mais rápido. O recadastramento biométrico já foi concluído em Alagoas, Amapá, Distrito Federal, Goiás, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Sergipe e Tocantins. Sem desmerecer estratégias bem-sucedidas dos TREs respectivos, pesa aí a maior facilidade de organizar a logística das revisões obrigatórias e a maior facilidade para destinar servidores para a força de trabalho extra, dada a menor demanda judicial e administrativa nos estados com menos cargos eletivos. Índices proporcionalmente maiores de cancelamentos poderão ser sentidos nesses estados, porque o eleitorado recadastrado já corresponde ao eleitorado total.

Noves fora, essa variação na coleta de dados biométricos e os cancelamentos não produziu impacto na distribuição do eleitorado brasileiro entre os estados. No comparativo dos anos de 2014 e 2018 feito por Jairo Nicolau, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observa-se que, salvo variações insignificantes, os percentuais são idênticos. Por exemplo, dentre os dois estados recordistas de cancelamentos, a Bahia mantém-se com 7,1% do eleitorado nacional e o Paraná caiu de 5,5 para 5,4%.

Diante disso, ainda que se pudesse considerar os 3,3 milhões de cancelamentos como eleitores ativos – o que, efetivamente, não se pode fazer – estaria nele representada uma amostra do todo. A tendência é que nessa amostra se repita a mesma distribuição de votos que se verificará no todo, quando apurados os votos. É questão estatística: não há a mínima plausibilidade em alocar os supostos votos não dados em favor de um único candidato. Não há parâmetro algum que permita invocar o paralelo com a diferença de votos entre Dilma e Aécio em 2014 (3,5 milhões de votos).

3) As justificativas para cancelar título de eleitor eram válidas?

Em 2016, o cruzamento de dados entre eleitores que justificaram o não comparecimento às eleições de 2014 por estarem fora de seu domicílio e ao mesmo tempo foram registrados como votantes em seu domicílio revelou indício de fraude na identidade do eleitor em 77.000 votos. Além de investigação criminal e vedação de nova convocação dos mesários das seções suspeitas, o TSE determinou a realização da revisão biométrica prioritária nas cidades em que verificado o problema.

Há quem diga que o quantitativo é insignificante. Bem, se mesmo sem indício de um voto sequer que tenha sido adulterado por falha na segurança da urna eletrônica o TSE segue aprimorando sua tecnologia e transparência, seria ilógico que ignorasse uma suspeita que não tem relação alguma com a urna eletrônica.

Além disso, o que se consegue detectar em um cruzamento de dados desse tipo deve ser considerado apenas uma amostra do que ocorre. O cruzamento depende de haver correspondência entre a justificativa e o voto. O resultado então não abrange as situações de retenção forçada de documentos, compra de votos, eleitor ausente que não justifica e eleitor falecido.

Daí se deve ter uma atenção especial para os resultados já obtidos com a biometria. E eles demonstram que a depuração do cadastro vem sendo obtida. Em 2016, enquanto os municípios sem biometria registraram abstenção média de 19%, naqueles em que concluído o recadastramento biométrico o percentual foi de 12%. É uma redução de 7% no grupo de “não voto”, justamente o campo de incidência da fraude na identidade do eleitor.

Os 3,3 milhões de cancelamentos entre 2017 e 2018 representam pouco mais de 2% do eleitorado. Assim, embora não se descarte a possibilidade de que tenham sido atingidos eleitores fora do grupo do “não voto”, e que em parte desses casos o não comparecimento tenha decorrido de falta de informação e não de opção voluntária do eleitor, não é possível partir da premissa de que haverá a perda de 3,3 milhões de votos válidos.

4) Qual a base legal para esses cancelamentos?

Tanto o Código Eleitoral quanto a Lei 7.444/85 preveem o cancelamento como decorrência do não comparecimento do eleitor à revisão.

A revisão prevista no Código Eleitoral é convocada após a detecção de indícios de fraude na composição do eleitorado, seja em função do descompasso entre o número de eleitores e a estimativa populacional do IBGE, seja em decorrência de correição que apure a informação de declaração falsa de domicílio em número significativo.

Já a revisão da Lei 7.444/85 destinava-se ao recadastramento de todo o eleitorado, trabalho descomunal realizado em 1986 que somente se justifica porque capaz de fornecer uma base de dados significativamente mais confiável do que a então existente. E isso ocorre graças à depuração efetivada por meio de cancelamentos: a convocação da revisão, ao obrigar o comparecimento pessoal do eleitor, confirma não apenas sua identidade, mas também o fato de estar vivo, capaz, em livre trânsito pelo território e vinculado ao município onde está inscrito.

Trata-se, no fundo, de outra forma de combater fraudes na votação – uma espécie de “fraude endêmica”, que de tão reiterada gera a aparência de funcionamento normal do sistema. Afinal, o que há em comum entre a maioria dos casos de fraude na identidade do eleitor – ressalva, aqui, à compra de voto – é que camuflam abstenções, ou seja, atingem um grupo de eleitores que, embora habilitados, deveriam constar como “não voto”.

As Resoluções do TSE que promovem o recadastramento biométrico por meio de revisões do eleitorado são editadas com base na Lei 7.444/85 porque também se destinam à finalidade de combater essa fraude endêmica.

5) O cancelamento do título de quem não fez biometria não é radical demais?

É preciso deixar claro que não existe cancelamento em função da impossibilidade de coleta dos dados biométricos. O que acarreta o cancelamento é o não comparecimento à revisão do eleitorado.

Além disso, o cancelamento é uma medida reversível. A inscrição pode ser reativada, inclusive com aproveitamento do mesmo número, bastando ao eleitor comparecer ao Cartório Eleitoral da localidade em que tem condições de votar. Note-se que, com isso, completa-se a depuração iniciada com a revisão, pois se confirma a identidade do eleitor e seu domicílio eleitoral.

Aqui aparecem dois problemas. O primeiro é que, entre maio e novembro do ano eleitoral, o cadastro fica fechado e a operação de reativação não pode ser realizada. Mas há uma razão para isso: a estabilização do corpo de eleitores antes do início do período eleitoral, que é essencial para a normalidade do pleito.

O segundo é o cancelamento que tenha atingido um eleitor ativo, vinculado ao município e que não tenha comparecido por falta de ciência da convocação da revisão e impossibilidade concreta de comparecer ao Cartório até maio do ano eleitoral. Por exemplo, pode ser que ele estivesse ausente de seu domicílio durante todo o período. Se falamos de direito fundamental, é injusto que esse eleitor não possa votar.

O ponto aqui é que esse problema não permite concluir que o cancelamento dos ausentes não é razoável. A lesão está em não haver meios que permitam a este eleitor ter viabilizado o exercício do voto.

Mas isso, como visto, somente poderia ser analisado caso a caso, a partir de interesse demonstrado pelo eleitor atingido, jamais pela via da ADPF.

6) O que se pode fazer para aprimorar a garantia ao exercício livre do voto?

Algo de positivo se pode extrair da propositura da ADPF 541, que é chamar a atenção para situações de inviabilização do exercício do direito ao voto por parte de seus legítimos titulares.

Se a burocracia não pode ser transformada em vilã por conta dos cancelamentos efetivados no recadastramento biométrico, isso não quer dizer que devamos nos conformar com falhas de execução. Uma vez identificado o ponto frágil da revisão de ofício (não o cancelamento em si, que é inerente à finalidade do procedimento, mas sua comunicação ao (possível) prejudicado, deve-se buscar soluções para corrigi-lo.

A notificação pessoal do eleitor no endereço constante do cadastro é medida a ser urgentemente considerada, pois a um só tempo permitirá presumir a ciência do cancelamento e favorecerá a adoção de medidas para regularização, como a reativação do título no domicílio correto ou a comunicação do óbito.

Mas não podemos focar apenas na recadastramento biométrico, quando existem muitas situações de exclusão do exercício do direito de voto.

Dentre elas, casos peculiares como a dos petroleiros nas plataformas em alto-mar. Somente na Bacia de Campos, com 200 empregados em cada uma das 50 plataformas, tem-se um contingente de 10.000 eleitores, que poderia, por exemplo, votar em trânsito, caso fossem instaladas seções específicas.

Mas, certamente, a exclusão mais dramática é a dos presos provisórios, que, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), são hoje uma população de 243.710. A luta não é apenas para viabilizar a instalação das seções especiais nos estabelecimentos prisionais, mas também contra o estigma social. Quantas pessoas que discordaram nas redes do resultado da ADPF 541 chegaram a imaginar as pessoas reais por trás dos números? E quantas, ao fazê-lo, cogitaram um grupo grande será de presos provisórios? E, dessas, quantas se importaram com a efetiva garantia aos direitos políticos desses cidadãos?

Se vamos mesmo levar os direitos políticos a sério, não podemos fazer das inscrições canceladas uma panaceia para não enfrentarmos o problema em sua dimensão ampla.

*Membro-fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), é professora de graduação e da pós-graduação do curso de Direito da PUC-Minas, assessora do TRE-MG é doutoranda em Direito Político pela UFMG e mestre em Direito Processual pela PUC-Minas.

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