O comunismo voltou e não nos avisaram!

Este fenômeno nada tem de gratuito ou apenas caricato: cada vez mais acirra a clivagem moral da questão social opondo a figura do cidadão de bem às figuras de ameaça à sociedade

Por Rafael Kruchin, no Justificando

Há poucos dias, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, em debate no Painel da Globo News, anunciou que há em curso no Brasil uma revolução Gramsciana liderada pelo PT. O debate tocava nas atuais eleições e a declaração se referia a uma possível candidatura de Fernando Haddad (PT). Para o general, uma revolução Gramsciana é, grosso modo, uma revolução comunista silenciosa.

Podemos aferir da declaração dois pontos principais: o primeiro é o reconhecimento implícito de que o PT não atua por meio de movimento armado ou de guerrilha, estratégia associada ao movimento comunista em outros períodos da história do Brasil. O segundo deriva do primeiro: a iminência de uma revolução comunista, para o general, existe de fato, mas, por não se tratar da “velha guerrilha”, trata-se de um processo silencioso, atuante por meio das “ideologias”.

Não são poucos os atores sociais, políticos, formadores de opinião, ativistas e até mesmo candidatos à presidência da república que têm vinculado suas pautas ao alerta da ameaça comunista. Ao que tudo indica, Marx e Gramsci levantaram-se das catacumbas e vieram assombrar a política brasileira. Seus defensores também estão por aí, mas, como esclareceu o general, disfarçados. Não usam armas, não carregam rifles e não têm tatuagem de Che Guevara. Suas principais armas? As ideologias.

Em diversos momentos da história, a eleição de “bodes expiatórios” foi utilizada como mecanismo político para aplacar as revoltas da sociedade. A personificação do mal, enquanto estratégia política, costuma ter por intenção reduzir as angústias da sociedade, dando respostas palpáveis e explicativas para instabilidades de qualquer ordem.

Ao reduzir a um único grupo, ou a uma única causa, questões econômicas e sociais complexas, cria-se o inimigo, forjando-se também aquele que o enfrenta. Dando respostas ao que não se entende, cria-se a possibilidade da população identificar o locus do problema e, para ele, deslocar sua “energia política”. Casos conhecidos nesta chave de atuação são as perseguições aos judeus e aos comunistas em diferentes períodos históricos.

Na atual conjuntura política brasileira, a fala do general é bastante reveladora no que diz respeito ao mito circulante. Mito que identifica a causa dos problemas sociais do Brasil e justifica desde a crise econômica e os escândalos de corrupção, até a contaminação da “moral” e dos “bons costumes”.
São muitos os termos que hoje têm permeado os discursos conspiracionistas anti-esquerda e que têm servido para classificar e localizar a ameaça. Quem seriam os perigosos? Os comunistas, os petistas, o bolivarianismo, Gramsci, o marxismo e todos aqueles que supostamente querem transformar o Brasil numa Venezuela.

Importante notar que a declaração do general não é isolada, ela existe e sustenta boa parte do imaginário político que vem se consolidando nos delírios do campo conservador. Janaína Paschoal, por exemplo, uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, largamente conhecida por um comício-escândalo na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, proferiu em seu Twitter as seguintes palavras: “Se Lula e Dilma não tivessem mandado dinheiro nosso para Maduro, ele não teria se perpetuado no poder, não estaria dizimando seu povo, os venezuelanos não estariam fugindo para o Brasil e Roraima não estaria passando por tudo isso! A culpa é do PT! Lembrem-se disso![1].” Em outro “post”, completou: “E peço, pelo amor de Deus, ao Tribunal Penal Internacional que acelere as investigações referentes aos crimes de Maduro! Prendendo esse ditador, conseguiríamos dar aos venezuelanos condições para ficar na sua terra. Povo de Roraima, a culpa é do PT que criou Maduro![2]”.

Outra figura bastante conhecida, o escritor brasileiro Olavo Luiz Pimentel de Carvalho, se diz um combatente do comunismo internacional. Independente da localização temporal de sua psique, sabemos que ele está muito presente na mídia e é seguido por milhares de pessoas no Facebook. Recentemente, em entrevista à Veja, o escritor declarou que “o PT está dentro da estratégia geopolítica comunista (…) é só você calcular a fortuna imensa que foi tirada do BNDES para salvar governos comunistas falidos. Por aí você vê a importância que o PT tem no esquema comunista mundial. Ele está salvando o movimento comunista[3]”.

No que diz respeito à atual corrida eleitoral, o mito da revolução comunista é parte integrante das disputas atuais. Em debate na Band, Cabo Daciolo (Patriota) ficou conhecido por perguntar ao candidato Ciro Gomes (PDT) sobre o seu plano URSAL, referente à criação de uma suposta “nova ordem mundial” comunista: o plano de União das Repúblicas Socialista Latino-Americanas. É claro que Ciro Gomes respondeu apenas que não era parte do plano e que não sabia do que se tratava, até porque a URSAL, de fato, não existe.

Mas, não obstante a figura caricata e de pouquíssima credibilidade que é o Cabo Daciolo, não podemos subestimar o poder do mito. O atual candidato à presidência com maior percentual de intenções de votos nas pesquisas, Jair Bolsonaro (PSL), conta com as seguintes declarações em seu plano de governo: “Nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira. Queremos um Brasil com todas as cores: verde, amarelo, azul e branco. Precisamos nos libertar! Vamos nos libertar![4]”.

Interessante destacar que a ideia da ameaça comunista, no imaginário em questão, não é só a da tentativa de emplacar um projeto político específico. Contra tal ameaça, há que se resgatar os “verdadeiros valores” da sociedade, dos quais o candidato acima se coloca como o grande guardião. Por esta razão, ganha força também os discursos que anunciam uma espécie de governabilidade moral, calcada na defesa de “valores”. É aí que a “luta contra a ameaça comunista” encontra e dá vazão à “luta contra a ameaça aos bons costumes”, e elas se confundem na mesma agenda conspiratória.

Assim, a realidade moral imputada substitui a realidade dos fatos e faz crescer a “turma subversiva”: o movimento LGBT, por exemplo, passa a ser parte do problema e da conspiração, já que ameaça os valores da família. Judith Butler, nem se fale! Além de ser de esquerda, veio ao Brasil para acabar com a família brasileira. Joga pedra na Judith! Maldita Judith!

Nessa toada da governabilidade moral, o movimento Escola Sem Partido é bem elucidativo no que diz respeito à junção da militância anticomunista com a defesa dos “bons valores”. O projeto polêmico, que circulou bastante nas mídias nos últimos tempos, tem como preocupação central a chamada contaminação político-ideológica das escolas brasileiras.

Sobre a atuação dos ideólogos da subversão, segundo seu próprio site: “A pretexto de transmitir aos alunos uma ‘visão crítica’ da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo”. Uma das principais atuações do grupo é o enfrentamento ao chamado Kit Gay, termo pejorativo utilizado para criticar um projeto pedagógico que introduziria o tema da sexualidade nas escolas, dizendo que há doutrinação LGBT produzida por grupos afins àqueles que estão tentando transformar os jovens em marxistas ambulantes. Em recente entrevista ao Jornal Nacional, a ameaça do Kit Gay foi ponto de destaque na fala do “capitão” Bolsonaro.

No dia 20 de setembro, o grupo Escola Sem Partido, em apoio à candidatura de Jair Bolsonaro, publicou em seu Twitter a seguinte frase: “Entre os que têm chance de vencer, Bolsonaro é o ÚNICO que pretende combater o uso do sistema de ensino para fins de propaganda ideológica, política e partidária[5]”.

Rodrigo Constantino, economista, antigo colunista da revista Veja, e um dos fundadores do Instituto Millenium, em seu blog, declarou o seguinte em apoio ao movimento em questão: “Estou cada vez mais convencido de que a doutrinação ideológica em nossas escolas é o grande problema do Brasil. Dessas escolas saem ou inúmeros analfabetos funcionais, ou soldados marxistas, militantes incapazes de pensar por conta própria que servirão como massa de manobra de partidos inescrupulosos como o PT ou o PSOL. É algo muito grave, que está de acordo com aquilo que Antonio Gramsci pretendia fazer para instaurar o comunismo sem violência[6]”.

É notável que, de tempos para cá, um movimento de luta contra um suposto comunismo silencioso tem sido (re)incorporado na agenda dos setores à direita do espectro político, e de maneira exponencial, tratando-o como a generalização do mal a ser combatido.

Este fenômeno nada tem de gratuito ou apenas caricato. Cada vez mais longe do universalismo democrático, apenas acirra a clivagem moral da questão social opondo a figura do cidadão de bem às figuras de ameaça à sociedade, à “ordem” e “aos bons costumes”, enquadrando no mesmo horizonte conceitual o “comunista”, o “drogado”, o “bandido”, o “petista” ou o “esquerdista”. É neste cenário que discursos extremistas passam a circular cada vez com mais força e ganham espaço até nas grandes mídias. Fortalecendo discursos autoritários e intolerantes, a atual faceta do anticomunismo militante abre espaço para agendas que são, na verdade, antidemocráticas.

[1] Postagem no Twitter feita no dia 19/08/2018. Disponível em: <https://twitter.com/janainadobrasil/status/1031164264072003584>. Acesso em setembro de 2018.
[2] Postagem no Twitter de Janaína Paschoal feita no dia 19/08/2018. Disponível em: <https://twitter.com/janainadobrasil/status/1031163711950675968>. Acesso em setembro de 2018.
[3] Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/olavo-de-carvalho-e-o-papel-do-pt-no-comunismo/>. Acesso em setembro de 2018.
[4] Plano de Governo disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/08/28/disponibilizamos-na-integra-o-plano-de-governo-do-seu-candidato-a-presidencia-da-republica/>. Acesso em setembro de 2018.
[5] Postado no Twitter no dia 20/09/2018. Disponível em: <https://twitter.com/i/web/status/1042742379483213824>. Acesso em setembro de 2018.
[6] Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/historico-veja/projeto-escola-sem-partido-palestra-de-miguel-nagib/>. Acesso em setembro de 2018.

Rafael Kruchin é mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo.

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