Destruição de livros em universidade anuncia tempo sombrio ao conhecimento. Por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

Cinco livros sobre temáticas relacionadas a direitos humanos que estavam na Biblioteca Central da Universidade de Brasília tiveram suas páginas rasgadas e riscadas. Em nota pública, a instituição informou que está fazendo uma varredura em outros títulos do mesmo assunto para verificar se há outros danos e que a Polícia Federal, que lida com casos de danos ao patrimônio público federal, deve assumir o caso. O vandalismo já vinha ocorrendo há meses, mas só agora, com novas obras danificadas, percebeu-se um padrão temático.

Tive a oportunidade de contribuir com uma das obras destruídas, o livro ”Direitos Humanos – Imagens do Brasil”, de Gilberto Maringoni, que conta a história da luta pelo direito à dignidade no mundo através fotos e gravuras. Cedi fotografias de operações de resgates de trabalhadores escravizados dos quais participe.

A preocupação com o caso não se deve ao valor físico das obras, que podem ser repostas. Mas por isso ser mais um sinal de que as coisas estão tomando um rumo sinistro por aqui, com o desdém pela dignidade e o menosprezo pelo conhecimento. E isso, uma vez perdido, não se compra, mas leva-se uma geração para ser reconstruído.

O que leva alguém a ser contra o combate à escravidão? E contra a garantia de uma pessoa não ser assaltada e morta? E de professar a religião que quiser? Ou de abrir um negócio? E de ter uma moradia? De não morrer de fome? De poder votar e ser votada? De poder pensar e falar livremente? De não ser presa e morta arbitrariamente pelo Estado? De não ser molestada por sua orientação sexual, identidade, origem ou cor de pele?

Se você é favor de destruição de material de direitos humanos, você é contra tudo isso. Devido à deformação provocada por políticos escandalosos, líderes espirituais duvidosos e formadores de opinião ruidosos, a população acha que ”direitos humanos” são um ”grupo de pessoas que defendem bandido”. Mas não são. É a garantia de você viver bem e livre.

Por outro lado, rasgar um livro em uma biblioteca é impedir que outras pessoas tenham acesso ao seu conteúdo. Nesse sentido, pipocam no Brasil casos em que escolas ou o poder público proibiram obras por conta da histeria coletiva de pais ou de agentes do fundamentalismo.

Por exemplo, o Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro, retirou o livro ”Meninos Sem Pátria”, de Luiz Puntel, da lista de leitura do sexto ano recentemente. Lançado em 1981, o livro – um clássico, já em sua 23ª edição – trata da história de uma família que precisa sair do Brasil após o jornal onde o pai trabalha ser invadido durante a ditadura militar e ele passar a receber ameaças. História que conta como foi viver a infância e adolescência longe de casa.

Grupos de pais se revoltaram contra um livro que ajuda na construção da empatia por considerá-lo ”comunista”. Não é o primeiro caso, nem será o último, com Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas defendendo a criação de listas de temas e publicações proibidas. Isso sem contar que o material didático para conscientizar jovens de que espancar amigos gays e lésbicas não é legal, chamado equivocadamente de ”kit gay”, foi criticado por pessoas que nunca leram nada a respeito, mas acreditaram em políticos que dizem o que elas devem pensar.

Quanto tempo leva entre as pessoas proibirem e rasgarem livros e começarem a queimá-los, com orgulho, em praça pública? Como já disse aqui, antes, se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno de montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de ”Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury – que foi transposto para a tela por François Truffaut (1966) e Ramin Bahrani (2018). Na obra de ficção, bombeiros queimavam livros, proibidos sob o argumento de que opiniões individuais tornavam pessoais antissociais e infelizes. O pensamento crítico era combatido. Quem lia era preso e ”reeducado”. Se uma casa tinha livros, bombeiros eram chamados para por tudo a baixo.

Hoje, se me mostrassem uma imagem assim, logo me perguntaria: onde desta vez? Algum grupo fundamentalista islâmico, cristão ou judeu? Interior dos Estados Unidos? Neonazistas europeus? Síria? Coreia do Norte? China? São Paulo, Rio ou uma grande cidade brasileira? Tempos atrás, um casal de amigos conta que circulou na lista de WhatsApp de seus filhos mensagens sugerindo que jogassem fora os livros ”comunistas” de seus pais. Durante o processo de impeachment, pessoas foram assediadas por carregarem livros de Marx.

No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por ousarem pensar diferente da maioria. A Alemanha ”purificou pelo fogo” as ”ideias imundas” deles, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar.

A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Deu no que deu. E hoje vemos muitos se acovardarem diante de ondas intolerantes frente à livre circulação do conhecimento humano e a garantia de dignidade para todos e todas.

Diante de nuvens sombrias que se aproximam do horizonte, todo silêncio é cúmplice.

Destaque: Cena do filme Fahrenheit 451

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