ONU envia Carta ao Governo Brasileiro em apoio à Comunidade do Horto

Recentemente, os moradores do Horto receberam a notícia do envio de uma carta do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (EACDH) ao governo brasileiro em apoio à luta pela permanência da bicentenária comunidade do Horto. A carta foi redigida em abril deste ano, mas os moradores do Horto só receberam a notícia de que ela havia sido enviada ao governo há duas semanas, no final  do mês de setembro. O documento dá ao governo brasileiro sessenta dias para responder a várias questões, sobre o caso, ali relatadas. A carta está disponível ao público, em inglês, no acervo de relatórios do OHCHR (EACDH)

por Geovanna Giannini, em RioOnWatch

Na página de relatório de comunicação e pesquisa do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos há a seguinte explanação sobre o propósito da elaboração destes documentos:

“Atuações especiais do Conselho de Direitos Humanos são efetuadas por especialistas independentes em direitos humanos com mandatos para relatar e dar conselhos sobre direitos humanos sob uma temática ou uma perspectiva específica de um país.”

“Mecanismos de atuações especiais podem intervir diretamente com governos sobre denúncias de violações de direitos humanos que sejam pertinentes aos seus mandatos por meio de cartas que incluam apelos urgentes e outras comunicações. A intervenção pode estar relacionada a uma violação de direitos humanos que já ocorreu, está em andamento ou que tem um alto risco de ocorrer. O processo envolve o envio de uma carta ao Estado em questão, identificando os fatos da alegação, as normas e padrões internacionais de direitos humanos aplicáveis, as preocupações e perguntas do(s) titular(es) do mandato e um pedido de acompanhamento da ação.”

Abaixo a tradução da carta do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos enviada ao governo brasileiro em apoio à comunidade do Horto.

Mandatos do Grupo de Trabalho de Peritos sobre os Afrodescendentes; da Relatora Especial no campo dos direitos culturais; da Relatora Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias; da Relatora Especial sobre moradia adequada como componente do direito a um nível de vida adequado e sobre o direito à não discriminação neste contexto; e da Especialista Independente sobre o gozo de todos os direitos humanos das pessoas idosas

REFERÊNCIA: AL BRA 2/2018

20 Abril 2018

Excelência,

Temos a honra de nos endereçar ao senhor nas nossas competências como Grupo de Trabalho de Peritos sobre os Afrodescendentes; de Relatora Especial no campo dos direitos culturais; de Relatora Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias; de Relatora Especial sobre habitação adequada como componente do direito a um nível de vida adequado e sobre o direito à não discriminação neste contexto; e de Especialista Independente sobre o gozo de todos os direitos humanos das pessoas idosas, de acordo com as resoluções 36/23, 37/12, 35/15, 34/9 e 24/20 do Conselho de Direitos Humanos.

Neste contexto, gostaríamos de chamar a atenção de sua Excelência do Governo sobre as informações recebidas que alegam o uso de força excessiva durante a remoção de uma família e a ameaça iminente de remoção de mais moradores do Horto Florestal no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. As pessoas moram no bairro há mais de 200 anos, onde criaram, desenvolveram e protegeram sua herança cultural.

De acordo com as novas informações recebidas:

A origem da comunidade do Horto Florestal revela uma rica história que remonta aos tempos coloniais. O bairro está apto a traçar suas origens até o cultivo de cana, no século XVI, que ocupou a terra antes dela ser expropriada pelo rei D. João VI em 1808, primeiro para construir uma fábrica de pólvora e depois para estabelecer o Jardim Botânico. Os primeiros moradores na área, no século XVI, foram os indígenas escravizados para o trabalho na plantação, que logo foram substituídos por uma força de trabalho escravizada trazida da África. Estima-se que o mais antigo edifício remanescente do Horto data de 1575. No início do século XIX, o bairro do Horto foi fundado por pessoas escravizadas e trabalhadores do Real Jardim Botânico Rio de Janeiro, que receberam permissão para se estabelecerem com suas famílias na terra adjacente ao parque. Seus descendentes vivem na área há mais de 200 anos, onde desde então criaram e desenvolveram sua herança histórica e cultural. No Horto, os trabalhadores cultivavam mudas e espécies de plantas para arborizar os jardins e o adjacente Parque Nacional da Tijuca. Ao longo do século XX, o Horto foi um dos principais centros florestais brasileiros, usado para produzir e experimentar várias espécies de plantas.

O bairro está localizado entre o Jardim Botânico e o Parque Nacional da Tijuca, em uma das áreas mais caras do Rio de Janeiro, e é cercado por muitas árvores, bambus gigantes, cachoeiras, trilhas e animais silvestres. Atualmente, é composto de casas modestas, porém adequadas, construídas em tijolo e concreto, algumas delas listadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e abrigam aproximadamente 2000 pessoas, a maioria de ascendência africana. As 621 famílias envolvidas vivem em 11 localidades: Caxinguelê, Chácara do Algodão, Clube dos Macacos, Dona Castorina, Grotão, Hortão, Major Rubens Vaz, Morro das Margaridas, Pacheco Leão, Solar da Imperatriz e Vila São Jorge.

Os moradores do Horto iniciaram um processo de revitalização de sua história como parte do projeto colaborativo “Nossa História”, iniciado em 2001. Foram ministradas aulas de história oral para jovens e os moradores mais antigos foram entrevistados em um esforço para reconstruir o conhecimento e dar visibilidade à sua cultura local. Em 2010, o Museu do Horto foi criado por moradores locais para documentar as origens do grupo. O museu atualmente não possui um espaço físico, pois o clube social em que foi localizado foi removido em novembro de 2014. A comunidade do Horto é reconhecida por muitos por seu importante papel na preservação do patrimônio cultural dos grupos afrodescendentes no Brasil.

O Jardim Botânico faz parte da localidade “Rio de Janeiro, Paisagens Cariocas entre a Montanha e o Mar”, que foi registrado na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO em 2012.

Apesar de sua história bem documentada e dos laços com a terra, os moradores do Horto enfrentam o risco de serem removidos. Desde a década de 1990, eles têm sido ameaçados de remoções como resultado de uma reivindicação legal sobre suas terras comunitárias apresentada pela administração do Instituição de Pesquisa do Jardim Botânico, que deseja expandir suas atividades de pesquisa até as terras da comunidade. Os moradores afirmam que a especulação imobiliária em um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro também motiva os planos de remoção.

Em 2006, a Secretaria de Patrimônio da União do Governo Federal iniciou um projeto de regularização fundiária, com o objetivo de definir as fronteiras entre o espaço residencial do Horto e o Jardim Botânico, e o planejamento urbano da região do Horto, que deveria atender às necessidades dos moradores. O projeto foi realizado pelo Laboratório de Habitação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto propôs uma expansão da área do Jardim Botânico para 80% dos 142 hectares e a regularização dos moradores em 8% das terras, representando uma densificação do bairro e a redução de suas terras de 19,3 para 11,1 hectares. O projeto foi rejeitado pela Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico, que decidiu levar o caso ao Tribunal de Contas da União (TCU).

Em 2012, um julgamento do TCU determinou a “suspensão imediata do programa de regularização fundiária” e decidiu confiar as terras do bairro do Horto ao Jardim Botânico. Em maio de 2013, o Ministro do Meio Ambiente anunciou a redefinição dos limites do Jardim Botânico, segundo a qual 520 das famílias do Horto seriam removidas para aumentar a área de pesquisa do Instituto do Jardim Botânico. A decisão representou uma mudança na posição do governo federal, que até 2012 apoiava o projeto de regularização fundiária. A decisão foi amplamente criticada por negar a importância histórica e a contribuição dos moradores do Horto ao longo de décadas para cultivar e preservar o Jardim Botânico de propriedade federal e arredores, bem como por falta de participação ou diálogo com a população em questão.

Após a decisão do governo, os moradores do Horto foram ordenados a evacuar a área até o final de 2016, e remoções forçados foram realizadas com força excessiva em novembro de 2016. Em 7 de novembro de 2016, a Polícia Militar removeu uma das famílias que recebeu notificação de despejo de sua casa. A família não recebeu nenhum aviso formal e só descobriu a notificação dois dias antes da data da remoção. No processo, policiais militares jogaram gás lacrimogêneo na casa e usaram spray de pimenta e balas de borracha para forçar os que estavam dentro a evacuar. Eles também lançaram bombas de gás lacrimogêneo na multidão que se reuniu para protestar contra a remoção, que incluía crianças e idosos. É relatado que lesões foram sofridas como resultado do uso de gás lacrimogêneo, mas o nível dessas lesões ou o número de pessoas afetadas permanece incerto. Devido a uma mobilização local ativa e cobertura da mídia, apenas um pequeno número de moradores foram deslocados e a maioria conseguiu permanecer no Horto.

Em junho de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou o julgamento do TCU de 2012. Desde então, os moradores do bairro do Horto estão em risco iminente de remoção.

Expressamos grande preocupação com a alegada força excessiva usada pela Polícia Militar sobre uma família e uma multidão que incluía crianças e idosos, pelo uso de gás lacrimogêneo, incluindo em um espaço fechado, spray de pimenta e balas de borracha, durante a remoção forçada em 7 de novembro de 2016. Igualmente se expressa uma grave preocupação quanto à ameaça iminente de remoções de moradores do bairro do Horto, o que teria um impacto deletério em seu direito à moradia adequada e em seu direito de participar da vida cultural e de desfrutar e ter acesso a sua herança cultural. Também estamos preocupados que a decisão de remover que foi tomada sem qualquer consulta prévia às pessoas, em causa, e que parece ter um impacto desproporcional sobre as pessoas de ascendência africana, que compõem uma grande proporção da população do bairro. Além disso, estamos preocupados que o deslocamento e o desmantelamento do bairro do Horto possam levar à destruição do patrimônio cultural de grande importância para os habitantes do bairro, bem como à supressão de uma parte importante da história do Rio de Janeiro e do Brasil.

Em conexão com os fatos e preocupações alegados acima, gostaríamos de lembrar ao governo de sua obrigação de garantir o direito a um padrão de vida e moradia adequados e o direito de participar da vida cultural, que inclui o direito de acesso e de desfrutar do patrimônio cultural, garantido por vários instrumentos internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil aderiu, em particular o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Por favor, consulte o Anexo Referência à Legislação Internacional de Direitos Humanos, anexado a esta carta*, que cita instrumentos e padrões internacionais de direitos humanos relevantes para essas alegações.

Como é nossa responsabilidade, sob os mandatos que nos são conferidos pelo Conselho de Direitos Humanos, procurando esclarecer todos os casos trazidos à nossa atenção, ficaríamos, portanto, gratos por suas observações sobre os seguintes assuntos:

  1. Por favor, forneça qualquer informação adicional e/ou comentário(s) que você possa ter sobre as alegações acima mencionadas.
  2. Forneça informações relativas ao uso da força utilizada pela Polícia Militar durante a remoção forçada de 7 de novembro de 2016 acima mencionado, em particular quanto à sua legalidade em relação aos requisitos de necessidade e proporcionalidade, bem como ao número e nível de danos sofridos por aqueles que faziam parte da multidão protestando contra a remoção e a família em questão.
  3. Indique se todas as alternativas possíveis para a remoção foram exploradas em consulta aos moradores do Horto e, em caso afirmativo, forneça detalhes sobre o motivo pelo qual as alternativas propostas para a remoção foram consideradas inadequadas.
  4. Por favor, forneça informações sobre as medidas tomadas para garantir as consultas à população do Horto.
  5. Indique se as autoridades locais realizaram uma avaliação do impacto que as remoções e deslocamentos planejados teriam sobre o direito dos moradores do Horto à moradia adequada e a participação e manutenção de suas práticas culturais, patrimônio cultural e modos de vida.
  6. Caso os reassentamentos involuntários ocorram, indique quais programas de reassentamento foram considerados, como eles atendem aos padrões internacionais relacionados ao acesso à moradia adequada e à participação na vida cultural, e se esses programas foram desenvolvidos em conjunto com a população afetada?
  7. Indique quais medidas foram consideradas para proteger e respeitar o valor cultural e histórico do bairro do Horto, caso o plano de remoção seja implementado.
  8. Por favor, forneça informações sobre as razões para remover o local onde o museu estava localizado e se qualquer local alternativo foi fornecido para manter e garantir a acessibilidade de todos ao museu e a informação histórica e patrimônio cultural que ele representa.
  9. Indique quais recursos legais e procedimentos estão disponíveis, incluindo o acesso à assistência jurídica, para que os moradores possam contestar o plano de remoção e deslocamento.

Nós gostaríamos de receber uma resposta dentro de 60 dias. A resposta da Sua Excelência do governo será disponibilizada em um relatório a ser apresentado ao Conselho de Direitos Humanos para considerações.

Enquanto aguardamos uma resposta, pedimos que todas as medidas provisórias necessárias sejam tomadas para deter as violações alegadas e impedir sua recorrência, e no caso das investigações apoiarem ou sugerirem que as alegações estejam corretas, para assegurar a responsabilização de qualquer pessoa(s) responsável pelas violações alegadas.

Por favor aceite, Excelência, a certeza de nossa mais alta consideração.

Michal Balcerzak

Presidente-Relator do Grupo de Trabalho de Peritos em Povos de Descendência Africana

Karima Bennoune

Relatora Especial no campo dos direitos culturais

Agnes Callamard

Relatora Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias

Leilani Farha

Relatora Especial sobre habitação adequada como componente do direito a um nível de vida adequado e sobre o direito à não-discriminação neste contexto

Rosa Kornfeld-Matte

Especialista Independente para o gozo de todos os direitos humanos das pessoas idosas

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