Sobre o otimismo das hienas

“A dimensão identitária da política, capaz de incluir os cidadãos pela afinidade com pontos passíveis de debate em torno do bem comum e sua compatibilidade com interesses organizados, parece perdida até o momento. Não se dialoga mais, apenas se exclui ad absurdum. O embate entre Haddad e Bolsonaro se dará, por opção do segundo, exatamente nesses termos.”

Por José Augusto Fontoura Costa, no blog da Boitempo

Sem uma frente democrática, mesmo que à custa de propostas progressistas, um futuro putrefato se avizinha.

Infelizmente, no primeiro turno das eleições, o Brasil se mostrou incapaz de convergir para uma tentativa de recomposição do tecido político e jurídico. Dilacerado pela gula insaciável daqueles instalados no Planalto pela oligarquia dos meios de comunicação e pela plutocracia financeira brasileira, eufemisticamente chamados de “imprensa” e “mercado” o eleitor se guiou pelo ódio e pelo medo.

Chegou-se ao segundo turno, só dois candidatos agora. Em um mundo politicamente sadio, um deles seria o óbvio representante do centro-esquerda e o outro um postulante pitoresco; um profeta da honestidade que paga a caseira com dinheiro do Congresso. A opção neoliberal, nutrida pela crença da classe média de estar mais perto do capital do que do trabalho, seria representada por algo parecido com o ethos projetado pelo, hoje moribundo, PSDB paulista.

De 1990 a 2014 os processos eleitorais foram assim e os arranjos políticos deles derivados, impedimento de Collor inclusive, guardavam uma tranquila compatibilidade com a Constituição de 1988, resultado e expressão de uma solução de compromisso de baixa coerência ideológica cujo tecido esgarçou ao longo do tempo. O golpe de 2016, porém, expôs o expressionismo abstrato do Direito brasileiro em suas piores cores, como o viés de classe e o corporativismo. Jackson Pollock não merecia tais seguidores. Ao abrir mão das formas em favor da expressão imediatizada dos humores, o jurídico não deu lugar à profundidade e às contradições do espírito, mas ao varejo vazio enredado pela vaidade, ira e a avareza, entre outros pecados mortais.

A eleição de 2018 não recupera as anteriores, é deformada, disforme. Os discursos são inconciliáveis e o arremedo de debate não se dedica a compor e recompor consensos, mas simplesmente a incutir o máximo de nojo possível em eleitores indecisos. As escolhas são pelo “menos pior”. São negativas não apenas no direcionamento pautado pelo desejo de evitar, mas em seu vácuo propositivo.

A dimensão identitária da política, capaz de incluir os cidadãos pela afinidade com pontos passíveis de debate em torno do bem comum e sua compatibilidade com interesses organizados, parece perdida até o momento. Não se dialoga mais, apenas se exclui ad absurdum. O embate entre Haddad e Bolsonaro se dará, por opção do segundo, exatamente nesses termos.

Em 2015, logo após o processo eleitoral, as hienas sentiram o cheiro do sangue. Eduardo Cunha cuidou de aumentar o caudal hemorrágico, com amplo apoio político. Talvez não se tenha notado a natureza do animal ferido; não era a Presidenta, nem seus votos contados às dezenas de milhões. Era a ordem política constitucional. Contra ela foi a traição explícita do vice decorativo mal disfarçada em seu sorriso de rei de baralho, a matilha parlamentar a desrespeitar até mesmo os cães alfa, o cinismo dos moralistas sem moral, a coleta da xepa dos espólios, as Marias Antonietas da Justiça. Tudo fétido, nauseabundo. Cheiro de sangue pisado, fedor de gangrena.

Sem a urgente reunião em uma frente democrática, a eleição de 2018 se dará em um campo de batalha que opõe posições inconciliáveis. Nesse contexto, a posse presidencial será em um de dois terrenos: a terra de ninguém, aquele espaço sujeito ao fogo de artilharia e às varreduras de metralhadora entre trincheiras contrapostas; ou o rescaldo do campo de batalha, onde os vencedores recolhem cativos e espólios. Nenhum parece particularmente alvissareiro.

E a Constituição? Será um uniforme de gala pleno de naftalina a esperar a parada da vitória? Será o traje cômico do general da banda? Será o retalho sanguinolento a cobrir as baixas? Não se sabe. Pode até vir a ser salva mediante cerziduras e remendos.

Mas sempre há quem se alimente da carniça.

José Augusto Fontoura Costa é professor de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, da Universidade CEUMA (São Luís), da UNISANTA (Santos) e da FADI (Sorocaba). É doutor e livre docente em Direito Internacional. Pesquisa no campo da estruturação jurídica de operações econômicas, com ênfase em aspectos de vulnerabilidade e empoderamento relacionados a saúde e alimentos.

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