No aniversário de 135 anos de morte de Sojourner Truth, o Blog da Boitempo recupera uma reflexão clássica de uma das maiores vozes do feminismo negro no mundo hoje sobre o legado da militante abolicionista, pioneira na luta pelos direitos civis dos negros e das mulheres nos EUA.
O trecho reproduzido integra o livro Mulheres, raça e classe, de Angela Davis. Na passagem abaixo, ainda sem o arcabouço teórico formal da interseccionalidade, a autora procura demonstrar as articulações entre classe e raça no início da campanha pelos direitos das mulheres nos EUA. O memorável discurso “Não sou eu uma mulher?”, de Sojourner Truth, feito de improviso na Convenção das Mulheres de 1851, é especialmente eloquente nesse sentido. Ao narrar o acontecimento, contudo Davis faz questão de ressaltar que mulheres como Truth “não são mulheres negras excepcionais na medida em que são epítomes da condição da mulher negra.” Daí a potência de revelação e a atualidade de recuperar a história e a trajetória de figuras como essa. Por isso, ela afirmará, em outro lugar: “se, para Sojourner Truth, foi necessário clamar ‘Não sou eu uma mulher?’ em 1851, hoje as mulheres negras ainda são compelidas a expor a invisibilidade à qual nós temos sido relegadas, tanto na teoria como na prática, no interior de amplos setores do movimento de mulheres tradicional.”
Boa leitura!
Artur Renzo, editor do Blog da Boitempo.
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por Angela Davis*
Dois anos depois da Convenção de Seneca Falls, aconteceu em Worcester, Massachusetts, a primeira Convenção Nacional pelos Direitos das Mulheres. Seja porque foi realmente convidada, seja por iniciativa própria, o fato é que Sojourner Truth estava entre as participantes. Sua presença e os discursos que proferiu em encontros subsequentes pelos direitos das mulheres simbolizavam a solidariedade das mulheres negras com a nova causa. Elas aspiravam ser livres não apenas da opressão racista, mas também da dominação sexista. “Não sou eu uma mulher?”1 – mote do discurso feito por Sojourner Truth em uma convenção de mulheres em Akron, Ohio, em 1851 – continua sendo uma das mais citadas palavras de ordem do movimento de mulheres do século XIX.
Sozinha, Sojourner Truth salvou o encontro de mulheres de Akron das zombarias disruptivas promovidas por homens hostis ao evento. De todas as mulheres que compareceram à reunião, ela foi a única capaz de responder com agressividade aos argumentos, baseados na supremacia masculina, dos ruidosos agitadores. Com seu inegável carisma e suas poderosas habilidades como oradora, Sojourner Truth derrubou as alegações de que a fraqueza feminina era incompatível com o sufrágio – e fez isso usando uma lógica irrefutável. O líder dos provocadores afirmou que era ridículo que as mulheres desejassem votar, já que não podiam sequer pular uma poça ou embarcar em uma carruagem sem a ajuda de um homem. Com simplicidade persuasiva, Sojourner Truth apontou que ela mesma nunca havia sido ajudada a pular poças de lama ou a subir em carruagens. “Não sou eu uma mulher?” Com uma voz que soava como “o eco de um trovão”, ela disse: “Olhe para mim! Olhe para o meu braço”, e levantou a manga para revelar a “extraordinária força muscular” de seu braço.
“Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher?”
Enquanto única mulher negra a participar da convenção de Akron, Sojourner Truth fez o que nenhuma das suas tímidas irmãs brancas foi capaz de fazer. Como disse a pessoa que presidia o evento, “há muito poucas mulheres nos dias de hoje que ousam ‘falar em um encontro’”. Tendo defendido de modo contundente a causa de seu sexo, conquistando a atenção das mulheres brancas e de seus desordeiros oponentes masculinos, Sojourner Truth foi espontaneamente aplaudida como a heroína do dia. Ela não apenas lançou por terra o argumento masculino a respeito do “sexo frágil”, como também refutou a tese deles de que a supremacia masculina era um princípio cristão, uma vez que o próprio Cristo era homem: “Aquele homenzinho ali, ele diz que as mulheres não podem ter os mesmos direitos do que os homens porque Cristo não era uma mulher. E de onde veio Cristo?”.
De acordo com a pessoa que presidia o evento, um “eco de trovão não teria acalmado aquela multidão como fizeram os tons profundos e admiráveis de sua voz conforme ela falava, com os braços estendidos e os olhos ardentes”. “De onde veio o seu Cristo? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com ele.”
Quanto ao terrível pecado cometido por Eva, não era um argumento contra as capacidades das mulheres. Ao contrário, tratava-se de uma enorme vantagem:
“Se a primeira mulher criada por Deus foi forte o suficiente para, sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, estas mulheres, juntas, devem ser capazes de colocá-lo de volta no lugar! E agora que elas estão pedindo para fazer isso, é melhor que os homens deixem que elas façam.”
A beligerância dos homens foi aquietada, as mulheres estavam explodindo de orgulho, com o “coração batendo com gratidão”, e “várias de nós tinham os olhos cheios de lágrimas”. Frances Dana Gage, que presidia a convenção de Akron, continuou sua descrição do impacto do discurso de Sojourner Truth:
“Ela nos tomou em seus braços fortes e nos carregou de modo seguro sobre o lamaçal de dificuldades, fazendo a maré virar a nosso favor. Nunca em toda minha vida vi algo semelhante à mágica influência que dominou a atmosfera agressiva do dia e transformou as vaias e zombarias de uma multidão exasperada em manifestações de respeito e admiração.”
O discurso “Não sou eu uma mulher?”, de Sojourner Truth, teve implicações ainda mais profundas, já que, ao que parece, também era uma resposta às atitudes racistas das mesmas mulheres brancas que posteriormente louvaram sua irmã negra. Não foram poucas as mulheres reunidas em Akron que inicialmente se opuseram a que as mulheres negras tivessem voz na convenção, e os opositores dos direitos das mulheres tentaram tirar vantagem desse racismo. Nas palavras de Frances Dana Gage:
“As líderes do movimento tremeram ao ver uma mulher negra alta, magra, usando um vestido cinza e um turbante branco sob um chapéu rústico, que se dirigia de forma decidida para o interior da igreja, caminhando com ar de rainha pela nave, sentando-se aos pés do púlpito. Um burburinho de desaprovação foi percebido em todo o salão, e ouvidos apurados escutaram: ‘Coisa de abolicionista!’, ‘Eu avisei!’, ‘Vai, negra!’.”
No segundo dia da convenção, quando Sojourner Truth se levantou para responder aos ataques dos supremacistas masculinos, as líderes brancas tentaram convencer Gage a impedi-la de falar.
“‘Não deixe ela falar!’, murmurou meia dúzia de vozes aos meus ouvidos. Devagar e solenemente, ela se dirigiu à frente, colocou o velho chapéu a seus pés e me olhou com seus olhos grandes e expressivos. Vaias de desaprovação vinham de todos os lados. Levantei e anunciei, ‘Sojourner Truth’, e pedi que o público fizesse silêncio por alguns instantes.”
Felizmente para as mulheres de Ohio, para o movimento de mulheres em geral – a quem o discurso de Sojourner Truth estabeleceu um espírito de luta militante – e para nós que, nos dias de hoje, ainda tiramos inspiração de suas palavras, Frances Dana Gage não sucumbiu à pressão racista de suas camaradas. Quando essa mulher negra se levantou para falar, sua resposta aos defensores da supremacia masculina também trazia uma profunda lição para as mulheres brancas. Ao repetir sua pergunta, “Não sou eu uma mulher?”, nada menos do que quatro vezes, ela expunha o viés de classe e o racismo do novo movimento de mulheres. Nem todas as mulheres eram brancas ou desfrutavam do conforto material da classe média e da burguesia. Sojourner Truth era negra – uma ex-escrava –, mas não era menos mulher do que qualquer uma de suas irmãs brancas na convenção. O fato de sua raça e de sua situação econômica serem diferentes daquelas das demais não anulava sua condição de mulher. E, como mulher negra, sua reivindicação por direitos iguais não era menos legítima do que a das mulheres brancas de classe média. Em uma convenção nacional de mulheres realizada dois anos depois, ela ainda lutava contra esforços que tentavam impedi-la de falar.
“Sei que vocês sentem comichões e vontade de vaiar quando veem uma mulher de cor se levantar e falar a respeito de coisas e dos direitos das mulheres. Nós fomos tão rebaixadas que ninguém pensou que iríamos nos levantar novamente; mas já fomos pisadas por tempo demais; vamos nos reerguer, e agora eu estou aqui.”2
Ao longo dos anos 1850, convenções locais e nacionais atraíram números crescentes de mulheres para a campanha por igualdade. Não era um fato incomum que Sojourner Truth comparecesse a esses encontros e, apesar da inevitável hostilidade, se levantasse e tomasse a palavra. Ao representar suas irmãs negras – tanto as escravas como as “livres” –, ela transmitia um espírito de luta à campanha pelos direitos das mulheres. Essa foi a excepcional contribuição histórica de Sojourner Truth. E, caso as mulheres brancas tendessem a esquecer que as mulheres negras não eram menos mulheres do que elas, sua presença e seus discursos serviam como um lembrete constante. As mulheres negras também obteriam seus direitos.
Enquanto isso, um grande número de mulheres negras manifestava seu compromisso com a liberdade e a igualdade de maneiras que eram menos diretamente relacionadas com o recém-organizado movimento de mulheres. A Underground Railroad sugava as energias de muitas mulheres negras do Norte. Jane Lewis, por exemplo, moradora de New Lebanon, Ohio, constantemente remava seu barco através do rio Ohio para resgatar escravas e escravos em fuga3. Frances E. W. Harper, uma dedicada feminista e a poeta negra mais popular de meados do século XIX, era uma ativa oradora associada ao movimento antiescravagista. Charlotte Forten, que se tornou uma proeminente educadora negra no período pós-Guerra Civil, era igualmente uma abolicionista ativa. Sarah Remond, que discursou contra a escravidão na Inglaterra, na Irlanda e na Escócia, exercia forte influência sobre a opinião pública e, de acordo com um historiador, “impedia os Tories4 de intervir a favor dos Confederados”5.
Notas
1 Elizabeth Cady Stanton, Susan B. Anthony et al., History of Woman Suffrage, v. 1, cit., p. 115-7.
2 Ibidem, p. 567-8 (texto completo do discurso). Ver também Gerda Lerner (org.), Black Women in White America, cit., p. 566 e seg.
3 John Hope Franklin, From Slavery to Freedom: A History of Negro Americans (Nova York, Vintage, 1969), p. 253 [ed. bras.: Da escravidão à liberdade: a história do negro norte-americano, trad. Élcio Gomes de Cerqueira, Rio de Janeiro, Nórdica, 1989].
4 Membros do Partido Conservador britânico. (N. T.)
5 Samuel Sillen, Women Against Slavery, cit., p. 86. Ver também a seção sobre Harper.
*Filósofa, professora emérita do departamento de estudos feministas da Universidade da Califórnia e ícone da luta pelos direitos civis.