Direitos Humanos precisam ser sempre lembrados. Por Léo Heller*

Abrasco

Por ocasião da celebração do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, caberia indagar se essa declaração-compromisso foi capaz de alterar o quadro de atrocidades, discriminação, arbitrariedades, cerceamentos e posturas autoritárias em todo o mundo. Se os horrores vividos pelas guerras mundiais do século XX estão definitivamente e integralmente eliminados da face da Terra. Obviamente, a resposta é negativa. Infelizmente, mais e mais medidas dessa natureza têm sido observadas em várias partes do planeta e não é porque há tal compromisso dos países e dos governos com a Declaração que vivemos em um mundo de pleno cumprimento desses compromissos.

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Uma outra forma de enxergar a conjuntura é traçando um cenário contrafactual, de um mundo sem a adesão de praticamente todos os países a uma Declaração tão fortemente ancorada em valores humanitários e civilizatórios. Penso que não é arriscado afirmar que a barbárie seria muito maior. Basta relembrar, dentre os vários princípios da Declaração, assinada por 58 países em 1948, aquele que aponta que todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades descritos na Declaração, sem nenhuma distinção, sobretudo “de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”, ou seja, coloca-se em cena o princípio fundamental da igualdade e da não-discriminação.

É também central se evocar seu Artigo 25: “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar”. Abre-se assim todo um corredor de posteriores formulações, que fornecem as bases para os direitos econômicos, sociais e culturais e apontam que as políticas públicas formuladas e implementadas pelos países devem ser orientadas pelos direitos humanos e pelo referido princípio da igualdade e da não discriminação. Ou seja, as políticas de saúde e aquelas afins associadas a seus determinantes e condicionantes, a exemplo das políticas relacionadas à água, devem ser universais, igualitárias, não-excludentes. Tais políticas e os direitos a elas associados devem também ser indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, anunciando uma dimensão epistemológica para os direitos.

O conjunto de tratados e mecanismos originados da Declaração fornecem uma importante base para as Nações Unidas escrutinarem os países em seu desempenho no campo dos direitos humanos, deles cobrando accountability e a eles impondo constrangimentos em casos potenciais ou efetivos de violação. É este pacto entre os países reunidos nas Nações Unidas que tem tido um papel, nos últimos 70 anos, de um maior alinhamento dos governos com a pauta dos direitos humanos. Evidentemente, é o reino da política que media a obtenção de maiores ou menores avanços, mas, ao menos, esse reino dispõe de uma plataforma de valores e de mecanismos que o oriente.

Nestas últimas décadas, progressos importantes foram observados quanto aos direitos econômicos e sociais na arena internacional. O Protocolo Opcional do Tratado Internacional para os Direitos Econômicos Sociais e Culturais, por exemplo, entrou em vigor em 2013, permitindo com que vítimas de violação desses direitos possam apresentar suas queixas perante as instâncias internacionais.

Os direitos humanos ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário, partes do direito ao nível de vida adequado anunciado no Artigo 25, foram reconhecidos explicitamente, tanto pela Assembleia Geral quanto pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 2010. Interpretações desses direitos e seu conteúdo normativo têm sido desenvolvidos e amplamente aceitos por diferentes atores. Por exemplo, os Estados concordaram que o acesso a soluções muito básicas de esgotamento sanitário não atende ao direito humano ao esgotamento sanitário. Tais soluções devem ser seguras – seguras para uso, seguras para a saúde e seguras para o ambiente – e devem assegurar privacidade e dignidade para seus usuários.

A falta de consideração para com os princípios dos direitos humanos, particularmente o acesso à água e ao esgotamento sanitário, pode sujeitar os países ao escrutínio internacional, pode levá-los a responder a inquirições dos mecanismos da ONU e os submete a críticas públicas. O governo brasileiro, por exemplo, tem sido acionado devido a eventos recentes, por meio de comunicações pelos integrantes do grupo de “procedimentos especiais” do Conselho de Direitos Humanos da Organização. Vários relatores especiais criticaram o governo, por exemplo, por ocasião do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG), devido à insuficiência das medidas adotadas, à lentidão na tomada dessas medidas, à ausência de participação dos atingidos nos processos decisórios e aos insatisfatórios acordos judiciais com as empresas. Da mesma forma, a emenda constitucional que estabelece o teto dos gastos públicos e seus efeitos nas políticas sociais do país foram abordados pelos relatores. E também a tentativa de aprovação de lei alterando os procedimentos para aprovação do uso de agrotóxicos foi objeto de preocupação.

Ainda há um longo caminho a ser trilhado para o cumprimento integral dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, bem como dos outros direitos humanos. O acesso e a falta de acesso à água e ao esgotamento sanitário ocasionam significativos efeitos em outros direitos, como à saúde, à vida, à moradia, ao trabalho, à educação e à igualdade de gênero. Os direitos humanos à água e aos esgotos podem ser um calibrador do grau de cumprimento de outros direitos econômicos e sociais, dado que água e esgotos são amplamente assumidos como serviços públicos e são únicos nesse particular. Por ocasião do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é necessária uma convocação para a intensificação dos esforços para o cumprimento desses direitos fundamentais, ainda tão distantes de serem integralmente realizados. Os direitos humanos precisam ser sempre lembrados!

*Relator especial para água e saneamento básico do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, compondo o Grupo de Procedimentos Especiais da Organização. É pesquisador do Instituto René Rachou (IRR-Fiocruz); professor da Universidade Federal de Minas Gerais e associado Abrasco. 

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