É tempo de natal e de virada de ano. Sob a avalanche do natal do mercado idolatrado, necessário se faz resgatar o sentido bíblico do Natal de Jesus Cristo, que é revolucionário. Faz bem entendermos a narrativa bíblica do Evangelho de Lucas (Lc 2,1-20) que versa sobre o nascimento do galileu que se tornou Cristo, que testemunhou um jeito de conviver libertador e salvador.
O Evangelho de Lucas não é crônica jornalística escrita sob o calor dos fatos. Escrito na década de 80 do século I da era cristã, o Evangelho de Lucas é Teologia da História a partir dos oprimidos e injustiçados e da sua fé na ressurreição de Jesus Cristo. Que beleza que os opressores não exterminaram o movimento popular e religioso de Jesus! Fizeram uma grande sexta-feira da paixão, mas as discípulas e os discípulos de Jesus Cristo, experimentando que Ele vivia nelas e neles, construíram um domingo de ressurreição com pão, terra e liberdade para todos/as. Em algum lugar, nas periferias do mundo, do ventre de uma mulher, uma criança quer vir à luz… Uma estrela aponta para um cantinho, em um pedacinho de chão… “Olha a glória de Deus brilhando!” Não morre a utopia da vida vencendo a morte, do amor vencendo o ódio e da justiça sobressaindo sobre a injustiça. Para o evangelista Lucas foram os pastores – os trabalhadores mais discriminados da época – os que, por primeiro, reconheceram a encarnação do divino no humano. Quando nasceu Jesus Cristo? Onde? Em que contexto? Na presença de quem? E foi visitado e acolhido por quem?
Jesus nasceu em tempos de imperialismo romano com o imperador Augusto baixando decreto para aumentar o peso da tributação nas costas do povo, além de manter a superexploração, por meio da escravidão, a que eram submetidos mais de 60 milhões de pessoas nas muitas colônias do Império Romano. Diz o evangelista Lucas: “Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto ordenando recenseamento em todo o império” (Lc 2,1). Como o pai de Jesus, José, era descendente de Davi e natural de Belém, ele teve que viajar da cidadezinha de Nazaré, na Galileia, até Belém, na Judeia, mais de 120 quilômetros, a pé ou montando em jumento, com sua esposa Maria que estava na iminência de dar à luz (Lc 2,3-5).
Em uma colônia dominada pelo imperialismo romano, por governadores submissos aos interesses imperiais e com a cumplicidade de um poder religioso – o sinédrio – que usava o nome de Deus para excluir e marginalizar a maioria do povo, como trecheiro, estradeiro, “irmão de rua”, migrante, retirante, sem-terra, sem-teto, refugiado, migrante e judeu da periferia, nasceu Jesus Cristo na periferia de Belém, pequena cidade do interior. Jesus não nasceu em Jerusalém nem na capital do império, nem em Brasília, nem na Avenida Paulista e nem nos Estados Unidos. Maria e José tiveram que ocupar um curral, porque não encontraram hospedagem em Belém, certamente porque não tinham como pagar hotel nem hospital particular.
Ao descrever o nascimento de Jesus, o evangelista Lucas estabelece estreito paralelismo com a morte e ressurreição do Messias. De fato, em Lc 2,7a se diz que “Maria enfaixou Jesus e o colocou na manjedoura”; em Lc 23,53a afirma-se que “José de Arimateia enfaixou o corpo de Jesus e o colocou em um sepulcro”. Ou seja, o evangelista aponta que a missão de Jesus será espinhosa, terá que enfrentar a violência de podres poderes e de opressores e, por isso, será condenado à pena de morte, mas ressuscitará.
Jesus nasce no meio dos pastores (Lc 2,8), os injustiçados e execrados pela classe dominante onde estão os senhores “de bens” que por cumplicidade reproduzem a desigualdade social. Entre todos os segmentos da classe trabalhadora e camponesa, os pastores e as pastoras eram os/as mais explorados/as, considerados/as impuros/as, principalmente porque não respeitavam as propriedades privatizadas. Para os pastores e pastoras, o território era um bem comum e, por isso, levavam os rebanhos que cuidavam para pastar em outras propriedades. Assim eram considerados invasores de propriedades privadas. Para os pastores e as pastoras, “Terra de Deus, terra de irmãos!”.
“Um anjo de Deus apareceu aos pastores” (Lc 2,9), não apareceu ao imperador, nem ao governador, nem a nenhum sacerdote e nem a nenhuma pessoa considerada pura, integrada à sociedade dos “de bens”. São esses pastores e pastoras que reconhecem o nascimento do menino Deus e vêm ao encontro daquele que iria testemunhar um caminho de libertação para todos/as e tudo, a utopia “vida e liberdade para todos/as e tudo” (Jo 10,10).
Nos Evangelhos de Lucas e de Mateus, o nascimento de Jesus não é apresentado de forma neutra diante das contradições e desigualdades sociais. José, Maria, Jesus, os evangelistas e as primeiras comunidades cristãs (autoras dos Evangelhos) têm lado: o lado dos oprimidos e injustiçados. A luz divina foi experimentada pelos pastores e pastoras, em uma noite escura (Lc 2,8-9), – como a noite que se abateu sobre o povo brasileiro com a ascensão do fascismo e de um capitalismo ultraliberal. A luz e a força divina surgiram para aqueles e aquelas que eram os/as mais rejeitados/as pela sociedade hipócrita e cínica.
Nas primeiras comunidades cristãs se lia naquela época o texto do profeta Isaías que dizia: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria” (Is 9,1). A primeira mensagem do anjo aos pastores e pastoras foi: “Não tenham medo! Eis uma ótima notícia para todo o povo explorado. Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador, que é o Messias, o Senhor” (Lc 2,10). Essa mensagem ganha eloquência se recordarmos que quando se elevava um novo imperador ou rei, arautos do império anunciavam a entronização aclamando o que estava sendo entronizado como novo Salvador (soter, em grego) e Senhor (Kurios, em grego).
As primeiras comunidades cristãs fazem uma revolução copernicana e subvertem a ideologia dominante que divinizava o poder e quem estava no poder. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ não será mais o imperador e nenhum rei. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ será aquela criança que nasceu no meio dos explorados. O anjo alerta: só quem consegue se misturar com os periféricos e com eles conviver consegue experimentar o divino se revelando no humano a partir dos porões da humanidade (Lc 2,12). Quem fica distante dos empobrecidos e empobrecidas acumula preconceitos e se desumaniza.
Diz o evangelista Lucas que os anjos fazem festa ao experimentar a glória de Deus e a paz (shalom, em hebraico) no meio do povo (Lc 2,14). A glória de Deus brilha quando o humano em todas as pessoas é respeitado e valorizado. Paz como fruto da justiça, shalom acontece quando os governos com organização popular efetuam mudanças estruturais para superar a desigualdade social e promover a justiça social com respeito à imensa diversidade cultural, aos direitos da natureza, dos animais e toda a biodiversidade existente no nosso país e no mundo. “Os pastores da região foram a Belém, às pressas, participar do acontecimento” (Lc 2,15-16); não foram a Jerusalém, nem a Brasília, nem às catedrais do deus mercado e nem ao Império do capital. “E todos que ouviam os pastores ficaram maravilhados” (Lc 2,18). Quem não ouve, não respeita e nem participa da luta dos/as sem-terra, dos/as sem-teto, dos/as migrantes, dos/as refugiados/as, dos irmãos e irmãs em situação de rua, dos/as indígenas, dos/as quilombolas, das mulheres e dos nossos irmãos e irmãs LGBTTQIs[2] não consegue compreender o divino se tornando humano a partir de Jesus Cristo.
Os pastores e as pastoras reconhecem o poder popular nascido na periferia de Belém, cidade do rei e pastor Davi. “É de ti Belém, a menor entre todas as cidades, que virá o Salvador” (Miq 5,1), bradava a profecia inspiradora de Miqueias. Etimologicamente Belém (Betlehem, em hebraico), significa Casa do Pão. Belém é a cidade de Davi, o menor entre os irmãos, aquele que organizou os injustiçados da sociedade para lutar por um governo justo, popular e democrático. O verdadeiro “rei dos judeus” não é violento e sanguinário como Herodes, é um recém-nascido, nascido sem-terra e sem-casa e tendo que se exilar às pressas, como refugiado, para não ser assassinado pelo poder repressor de plantão. Segundo o Evangelho de João, o nascido na “Casa do Pão” se tornou Pão da Vida para todos/as (Jo 6,35-59). Os pastores e as pastoras intuem com sabedoria que o poder alternativo, democrático, participativo e popular vem da periferia, dos injustiçados, dos pequenos.
O natal trombeteado aos quatro ventos pelos arautos do mercado idolatrado é um antinatal, abusa do nascimento de Jesus Cristo para auferir lucro e acumular capital, promovendo gastança, viagens que resultam em centenas de mortes e comilanças; pior, humilham milhões de pessoas que não podem gastar, viajar e nem promover comilanças. Quem não se alia à luta por direitos de sessenta por cento dos brasileiros que sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês não consegue vivenciar o sentido sublime e profundo do Natal de Jesus Cristo, está sendo mentiroso/a, pois não está abraçando o projeto de Jesus, o Cristo libertador e salvador.
Não está em sintonia com o Natal de Jesus Cristo quem reproduz, direta ou indiretamente, uma das maiores desigualdades sociais do mundo: 1% mais rico, que abrange 1,2 milhão de brasileiros, com rendimento médio superior a 55 mil reais por mês, no Brasil, em 2018. Quem é discípulo/a do menino que nasceu como refugiado na periferia de Belém precisa insurgir ao lado de toda a classe trabalhadora e camponesa e das forças vivas que lutam pela superação de todas as injustiças. Ouçamos os/as anjos/as que nos dizem: “Não tenham medo!” Os poderosos têm pés de barro. O menino Deus está vivo em nós na luta por justiça social, justiça agrária, justiça ambiental, justiça urbana, direitos humanos fundamentais.
Belo Horizonte, MG, 23/12/2018.
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Gilvander Luís Moreira, frei carmelita, Dr. em Educação.
Hieronymus Bosch: Cristo carregando a cruz