O Triunfo do Abismo

Por Adilson Takuara

É falsa a oposição entre civilização e barbárie, a civilização produz a barbárie. Ouvi recentemente de um mexicano, de nome Genaro e ascendência indígena, que nosso continente há 500 anos foi invadido por bárbaros e a partir de agora passo também a chamar os colonizadores de bárbaros. Como sabemos, a história é contada pelos vencedores e estes chamam de bárbaros os “não civilizados”. Mas quem traz a barbárie a um lugar é o colono, o civilizador.

Dito isto, nenhum governo é verdadeiramente bom para os indígenas. Governar é tirar autonomia das pessoas e os povos indígenas precisam ser autônomos para continuar a existir. Além disso, um governo sempre representa interesses e os indígenas (junto com os negros) sempre estiveram no fim da fila desses interesses. Se houve conquistas, estas foram fruto da luta e do sangue de muitos, nunca da benevolência de qualquer governo. Não foi Bolsonaro quem matou a Funai, ele só deu a última facada. Ela já estava moribunda, fruto de seguidos golpes dos últimos governos que a desestruturaram e a sucatearam, facilitando, e muito, a tarefa do atual presidente. O que ocorreu na Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, retrata muito bem isso.

Mas sim, a partir de agora os indígenas estão em situação muito pior que antes, e isso chega a dar um nó no estômago, porque de todas as minorias estou certo que será a que mais sofrerá, pois eles são alvo de dois dos principais setores que apoiaram Bolsonaro: os representantes do agronegócio e os pastores evangélicos neopentecostais (as bancadas mais fortes no Congresso Nacional). Na verdade, eles são seus alvos há 518 anos, só os nomes mudaram. Antes eram bandeirantes e católicos-jesuítas, mas a função era a mesma, abrir fronteira, matando quem estivesse pela frente, e “salvar a alma” dos que sobrassem, destruindo suas crenças e sua cultura. Apesar desses grupos já estarem bem presentes nos governos petistas (lembremos da legalização de terras griladas assinada por Lula em 2008 e dos passaportes diplomáticos dados aos líderes evangélicos por Lula e Dilma), agora o aval é explicitamente maior, basta ver o que já está acontecendo nas fronteiras agrícolas e em Brasília. Mas o ovo da serpente foi chocado pelo PT, que pela “governabilidade” se aliou com o que há de mais podre na política brasileira, que na primeira oportunidade, puxou o tapete e voltou a comandar diretamente o país.

Mas o que mais dói é saber que estes setores tem o aval de invadir território indígena porque permanece no imaginário popular as figuras do “índio preguiçoso” e de “alma impura” e que para a maioria das pessoas pouco importa o que vai acontecer a eles. Não percebem que os indígenas são os guardiões do que sobrou das florestas e que sem estas, estamos condenados a não chegar ao fim do século, quiçá à metade. Os religiosos-fanáticos alarmadeam o apocalipse, mas o que pode levar ao fim do mundo (ao menos deste que conhecemos) é essa civilização individualista e produtivista que cria uma demanda insaciável de consumo e a busca de uma felicidade que nunca se realiza, pois, como sabem os indígenas, ser feliz é estar bem com o que temos e não cobiçar o que não temos. Essa cobiça só gera tristeza e depressão.

Por um lado, há a cobiça dos grandes latifundiários, madeireiros e mineradoras sobre as riquezas das terras indígenas, que coincidem com grande parte da mata preservada e formam uma barreira ante o desmatamento. 

Se a devastação da Amazônia já seguia a passos largos, um futuro sombrio é anunciado. Estudos demonstram que já estamos próximos de atingir os 20% de desmatamento da floresta e que o ponto sem retorno, no qual ela não conseguirá mais se regenerar, é entre 20 e 25%, quando provocará uma alteração no regime de chuvas irreversível. Temporadas alternadas de secas e inundações severas já têm anunciado o desequilíbrio e, como já está provado que o solo amazônico é pobre em nutrientes, um grande deserto pode ser formado. Os representantes do agronegócio são tão ignorantes que não percebem que estão destruindo seu próprio futuro, pois a desertificação da Amazônia comprometerá a agricultura em todo o continente. O que a natureza nos dá de graça em abundância atualmente, com a cobiça e a sangria exploratória, amanhã será escasso.

Quando dizemos que a Amazônia é “terra de ninguém” ou “terra sem lei” estamos justamente evocando a ideia que a civilização gera a barbárie, principalmente onde encontra riqueza, desestruturando o equilíbrio anterior através da geração de conflitos e da destruição ambiental. E os que defendem o meio ambiente, pagam muitas vezes com a vida. O Brasil é recordista de assassinato de ativistas ambientais nos últimos anos, 57 somente em 2017, sendo os indígenas as principais vítimas. Com esse novo governo, a tendência é só aumentar.

Penso que a cobiça é também a principal arma que os pastores neopentecostais utilizam para atrair fiéis, pois nada é mais efetivo que fazer uma pessoa carente ou emocionalmente perdida acreditar que pode ter uma vida melhor após a morte se seguir alguns preceitos, o que inclui certamente pagar o dízimo. Isso historicamente foi feito pelos católicos, os pastores apenas aprenderam com eles. Para muitos a cobiça é suavizada pela palavra esperança, que vira uma luz no fim do túnel de uma vida sofrida. Mas para outros, a salvação da alma é só um álibi, que apaga qualquer suposto erro ou desvio de caráter. A cobiça da “salvação eterna” é ainda mais efetiva se você consegue convencer outros a também cobiçar o mesmo, daí a “missão” cristã em levar a “palavra do senhor” aos quatro cantos, principalmente aos que consideram impuros, como os indígenas. Quando isso ocorre, geralmente após terem suas terras invadidas pelos bárbaros, os indígenas começam a deixar de viver a plenitude de sua existência, sua felicidade, e se prendem a sedução da “salvação divina”, esperando por um mundo melhor além da existência terrena.

Mas a cobiça religiosa não é só dá salvação da alma, é material também, o que tem tornado o brasileiro médio cada vez mais individualista. Nada explicita melhor isso que a frase “Presente de Deus” estampadas em incontáveis automóveis pelo país. Além de arrogante, desenha um deus materialista e seletivo, que presenteia uns a despeito de outros.

Esse individualismo cai como uma luva para os poderosos, pois além do espírito consumidor que gera, tira a consciência de classe ou de grupo das pessoas. No caso dos indígenas, consciência étnica. Há desde casos de indígenas que pararam de tocar tambor porque o pastor proibiu, até pajés que foram isolados pelos “fiéis” da aldeia e tiveram eles mesmos que se converter como única opção de ser respeitado no grupo.

Sei que a religião não define uma pessoa, conheço evangélicos que não se enquadram nesse ideário individualista da salvação e da seleção divina, mas é essa a imagem que os neopentecostais se apresentam ao mundo. Penso que esse ideário está mudando o caráter dos brasileiros, acabando com o espírito solidário das pessoas de baixa renda (porque os ricos não conhecem o significado disso) e matando de vez o que restava de nossa empatia, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro. 

Essa empatia é fundamental para compreendermos que os povos indígenas sim são diferentes e tal diferença deve ser respeitada e não assimilada como pretende o atual presidente do Brasil. É triste estar ciente que a política indigenista pode regressar cinquenta anos em cinco. Décadas de luta dos povos originários junto com indigenistas e antropólogos que nos permitiram entender que os séculos de contato sempre levaram doenças, vícios e conflitos.

Beleza e riqueza sempre foram artigos de luxo da cobiça e numa sociedade insaciável a tendência é sempre a morte e a exaustão. Seguimos em frente, porque a roda continua girando.

*Colaboração e revisão de Patricia Maria.

Indígenas em isolamento voluntário. Imagem capturada de vídeo

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