Pesquisador do Iser e pastor da igreja batista explica em entrevista à Pública as razões religiosas e políticas para a aproximação do governo Bolsonaro com Israel
Por Andrea DiP, da Agência Pública
A transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém foi uma promessa de campanha de Jair Bolsonaro. Até então, somente os Estados Unidos e a Guatemala haviam tomado medidas semelhantes. Em dezembro do ano passado, durante a visita do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu – a primeira de um chefe do Estado de Israel ao Brasil -, o pastor Silas Malafaia chegou a declarar que o apoio dos evangélicos a Bolsonaro se devia a essa promessa, que teria de ser cumprida pelo presidente eleito. Na mesma reunião, o prefeito do Rio de Janeiro e pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella, teria dito ao premiê que não tinha palavras para descrever o que Israel representa para os evangélicos: “Rezamos pelo seu país todos os dias”. Netanyahu respondeu à altura, dizendo que Israel não tinha melhores amigos no mundo que a comunidade evangélica e que a comunidade evangélica não tem melhor amigo do que Israel.
Desde 2017, o Grupo Parlamentar de Amizade Brasil-Israel, hoje com 46 membros entre deputados e senadores, a maioria parte também da bancada evangélica, pressionava pela transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, reivindicada como capital por judeus e dos palestinos, pregando a ruptura do governo brasileiro com os palestinos. Alguns parlamentares desse grupo chegaram a ir a Israel na época, pedir desculpas pelo “mau comportamento” dos governos brasileiros. Atualmente, o Grupo Parlamentar de Amizade conta com figuras chave da bancada evangélica como o deputado Marco Feliciano (PSC), o deputado João Campos (PRB), o senador Magno Malta (PR) e os deputados Sóstenes Cavalcante (DEM) e Hidekazu Takayama (ex-presidente da Frente Parlamentar Evangélica, PSC).
Em entrevista à Pública, o sociólogo, pesquisador do Iser e pastor da igreja batista Clemir Fernandes, explica essa proximidade dos evangélicos com Israel não apenas do ponto de vista teológico, mas também político, estratégico e de contraposição aos governos de esquerda, que denunciaram com frequência a violência do Estado de Israel para com os palestinos. “Transferir as embaixadas para Jerusalém traria status à cidade, seria um reconhecimento legítimo da cidade conquistada pelo rei Davi. Se eu apoio esse povo sou abençoado e próspero. Do contrário posso ser alvo até de uma maldição”.
Bolsonaro, seguindo Trump, planeja mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Além disso, condecorou com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, com quem conversou reservadamente no dia da posse. Tudo isso parece agradar muito os evangélicos. Por quê? O que os evangélicos têm com Israel?
Na compreensão mais tradicional dos evangélicos no Brasil, esse Estado de Israel, fundado em 1948, é um sucedâneo daquele que está nas profecias bíblicas do Antigo Testamento, que fala da eleição de um povo especial, que é o povo de Israel. Esse povo ficou peregrino no mundo desde as diásporas e só voltou em 1948, quando você tem a fundação do Estado de Israel. Há então um entendimento de que o Estado de Israel é uma atualização das promessas bíblicas, que essa terra pertence a essa gente de maneira definitiva sem considerar – e esse é um ponto – que outros povos ali já estavam. Quando o Estado de Israel se estabeleceu ali já havia os palestinos naquela região, por exemplo. Os textos bíblicos não desconsideram esses outros povos, mas há uma interpretação, a partir de um tipo de sionismo evangélico, que concede a este povo o direito inequívoco a essa terra. Os cristãos [evangélicos], defensores dessa proposta, acreditam que há um respingo positivo dessa promessa bíblica de prosperidade na medida em que eles, mesmo não sendo judeus, apoiam o povo eleito de Deus. Portanto transferir as embaixadas para Jerusalém traria status à cidade, seria um reconhecimento legítimo da cidade conquistada pelo rei Davi. Se eu apoio esse povo, sou abençoado e próspero. Do contrário, posso ser alvo até de uma maldição. E os evangélicos sustentam esse tipo de compreensão não considerando inclusive as implicações políticas e de segurança da geopolítica da religião, ações violentas do Estado de Israel. É uma reflexão bíblica mais rasteira, que leva igrejas a terem menorahs, bandeiras de Israel nos cultos, estrelas de Davi, uma ressignificação da linguagem, dos símbolos e de uma estética judaica como um sinal para que também sejam alvo das bênçãos de Deus. Acho que os líderes não acreditam muito nisso mas surfam nessa onda porque interessa aos seus projetos de poder. Aproveitam para ampliar o apoio e a base do eleitorado evangélico, que se mostrou um dos mais fiéis, e o grupo religioso que mais apoiou o presidente eleito. Então dar apoio às bandeiras que os evangélicos defendem é garantir um sustentáculo para o poder do governante.
Nas igrejas evangélicas, principalmente nas pentecostais e neopentecostais – não sei se isso acontece nas protestantes históricas – os símbolos judaicos e alusões a rituais são muito comuns. O Bispo Macedo com o Templo de Salomão por exemplo, fazendo cultos usando kipá, talit [vestes tradicionais judaicas]. Isso é comum às várias denominações evangélicas? É algo novo? É assim desde sempre?
Isso está mais alinhado e próximo às igrejas pentecostais e neopentecostais, mas é preciso dizer que há várias igrejas, mesmo entre as pentecostais e neopentecostais, que não consideram essa estética nesse tipo de doutrina, nessa concepção com relação a Israel. Nas igrejas protestantes históricas isso é bem menos difundido, mas não é de todo negado. Você pode encontrar em igrejas presbiterianas históricas e em igrejas batistas um menorah no púlpito, na mesa da ceia. Não significa que há a mesma interpretação ou o mesmo apoio tácito, mas há um certo apoio e sensibilidade ao movimento judaico e ao povo de Israel, geralmente em contraposição ao povo palestino. Nas igrejas pentecostais e neopentecostais o uso dessa simbologia se aproxima de um modelo sacerdotal descrito no Velho Testamento que é muito hierarquizado, de submissão a uma liderança. Isso no Novo Testamento se dilui bastante e é interpretado de outra maneira. Então essas lideranças políticas e religiosas não pegam essa ideia de apoiar Israel à toa. Tem todo um conjunto de interpretação do Velho Testamento que favorece o modelo de governança política e de gestão religiosa centrado na liderança autoritária, piramidal, hierarquizada, sem abertura para discussão, questionamento. É um modelo sacerdotal em que você não discute, não critica e não faz nenhum tipo de análise das lideranças religiosas. Isso interessa aos líderes religiosos e aos governantes que se aliam a esse tipo de estratégia porque não se critica o pastor, não se critica o bispo, o presidente. Você se submete à autoridade. Mas essa ressignificação da estética e dos símbolos judaicos vem principalmente a partir da década de 1990, com o crescimento dos grupos neopentecostais. Não só símbolos mas cânticos de guerra que são muito próprios dessa época – “Homem de guerra é Jeová / Seu nome é temido na Terra /A todos os seus inimigos venceu / Deus grande e temido em louvores” – que era um cântico famoso, feitos com uma compreensão de que Josué cercou a cidade de Jericó e cantou para derrubar seus muros, que é uma passagem bíblica.
Inclusive tem músicas sobre Josué também, né? “Vem com Josué lutar em Jericó / E as muralhas ruirão…”
Há uma compreensão de que há poder no canto, na fala, naquela liturgia, com aquela intrepidez, isso derrubaria os inimigos e os inimigos na mentalidade evangélica mudam de tempos em tempos e sofrem metamorfoses. É sempre preciso ter um inimigo. Pode ser o diabo, pode ser um governante. Quando não é aliado aos seus projetos de poder como eles os compreendem, é inimigo. Então essa linguagem é própria mais dos anos 1990 quando o movimento neopentecostal cresce e ressignifica esses símbolos, as músicas, as lideranças piramidais hierarquizadas. E foi se fortalecendo a medida em que os liderados não podem criticar ou levantar qualquer suspeição aos líderes. Mas, como diz Weber, é preciso olhar para isso a partir do conceito de um “tipo ideal”, nem todo mundo é assim, você pode encontrar uma liderança pentecostal ou neopentecostal ética, correta, que não utiliza dessa linguagem.
O templo de Salomão, é uma sacada política impressionante. É uma igreja que nasceu em 1977 e que era vista de maneira crítica por muitos evangélicos, como uma “seita” enquanto categoria acusatória. O líder, bispo Macedo, reconstrói as bases dessa igreja com a tradição judaica, com o templo de Salomão que tem 2 ou 3 mil anos antes de Cristo! Então ele dá um salto histórico para o passado para se ancorar numa tradição que a igreja não tinha e que vai além da igreja evangélica, da católica. É uma igreja que tem pouco mais de 40 anos mas dá um salto para o passado para se ressignificar por uma tradição de antes do próprio Cristo. Isso foi uma sacada política, de tentativa de legitimação, muito impressionante. E se associar a Israel tanto aqui no Brasil quanto nos Estados Unidos tem notoriedade, tem apoio político, institucional. Não é pouco. Mas eu desconfio das reais intenções, se são as mais elevadas.
Tem se questionado sobre essa proximidade dos evangélicos com Israel se é algo que tem mais a ver com profecia ou com política. Eu queria dividir essa pergunta em duas. A primeira é se você acredita mesmo nisso porque certamente haverá muitas implicações políticas com essa aproximação entre os dois países. E a segunda é: o que significa, biblicamente, simbolicamente, mudar a embaixada para Jerusalém?
Os religiosos entendem que há uma posição estritamente calcada nas profecias bíblicas que dizem que esse povo é o povo eleito de Deus e que Jerusalém é a terra do povo de Deus e que, portanto, precisa ser defendida sempre contra os inimigos. Os inimigos do povo de Deus devem ser derrotados para o estabelecimento da paz. Logo, para haver paz em Jerusalém é preciso derrotar os inimigos. A figura do rei Davi dá a isso uma importância enorme porque ele vai lá, derrota os inimigos e estabelece os limites de Jerusalém com essas fronteiras onde hoje o movimento mais conservador e fundamentalista em Israel procura estabelecer os assentamentos para chegar nos limites do que era a Jerusalém de Davi e Salomão. Como os cristãos são uma potência no mundo, principalmente nos Estados Unidos e aqui também, os judeus, muitos deles, se aproximam e se apropriam desse apoio. E sobre os governantes, pode até ser que tenham alguma crença, por ter tido formação cristã, mas eu acho que o que mobiliza o jogo é o interesse na governança, no estabelecimento do poder. Os governantes se apropriam dessa compreensão para defender seus próprios interesses. E é curioso porque os evangélicos são, em termos gerais, bastante críticos a qualquer distorção de sua doutrina. Mas Bolsonaro se batizou no Rio Jordão dentro do ritual da fé evangélica, e continua se dizendo católico. Os próprios evangélicos fazem vista grossa porque os interesses mútuos entre eles e suas premissas se associam ao governo por uma espécie de afinidade eletiva que se forma. E tem uma coisa ideológica que está muito dada nos últimos tempos que é fustigar esse inimigo que é o palestino, que pode estar associado no Brasil com o governo do PT que tinha uma proximidade com a causa palestina, com os governos de esquerda que sempre foram próximos aos palestinos. Então tem também esse lado mais ideológico, de se contrapor a um projeto de esquerda com um projeto de direita que apoia o Netanyahu. É importante dizer que, no Brasil, desde os anos 1980 há movimentos de resistência dentro das igrejas, mais ligadas a uma agenda de esquerda e de defesa dos povos palestinos, do massacre dos filhos de Ismael que seriam os antepassados dos palestinos. Numa compreensão de que essa gente também é massacrada, sofre violência e que o projeto de Deus não é esse. Mas isso não encontra muito eco nas igrejas. O apoio a Israel é muito mais frequente. E por isso acho que a mudança da embaixada atende também a essa ideologia mais ampla, em que projetos de esquerda e direita se conectam com uma agenda religiosa, do ponto de vista do sionismo judaico e cristão. Mudar a embaixada é simbólico por esse reconhecimento da cidade de Davi. E muitos evangélicos não dão conta de entender a fragilidade da geopolítica daquele lugar. Inclusive já se percebe as reações de nações árabes e você tem questões econômicas também. O capitalismo está interessado em ideologias que favoreçam seu mercado e não outra coisa, por isso acho que não vai ser simples assim.
Você fala bastante sobre essa conexão com o Velho Testamento. Mas e o Apocalipse [último livro da Bíblia que fala sobre o fim dos tempos e sobre a volta de Cristo]? Não há também uma promessa de que Jesus voltaria por Jerusalém?
A Bíblia é um livro de muitas profecias, variados ensinos e histórias. Os grupos sempre se apropriam a partir do que lhes interessa e do que lhes convém. Os judeus mais tradicionais acreditam que o messias não veio e que ele virá um dia e aparecerá em Jerusalém. E os cristãos que têm essa conexão com o povo judeu não desconsideram isso. Muitas igrejas, por exemplo as históricas, dizem que o novo povo de Israel é a igreja que se submeteu ao verdadeiro messias que é o Cristo. O novo Israel seria a igreja ligada ao messias Jesus. Essa é outra compreensão. Muitos evangélicos acreditam que esses judeus, como sendo historicamente um povo eleito, se encontrarão e reconhecerão Jesus como sendo o messias. Dependendo do momento isso tem mais ou menos apelo.
Então o que você está dizendo é que essa proximidade dos evangélicos com Israel vem mais a partir do Velho testamento do que a partir do Apocalipse, certo?
O substrato das igrejas pentecostais e neopentecostais é a teologia da prosperidade, que é fortemente ancorada no Antigo Testamento. Haverá paz e prosperidade em Jerusalém, orem pela paz e prosperidade de Jerusalém. Quem ora pela paz e prosperidade de Jerusalém será alcançado por essa mesma paz e prosperidade. A compreensão do Apocalipse, e mesmo a crença no Apocalipse, já foram muito mais pregadas do que hoje. Hoje há uma espécie de arrefecimento, não há uma pregação tão eloquente, as novas gerações de pastores já não falam disso com tanta força. A teologia da prosperidade traz um interesse muito maior na prosperidade aqui e agora do que na vida feliz pós-morte, como era antes dos anos 1980. Antigamente era “aqui eu sofro mas no céu serei feliz”. Hoje é “eu quero ser feliz aqui e agora e não abro mão disso”.
E a mudança da embaixada é uma demanda antiga por parte do eleitorado evangélico?
Antiga é a importância que se dá a Jerusalém. A coisa de mudar a embaixada eu acredito que vem mais de um espelhamento do que acontece no meio evangélico dos Estados Unidos, como muitas coisas. A teologia da prosperidade veio de lá, o neopentecostalismo tem bases lá. Acho que havia pressões dos grupos com muito poder, dinheiro e influência nos Estados Unidos que levaram o Trump a pedir a mudança da embaixada e a agenda dos evangélicos daqui é muito atrelada à agenda dos evangélicos de lá. Eu nunca ouvi uma liderança como o Silas Malafaia, por exemplo, falando antigamente sobre a troca da embaixada. Até porque a troca de uma embaixada é questão de política de Estado, não é uma política religiosa em si.
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Imagem: Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá /AFP