Em 2010, a vida de Arã, uma jovem indígena sateré-mawé, mudou radicalmente. Nascida em uma aldeia acessível apenas por vias fluviais, no coração da floresta amazônica, ela foi parar na chácara de uma ONG religiosa em Brasília, acompanhada de seus pais adotivos. Lá, a menina, então com 14 anos, buscaria tratamento para problemas mentais, mas acabou engravidando de um jovem de outra etnia que também havia ido parar ali. Arã queria que sua filha se chamasse Mariana, mas não teve a oportunidade de dar o nome à criança. Quatro dias após o parto, o bebê foi retirado de seus braços e entregue ao irmão e à cunhada de uma das dirigentes da ONG.
Narrada em um relatório sigiloso do Ministério Público Federal (MPF) a que ÉPOCA teve acesso, a história de Arã está no centro de uma longa disputa judicial que envolve a organização Atini — a ONG em questão —, criada pela atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Oficialmente, a entidade destinava-se a auxiliar comunidades indígenas. A ONG está sendo processada por separar o bebê da mãe e de sua família indígena e entregá-lo irregularmente a pessoas sem vínculo com a cultura sateré-mawé.
O caso, ainda em tramitação na Justiça do Rio de Janeiro, reproduz o que parece ser um método da Atini para separar crianças indígenas de seus povos. A própria entidade afirma já ter abrigado 51 crianças em sua sede, em Brasília. Ela é alvo de uma série de ações judiciais pela retirada de índios de aldeias. O roteiro é quase sempre o mesmo: uma criança indígena, rejeitada no nascimento e criada por outros índios, que sofre maus-tratos, acaba acolhida pela entidade. O suposto passado de violência levaria inclusive a risco de morte — tratado em vários casos como infanticídio —, o que justificaria o “resgate” feito pela ONG.
Chamadas a prestar esclarecimentos na Justiça, pessoas ligadas à entidade adotaram essa fórmula para justificar a saída da adolescente sateré-mawé da aldeia e a posterior tomada de seu bebê. Segundo a Atini, Arã foi rejeitada pelos pais no nascimento, por apresentar problemas mentais. Em sua aldeia, na Amazônia, a jovem cresceu sob os cuidados de um casal de índios, sofreu maus-tratos e acabou sendo vítima de algo ainda pior. Na história contada pela ONG, Arã, ainda uma criança, foi vítima de constantes rituais de estupro coletivo em sua tribo, sofrendo abuso por 32 índios, incluindo seu pai biológico. Os dirigentes da ONG citam o calvário da índia para justificar problemas psicológicos que a teriam feito rejeitar o próprio bebê.
O relatório do Ministério Público reproduz o relato de integrantes da entidade. “Souberam que a adolescente havia sido rejeitada pelos pais por apresentar problemas mentais. Foi criada por outro casal indígena, mas era maltratada com frequência e usada sexualmente por vários membros da tribo. Antes de ‘E’ (inicial do nome do bebê, dado pelos pais adotivos) , já havia tido outros filhos, mas não sabem o que ocorreu com eles. O infanticídio era cometido quando a criança nascia com algum problema de saúde, era filho ilegítimo (como no caso da adolescente) ou outras características malvistas pela tribo. A gravidez foi descoberta quando os pais adotivos de Arã solicitaram ajuda à ONG para tratamento das convulsões (…) Arã refletiu a cultura de sua tribo e rejeitou sua filha.”
Essa versão é completamente desconstruída no relatório do Ministério Público. O analista em antropologia Walter Coutinho Jr., que assina o documento, chega a destacar que “impressiona o exacerbado preconceito” demonstrado pelos integrantes da ONG ao narrar a história da índia Arã, de sua família e do próprio povo sateré-mawé. Em um laudo citado pelo MPF, um médico afirma “em letras garrafais” que Arã não possui nenhum transtorno mental. Para o MPF, “inexiste qualquer comprovação de que a adolescente ( Arã ) tenha sido rejeitada pelos pais por apresentar problemas mentais”.
Essa afirmação, segundo o MPF, “carece de qualquer comprovação etnográfica conhecida”, assim como o suposto infanticídio cometido pelos saterés-mawés “quando a criança nasce com algum problema de saúde ou ‘outras características malvistas pela tribo’ não possui respaldo etnológico”. Segue o relatório: “A afirmativa de que Arã seria ‘maltratada com frequência e usada sexualmente por vários membros da tribo’ não explicita quem era o autor dos maus-tratos”. No curso da elaboração do relatório, o MPF foi até a aldeia de Arã, acompanhou sua rotina com a família e também atestou a normalidade das relações dela com os parentes.
“Qual é, afinal, a fonte ou o fundamento de tantas afirmações peremptórias sobre a jovem, seus familiares e o povo indígena ao qual pertencem?”, questiona o perito Walter Coutinho Júnior, para, na sequência, ele mesmo responder: “O testemunho de integrantes da Atini!”. Um relato de um membro da ONG conta, por exemplo, que Arã foi rejeitada pelos pais adotivos e entregue aos cuidados dos missionários por estar grávida. O MPF refuta a afirmação: “A adolescente não foi rejeitada e entregue aos cuidados da ONG por estar grávida, e sim preservada por eles da viagem a uma região remota (de volta à aldeia) , quando já havia engravidado na chácara da entidade”.
Questionado pelo Ministério Público, o roteiro de “distorções” da Atini sobre a cultura dos índios saterés-mawés foi utilizado recentemente pela ministra Damares Alves para justificar a adoção irregular da jovem Kajutiti Lulu, de 20 anos, tirada de uma aldeia kamayurá, no Parque do Xingu, quando tinha 6 anos de idade. Segundo as alegações da Atini, Lulu teria sido rejeitada por seus pais biológicos e salva de ser enterrada viva, num ato tribal de infanticídio. Assim como Arã, Lulu foi levada para a cidade para um tratamento de saúde. Acabou sendo criada irregularmente como filha por Damares Alves , como contou ÉPOCA no início deste mês. Apesar das acusações da ministra de que a menina sofria maus-tratos entre seus familiares, a própria Damares posou recentemente em uma foto com os pais adotivos de Lulu, de quem se disse amiga, sem fazer qualquer menção ao passado supostamente cruel de Lulu no Xingu.
Segundo os habitantes da aldeia ouvidos pela reportagem, Lulu foi levada para a cidade por Márcia Suzuki, dirigente da Atini e braço direito de Damares Alves, para fazer um tratamento dentário e nunca mais voltou. Em entrevista ao UOL após a publicação da reportagem, a própria Lulu confirmou que saiu de casa para cuidar dos dentes em Brasília. Depois de ÉPOCA revelar o caráter irregular da suposta adoção de Lulu, a ministra disse que era apenas “cuidadora” da menina e reconheceu que nunca formalizou a adoção, como pede o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Por causa das revelações de ÉPOCA e por outros atos controversos de Damares, dois advogados de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, entraram na terça-feira com ação popular na Justiça Federal para pedir o afastamento imediato da ministra do cargo.
No caso da ministra, a relação com Lulu atravessou os anos no anonimato e na informalidade. No caso da índia Arã, a situação é ainda mais grave, porque houve tentativa formal de adoção de sua filha, o que comprovaria a intenção da Atini de não devolver a menina a seu povo. Tanto no caso de Lulu quanto no caso do bebê retirado da mãe, a dirigente da Atini, Márcia Suzuki, é personagem central da trama. Depois de levar Lulu do Xingu, Márcia levou o bebê de Arã a seu próprio irmão, Marcos dos Santos, e a sua cunhada, Angélica, que prontamente entraram na Justiça com um processo formal de adoção. O casal, mesmo sabendo que a menina recém-nascida tinha mãe, tratou logo de batizá-la com outro nome. Foi ao saber da adoção envolta em questões suspeitas que a Justiça do Rio de Janeiro abriu uma investigação para apurar os motivos que levaram a criança indígena a ser afastada da família e do povo sateré-mawé.
O afastamento do bebê de sua mãe ocorreu em setembro de 2011. Depois de se recuperar do parto, a adolescente acabou levada pelos integrantes da Atini para um sítio no município de Duque de Caxias, no Rio, pertencente a outra ONG com atuação entre os indígenas, a Jovens com uma Missão (Jocum), também ligada a Márcia e à Atini. O MPF registra que foi apenas meses após o nascimento da criança, já em 2012 — depois de Arã fugir do sítio da Jocum e ser encontrada na rua com “marcas de maus-tratos pelo corpo” —, que autoridades tomaram conhecimento do desejo da jovem de manter a filha consigo e de retornar a sua aldeia no Amazonas. Ela foi encaminhada pela Justiça a um abrigo, também em Duque de Caxias. Em 2013, uma perita do MPF a visitou e constatou “a certeza de que a menor deseja muito voltar para sua comunidade”.
O relatório da visita conta a seguinte história: “Ao ser informada que tinha direito a ficar com a sua filha, ( Arã ) exclamou ‘Eu quero, eu quero! Eu tenho direito? Então eu quero minha filha!’. ( Uma profissional ) mostrou-lhe fotos da filha e ela ficou muito emocionada. Explicamos a manifestação do Ministério Público para que a filha retorne para a genitora e do possível adiamento em razão da espera da bebê e avaliação para que seja autorizado o seu eventual retorno com a bebê para sua comunidade indígena de origem”. O retorno foi autorizado em 2013, mas a Justiça não determinou a reunião com a filha, já há dois anos com o irmão de Márcia e sua esposa. A essa altura, os tios maternos de Arã já haviam retornado à aldeia e enviado um ofício, por meio da Funai, pedindo o retorno da jovem também.
Para além das histórias de Arã e Lulu, a própria ministra Damares Alves já deu declarações que indicam a existência de outras crianças tiradas de aldeias nas mesmas condições. Em 2017, Damares contou a história da criação da Atini em um discurso na Câmara dos Deputados. “Os índios começaram a ouvir que havia um movimento nesta casa falando sobre avançar neste tema e começaram a bater à porta dos gabinetes, pedindo socorro. Foi assim que eu me tornei mãe de uma menina, aqui nesta casa, uma menina kamayurá que corria risco em sua aldeia”, disse. “Foi assim que o deputado Henrique Afonso, do PT do Acre, se tornou pai de um menino xavante”, continuou. “Foi à porta do gabinete dele que foi pedido socorro. E foi assim que eu me tornei mãe de uma segunda menina, também xavante. Quando bateram à porta do gabinete, pedindo socorro.”
ÉPOCA questionou Damares nesta semana sobre quem é essa segunda filha e a circunstância de sua adoção. Por sua assessoria, a ministra disse que teve a guarda provisória da criança enquanto ela fazia um tratamento e que depois a menina foi encaminhada para outra família na cidade, que a adotou formalmente. “A menina visita a aldeia com frequência, e sua mãe biológica faz visitas regulares a seu lar adotivo.”
Além de atuar em casos em que é acusada de subtrair indígenas de suas aldeias, a Atini atende até hoje crianças doentes acompanhadas por seus pais em tratamentos na cidade. Em respostas enviadas à reportagem no início do mês, a Atini afirmou que todas as crianças indígenas em sua propriedade em Brasília estão acompanhadas de familiares. Isso não impede, porém, que quem mora nas aldeias peça o retorno das crianças, como ocorreu no caso de índios kamayurás, saterés-mawés e suruwahás. Nos dois últimos casos, houve registros e investigação.
No caso de Lulu, a ministra se amparou em outros parentes da menina índia, incluindo Piracumã e Kamaiulá, considerados seus pais adotivos, para negar que tenha cortado os contatos com a família. “Lulu não foi arrancada dos braços dos familiares. Ela saiu com total anuência de todos e acompanhada de tios, primos e irmãos para tratamento ortodôntico, de processo de desnutrição e desidratação. Também veio a Brasília estudar.”
Damares Alves intermediou também a adoção de outra criança xavante por um pastor em São Carlos, São Paulo. Procurado, tanto o pastor quanto o deputado Henrique Afonso afirmaram que regularizaram na Justiça a guarda definitiva dos xavantes que adotaram, mas não passaram por um processo de adoção, já que as crianças mantêm seus vínculos com a aldeia Xavante, em Mato Grosso. “Assim o movimento Atini cresceu e se transformou na instituição Atini, porque não havia onde colocar as crianças. A instituição nasceu para acolher as crianças”, contou Damares no discurso de 2017.
Em 2006, Márcia Suzuki e Edson Suzuki, seu marido, que ainda atuavam na ONG Jocum, foram contratados pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para atuar como intérpretes da língua suruwahá no atendimento a uma criança chamada Iganani, diagnosticada com retardo de crescimento e de desenvolvimento neuropsicomotor. A partir daí, teria ocorrido a retirada de um grupo de indígenas da comunidade.
Dois extensos relatórios da Funai, elaborados em 2011, registram o que ocorreu. Para a Funai, houve uma “subtração” dos índios. Deixaram a tribo a menina Iganani e sua mãe, Muwaji Suruwahá. Segundo a Atini, Iganani fora condenada à morte por envenenamento por causa de uma paralisia cerebral. Muwaji, então, teria procurado os missionários para “enfrentar” a própria tribo. Mãe e filha foram levadas para São Paulo para tratamento médico.
Os relatórios da Funai apontam que outras duas crianças foram retiradas da comunidade posteriormente: Ahuhari, de 12 anos, e Inikiru, de 9. Os parentes das crianças exigiram o retorno delas à tribo, e em 2008 o MPF foi informado da situação. Em 2009, todos eles foram encontrados na chácara da Atini. Por mais de uma vez, os relatórios da Funai citam que a comunidade não se conformou com a ausência das crianças e que não houve consentimento para a saída do grupo.
A Funai concluiu naquele ano de 2011 ser necessário pedir uma “busca e apreensão de incapazes”, de forma que a guarda fosse devolvida à aldeia. Em 2013, o delegado da Polícia Federal Manoel Vieira da Paz Filho concluiu que não foram confirmadas as informações sobre retiradas de indígenas de suas tribos sem o conhecimento de servidores da Funai e dos líderes das tribos.
Para entender a relação entre a causa do infanticídio indígena e a atuação da Atini, é preciso remeter à origem da ONG. Márcia e seu marido, Edson, eram, já na década de 80, membros da Jocum, organização então recém-chegada ao Brasil. Fizeram parte de um grupo de missionários que testou o método de evangelização na comunidade isolada dos suruwahás, no Oeste Amazônico. Em duas décadas de atuação entre os indígenas, aprenderam a falar sua língua, traduziram a Bíblia, se envolveram para impedir a prática do suicídio, recorrente na aldeia, e retiraram crianças de lá. Tudo culminou em uma investigação do MPF no início dos anos 2000.
Por trás da discussão cultural, estava um vácuo legislativo, segundo um documento produzido pela Procuradoria-Geral da República (PGR) na época. Antes da Constituição de 1988, índios eram considerados inimputáveis. Portanto, não podiam ser culpados por crimes como o infanticídio. Isso mudou, sem que ficasse claro como eles seriam integrados à lei brasileira. “O ordenamento jurídico brasileiro não criou ainda, apesar do que dispõe a Constituição, normas concretas que permitam o reconhecimento efetivo das regras de conduta interna dos diferentes povos indígenas no país”, discorre texto incluído em laudo do MPF sobre os suruwahás. Era preciso, argumentou o perito Walter Coutinho Jr. — o mesmo antropólogo que trabalhou na análise do caso de Arã, em 2013 —, criar soluções legislativas.
Em dezembro de 2005, foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre MPF, Funai, Funasa e Jocum para que os missionários abandonassem a terra suruwahá. Meses depois, foi oficializada a criação da Atini, com a bandeira da criminalização do “infanticídio indígena”. Mesmo que autoridades afirmem que a prática se reduz a algumas etnias, nos anos seguintes os membros da ONG, incluindo Damares Alves, percorreram o Brasil divulgando o problema no meio evangélico como algo generalizado entre índios. Os membros da Jocum só abandonaram em definitivo o território suruwahá por volta de 2009, após insistentes tentativas do MPF.
Os missionários seguiram outra recomendação do Ministério Público, porém: buscar uma lei para resolver o impasse. O Projeto da Lei Muwaji, que quer punir agentes de saúde por omissão de socorro em casos de infanticídio em aldeias, foi proposto em 2007 na Câmara dos Deputados. Seu nome, segundo a descrição, é “em homenagem a uma mãe da tribo dos suruwahás que se rebelou contra a tradição de sua tribo e salvou a vida da filha, que seria morta por ter nascido deficiente”. O autor é o deputado Henrique Afonso — à época, do PT do Acre —, um dos muitos parlamentares que empregaram a pastora Damares Alves como assessora em seu gabinete e o mesmo que adotou a criança xavante.
O Projeto de Lei abre uma brecha para a atuação de entidades como a Jocum, porque não trata apenas de punição. “Qualquer pessoa que tenha conhecimento de casos em que haja suspeita ou confirmação de gravidez considerada de risco (…), de crianças correndo risco de morte (…) serão obrigatoriamente comunicados (…) à Funasa, à Funai, ao Conselho Tutelar da respectiva localidade ou, na falta deste, à autoridade judiciária e policial, sem prejuízo de outras providências legais”, diz a proposta. A recomendação é que as crianças correndo “risco” sejam retiradas e entregues a organizações governamentais ou não governamentais, devidamente credenciadas. Atini significa “voz” na língua suruwahá.
Em 2013, em um culto evangélico publicado no YouTube, Damares vocifera contra o infanticídio. “Descobrimos, irmãos, que temos em torno de 120 etnias indígenas no Brasil e entre 30 e 40 matam seus filhos. Na verdade, só tivemos prova disso em 2004, e em 2006 começamos a fazer o enfrentamento”, disse. “Nós temos um estudo, que ainda não é oficial, que, por ano, 450 crianças indígenas no Brasil estão sendo enterradas vivas.”
Não há base documental para as alegações da pastora. Duas notas técnicas produzidas em 2015 e em 2016 pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, detalham a extensão da prática do infanticídio — que a pasta prefere chamar de neonaticídio — no Brasil, por etnia. O primeiro documento afirma terem ocorrido 40 mortes em 2014, assim distribuídas: 32 nos ianomâmis, uma nos sanumás e uma nos xirianas, registradas pelo distrito existente nos ianomâmis; duas nos kaingangs, registradas no distrito Interior Sul; duas nos kaiowás, em Mato Grosso do Sul; uma nos barés, registradas no distrito de Manaus; e uma nos guajajaras, no Maranhão.
Ainda assim, a Atini seguiu como uma organização cujo único objetivo declarado é impedir o infanticídio. Na prática, separou jovens indígenas de suas comunidades. O cacique Kotok Kamayurá, ouvido por ÉPOCA a respeito do caso de Lulu Kamayurá, defendeu que a organização seja fechada. “Não é assim, não (essa história de infanticídio), é o contrário. Tem de fechar a Atini. Porque é para lá que vão esses índios que estão saindo daqui.” Em 2009, líderes dos yawalapitis, de Mato Grosso, e kayapós, do Pará, denunciaram à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados a adoção ilegal de crianças indígenas pela Jocum e pela Atini.
Segundo a página da entidade na internet, hoje “a Atini assiste crianças das etnias kamayurá, kajabi, suruwahá, kuikuro, ikpeng”. Não há registros oficiais de infanticídios recentes nessas populações compilados pelo Ministério da Saúde. No Parque do Xingu, em Mato Grosso, visitado por ÉPOCA, indígenas de diversas etnias negam a perpetuação da prática nos dias de hoje. Em 2013, segundo os documentos produzidos pelo MPF, havia “ao menos 23 autos em curso no MPF (judiciais e/ou extrajudiciais), que têm por objeto a investigação de supostas irregularidades concernentes à atuação das missões evangélicas Jocum e Atini em terras indígenas no Brasil”.
A Funai, no desenho do novo governo Bolsonaro, foi esvaziada de sua principal função, a demarcação de terras, hoje sob o Ministério da Agricultura. Sob protestos de servidores e defensores da causa indígena, o órgão ficou abrigado no Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves. A jornalista Sandra Terena, amiga de Alves e militante contra o infanticídio indígena, hoje é secretária nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
A Atini afirmou, por meio de sua advogada, que “somente foi citada e é parte em três processos promovidos pelo MPF, dos quais só houve sentença em um deles”. A sentença condenatória se refere ao documentário Hakani , que retrata a história de uma índia suruwahá e foi barrado sob a acusação de encenar o ritual do infanticídio em uma aldeia em que ele não existe, difamando os indígenas. A entidade está recorrendo.
“A Atini entende que vem sofrendo perseguições em virtude de sua postura intransigente na defesa dos direitos humanos universais, não admitindo quaisquer tentativas de relativização de tais direitos”, afirmou a nota. “A postura relativista dos direitos humanos, condicionando sua titularidade e abrangência, tem sido defendida por parte do MPF, contrariando os tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário, os quais obrigam o Estado brasileiro a combater as práticas tradicionais nocivas, tais como o infanticídio indígena e o estupro coletivo, protegendo as vítimas e dando voz a elas.”
ÉPOCA procurou Marcos e Angélica, o casal que adotou a filha de Arã, por mensagem e por telefone. Angélica atendeu e afirmou que não tinha nada a dizer à reportagem. Segundo amigos, Márcia Suzuki emigrou para os Estados Unidos com seu marido, Edson. A jovem Arã, segundo o último registro do processo, seguia em sua aldeia no Amazonas — sem sua filha.
Quem são as crianças levadas para a Ong Atini
HARANI
Retirada da área suruwahá em novembro de 2002, entrou em um processo de adoção por um casal não indígena na cidade
LULU
Foi levada da aldeia kamayurá, no Parque do Xingu, Mato Grosso, para a cidade aos 6 anos. A justificativa era fazer um tratamento dentário. Não retornou em definitivo e foi criada por Damares
ARÃ
Jovem sateré-mawé, foi levada para a cidade aos 14 anos, com a justificativa de cuidar de sua saúde mental. Engravidou de um jovem na chácara e sua filha foi entregue a outro casal
XAGANI
Filho de um líder político do grupo Suruwahá, saiu da aldeia e acompanhou uma viagem de crianças e adolescentes de sua etnia para tratamento em São Paulo, patrocinada pela Atini. O MPF se queixa de que a Funasa não providenciou seu retorno
HAKANI
Levada em 2001 para tratamento médico no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, São Paulo, é uma das indígenas que a Atini alega ter salvado de ser enterrada viva. Foi adotada por Edson e Márcia Suzuki
ANUHARI E INIKIRU
Foram levados da aldeia suruwahá aos 12 e 9 anos, respectivamente. Em 2009, quando o MPF investigava a retirada das crianças da aldeia, foram encontrados na chácara da Atini
SUMAWANI
Criança levada ao hospital em abril de 2003, foi retirada da aldeia Suruwahá. Passou por uma cirurgia
AMALÉ
Segundo Márcia Suzuki, é um menino que foi salvo de ser enterrado vivo da aldeia kamayurá e recebia apoio da entidade
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O presidente Jair Bolsonaro empossa a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Foto: Valter Campanato /Agência Brasil