Na Cult
A face hedionda do governo Bolsonaro mostrou-se claramente nestes 50 dias em dois projetos. A reforma da previdência e o código Moro. Não são estanques. Estruturalmente se complementam.
A reforma da previdência é parte de um projeto de acumulação em detrimento dos trabalhadores (que começou a aparecer no golpe do impeachment) que em sua totalidade vai aprofundar a miséria da massa trabalhadora, metade da qual vive com menos de um salário mínimo. Uma tal estrutura iníqua de dominação não é mantida apenas com mecanismos ideológicos.
É preciso também a violência do Estado para controle dos excluídos, em especial dos jovens da parte de baixo da pirâmide social, para os quais todas as portas para ascensão social e melhoria de vida estão fechadas. Essa é uma das funções estruturais do direito penal e a realidade por trás da aparência do Projeto Moro. A extensão da excludente de ilicitude para incluir “medo”, “surpresa” e “emoção”, na prática, diante do conservadorismo do Judiciário, por vezes filofascismo, do uso perverso que faz de expressões de linguagem aberta nesse campo, significa a legalização do homicídio para a polícia. Não atingirá quem mora no Leblon ou nos Jardins.
Temos assim o modelo do Estado neoliberal. Ele se caracteriza pela flexibilidade de seu tamanho. Conforme a necessidade é grande ou pequeno. É grande para punir, mas encolhe para ser utilizado como instrumento de acumulação.
A reforma da previdência, a longo prazo, retira do Estado a função de gerir a previdência. Receber uma aposentadoria estatal que não condene o trabalhador à miséria na velhice transforma-se em uma corrida de obstáculos praticamente impossível de ser superada. Assim, abre-se o espaço para fundos privados, dominado por grandes grupos financeiros que passam a controlar de acordo com a lógica do mercado uma massa formidável de recursos. O resultado disso no Chile estamos vendo: suicídio de idosos.
O déficit da previdência é a grande mentira do século 21, pelo menos até este ano da graça de 2019. Ele simplesmente não existe. É uma manobra grosseira martelada incessantemente, dia e noite, pelos grandes órgãos de comunicação, uma aplicação da estratégia Goebbels, segundo a qual uma mentira torna-se verdade se repetida à exaustão.
Previdência, saúde e assistência social compõem a seguridade social. Isto está no artigo 194 da Constituição Federal. As fontes de financiamento dessas três áreas estão discriminadas no artigo 195 e são múltiplas e abundantes. Contribuições dos empregados e empregadores, COFINS, PIS-PASEP, importações e até loterias. Considerando essa massa de recursos, a seguridade social tem superávit. O suposto déficit da previdência é fabricado desconsiderando os Arts. 194 e 195 da Constituição para só computar o que se arrecada com a contribuição previdenciária e o que se gasta em aposentadorias e pensões.
O que na verdade sangra o orçamento da União é a dívida pública. Ela que suga a riqueza produzida pelos trabalhadores para pagar juros e o serviço da dívida. Em 2018 foram dispendidos 380 bilhões de reais, algo entre 40 e 50% do orçamento da União.
Começa-se a entender a lógica do mercado ao exigir a reforma da previdência quando se verifica de onde vem parte dos recursos para a dívida. Exatamente das fontes de financiamento da seguridade social que estão lá no Art. 195 da Constituição e que deveriam apenas financiar a seguridade social. Pelo mecanismo da DRU (Desvinculação de Receitas da União) esses recursos são utilizados também para a dívida pública. Então, o de que se trata é o seguinte: é preciso diminuir as despesas com a Previdência para que o superávit das fontes de receita da seguridade social esteja disponível para o pagamento dos juros e serviço da dívida.
O ajuste fiscal de que precisamos é outro e para outros fins. Lucros e dividendos, por exemplo, estão isentos de Imposto de Renda. Claro que os pró-labores diminuem e essa massa de recursos tributáveis vai para a rubrica a salvo do imposto. A monstruosidade aparece quando, em vez de tributar lucros, corta-se o Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos pobres com mais de 60 anos. Ele passaria, com a reforma, a ser de meio salário mínimo até os 70 anos. Não há como qualificar isso. Dizer monstruosidade é insuficiente. O ajuste fiscal precisa ser feito para que o Estado possa oferecer saúde, educação, bens sociais, investir, gerar empregos. Mas esses gastos estão congelados porque o parasitismo financeiro precisa de recursos.
Mais e mais as classes dominantes refestelam-se no capitalismo financeiro parasitário provocando a desindustrialização. Segundo dados do IBGE, a indústria responde hoje por apenas 11 por cento do PIB, a menor desde os anos 50, quando deixávamos, nas décadas anteriores, de ser um país eminentemente agrário. Nos anos 1980 a participação da indústria era superior a 20%.
A desindustrialização gera um efeito tremendo na base da sociedade. Circulação de ativos financeiros não produz riqueza real. Como diz Ladislau Dowbor, “é o rabo que balança o cachorro”. Ou seja: “ sistema financeiro é de mediação, não produz nada. Então as áreas produtivas se tornam o meio para os especuladores ganharem dinheiro”. Menos empregos, mais trabalhadores tendo que sobreviver na economia informal, sem direitos e garantias e os que estão na economia formal sendo mutilados em seus direitos pela reforma trabalhista. Pauperiza-se a base da sociedade, que não tem como consumir e constitui-se o círculo vicioso da desindustrialização.
Nesse cenário irracional e caótico, que não abre qualquer perspectiva para os despossuídos, oprimidos economicamente e oprimidos também psicologicamente pela desigualdade ao contemplar a orgia de luxo e consumo dos privilegiados, é preciso um xerife Moro para manter essa pirâmide social lotando presídios.
Neste espaço, em outra oportunidade, transcrevi parte de uma entrevista de John Ehrlichman, assessor de Nixon. Peço licença aos leitores para fazê-lo de novo porque é exatamente disto de que se cuida, na essência:
“Quer saber realmente do que se tratava? A campanha de Nixon em 1968 e a Casa Branca, depois, tinham dois inimigos: a esquerda contrária à guerra (do Vietnam) e os negros (…). Sabíamos que não podíamos tornar ilegal ser contra a guerra ou ser negro, mas ao fazer com que as pessoas associassem aos hippies a maconha e aos negros a heroína, e penalizar severamente ambas as substâncias, podíamos pegar as duas comunidades. Podíamos deter seus líderes, realizar incursões em suas casas, interromper suas reuniões e difamá-los noite após noite nos noticiários. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim”.
É uma confirmação empírica do conceito de direito penal como meio de dominação pelo controle da massa de excluídos. O endurecimento das leis penais, o punitivismo, que puseram no sistema prisional brasileiro 800 mil pessoas, a maior parte jovens negros, é tanto maior quanto maior a desigualdade e a irracionalidade da estrutura social. É para isto que serve o Código Moro.
No governo do capitão, as duas pontas do laço que vai apertar mais o pescoço da massa excluída estão nas mãos de Guedes e Moro. Pouco importa para os setores beneficiados quem seja o presidente. Pouco importa que seja notoriamente despreparado, com um comportamento fora da curva do padrão de normalidade psicológica e incapaz de articular uma frase que não derive do mais estulto que há no senso comum e de fácil apelo popular.
O caos e as trapalhadas desse governo somente incomodam essa elite se põem em risco a reforma da previdência, vale dizer, o capitalismo parasitário. Aí então editoriais e colunistas irados passam uma carraspana no tresloucado presidente e deixam nas entrelinhas a ameaça de apeá-lo do poder. E eles o farão se realmente o trapalhão se revelar incapaz de conduzir a reforma que eles querem.
Bolsonaro é uma sombra. O real é esse projeto de acumulação e consequente pauperização da massa e seus condutores são de verdade o poder hoje. O real é esse projeto de barbárie social.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.
Pessoa em situação de rua e arte urbana, inimigos de políticas higienistas. Foto: Hélvio Romero
Não seja o túmulo da resistência, o mundo já está cheio de suicidas da inércia, aqueles que não se interessam por nada, não veem, não ouvem, não falam, política para eles é perda de tempo. Quem não se movimenta não percebe os grilhões que lhe prendem. É preciso espernear, gritar, berrar feito louco para chamar o outro a razão. Saiamos dessa inércia que é o câncer da nossa sociedade!!