Não deixe que eles mudem o sentido do Dia da Mulher

Por Tatiana DiasAmanda AudiBruna de LaraJuliana GonçalvesPaula BianchiNayara FelizardoSílvia Lisboa, no The Intercept Brasil

Eles morrem de medo da gente. De mulheres que transam porque querem (quanto medo esses homens têm de serem ridicularizados na cama, né?); que não transam quando não querem (haja medo de rejeição); que criam os próprios filhos; que resolvem não tê-los; que vestem, fazem e falam o que querem. De mulheres que sobrevivem, resistem e se organizam. É por isso que eles são agressivos, endurecem no discurso, tentam controlar os costumes, definir de que maneira deveríamos nos comportar e desqualificam nossos movimentos. É porque eles têm medo.

Sabem que, a partir do momento em que a gente avança, eles perdem espaço – um espaço que jamais conseguirão recuperar, ainda que se esforcem com todo tipo de retrocesso em um governo. Em “O segundo sexo”, Simone de Beauvoir definiu muito bem o que há por trás desse comportamento masculino:

Ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso, do que o homem que duvida de sua virilidade.

Intimidados pelos semelhantes, os machos inseguros se confortam na ideia de que existe uma espécie de casta sempre inferior a eles: as mulheres. “O mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante das mulheres”, Beauvoir escreveu. Poucos homens estão verdadeiramente comprometidos com o rompimento das regras do patriarcado – palavra que faz muitos pensarem em ‘feministas peludas’, mas que resume esse mundo de machos e para machos a que estamos tão acostumadas. Mas os medíocres, os inseguros, os pequenos, esses são os que vão defendê-las com mais afinco.

É por isso que o bolsonarismo é um governo de homens e para homens. Homens tão inseguros que acham que o simples fato de serem expostos a tarefas domésticas ou a bonecas na infância coloca suas masculinidades em risco. E que, por isso, resistem a qualquer iniciativa que coloque em xeque esses padrões.

Esse governo é contra a educação sexual nas escolas, por exemplo, que é uma maneira de prevenir que sejamos estupradas. Também colocou uma ministra mulher para defender rigidez na manutenção dos papéis de gênero – o que, na prática, nos aprisiona à maternidade e a tarefas domésticas. E transformou em prioridade o homeschooling, ou seja, incentivar que as famílias – na prática, as mães – ensinem as crianças em casa, longe da escola.

O bolsonarismo tem medo da nossa liberdade.

O ódio e o medo

Diante da libertação feminina, os homens ficam aterrorizados: é porque suas inseguranças aparecem. Eles não têm mais como escondê-las. Com mulheres livres, que competem de igual para igual, eles deixam de ter uma casta inferior para que mesmo os mais medíocres se sintam superiores.

É por isso que reagem com raiva e agressividade. Passam a valorizar as “puras” que se comportam exatamente como eles querem, e são agressivos, ameaçam e tentam desqualificar as que os desafiam. Michele Bolsonaro e Damares Alves, as escolhidas para representar os valores patriarcais que eles querem perpetuar, que o digam.

No mundo perfeito dos homens medíocres, inseguros e medrosos, só há espaço – limitado e controlado – para as mulheres brancas e heterossexuais (as recatadas e do lar, é claro). Essas são suas joias raras (apesar de terem nascido de fraquejadas). O resto? Lida com as consequências desse sistema.

Mesmo quando somos vítimas, somos condenadas pela justiça por não cumprirmos os papéis que acham que deveríamos cumprir. Continuamos trabalhando muito mais do que os homens em tarefas domésticasestudamos mais, mas ainda ganhamos menos, e nossos filhos, que o estado quer nos obrigar a carregar, ainda que seja de um estuprador, não têm assistência e nem creche de qualidade.

Esse sistema trabalha para eliminar as mulheres que não se comportam como o esperado. A cada 36 horas, uma mulher é vítima de feminicídio – e os parceiros são responsáveis pela maior parte desses assassinatos. Entre as mulheres negras, a violência de gênero é ainda pior – além de serem também o grupo com as piores condições de vida no país, as que mais choram a morte de seus filhos legitimadas pelo racismo da política de segurança pública e as que mais sofrem problemas e violência durante a gravidez.

ALÉM DA VIOLÊNCIA e da intolerância, a política de homens com medo também passa por deslegitimar qualquer iniciativa de mulheres que ouse desafiar o poder. O grupo de Facebook Mulheres Unidas Contra Bolsonaro foi repetidas vezes hackeado e invadido por opositores. Nas manifestações do #EleNão, em setembro do ano passado, a máquina de fake news da campanha bolsonarista foi muito eficiente em reduzir os protestos a mulheres feministas sujas, mal amadas, mal comidas e promíscuas. Na guerra cultural em que o conservadorismo está vencendo, e em uma nação que está se tornando cada vez mais evangélica, não é difícil deduzir que o discurso colou.

Assim como fizeram no carnaval ao selecionar uma cena isolada para tentar desqualificar todo o movimento de oposição. Cenas extremas que despertam sentimentos primitivos de medo, nojo e repulsa, suficientes para delimitar o inimigo – os LGBTs, as mulheres, os negros, os favelados – e alimentar a retórica do nós contra eles. O carnaval, “deles”, é isso aqui. Nós não fazemos isso, somos puros. Essas manifestações feministas, “delas”, é isso aqui: peitos de fora e sovacos peludos. Nós somos limpinhos. É a comunicação fascista básica: os outros (feministas, gays, esquerdistas, insira aqui o substantivo que quiser) são sujos; só o líder, o pai, nós, podemos purificar isso-tudo-que-tá-aí.

Não é difícil deduzir que, quanto maior o grito de “ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”, maior vai ser o esforço da máquina bolsonarista para tentar destruir o nosso movimento. Spoiler: não vão conseguir.

Trazer quem ficou para trás

A derrota eleitoral fez com que emergisse uma série de críticas ao setor progressista. Já falamos sobre isso: sobre como não soubemos comunicar as pautas identitárias, como não falamos com as mulheres negras e pobres, que não se sentiram parte dos movimentos de resistência, sobre o efeito contrárioindesejado do #EleNão. Por outro lado, também mostramos como os movimentos identitários – que parte da esquerda mofada insiste em culpar – saíram fortalecidos mesmo com a derrota. Se dependesse das mulheres mais jovens, vale lembrar, Bolsonaro sequer estaria eleito.

Em janeiro, Rosana Pinheiro-Machado escreveu sobre como a ascensão da direita também está fazendo emergir uma série de movimentos políticos de esquerda – com reflexos, inclusive, eleitorais. E ela aposta: a revolução irrefreável está vindo. E está vindo debaixo:

Quando o desespero bater sob o governo autoritário e misógino de Jair Bolsonaro, é importante olhar adiante e lembrar que muita energia está vindo de baixo, a qual, aos poucos, vai atingir os andares de cima. É uma questão de tempo: as adolescentes feministas irão crescer, e o mundo institucional terá que mudar para recebê-las.

Para não cair nas armadilhas da eficiente máquina de comunicação bolsonarista, precisamos ser claras ao dizer o que queremos e incluir mais gente no debate. Nós estamos avançando, mas precisamos lembrar de trazer também quem ficou para trás. Levar em conta as particularidades de cada grupo – que inclui também as mulheres que não entendem o que é feminismo – e lembrá-las que, se avançarmos, elas avançam com a gente. E, principalmente, levar em conta o sistema que atinge diferentes mulheres de diferentes formas, como as negras, por exemplo, que sofrem com o racismo, além do machismo. Precisamos do que está sendo chamado de feminismo para os 99%: o que contempla as mulheres mais vulneráveis e não só as mais privilegiadas.

O dia de hoje é da luta de todas nós, e a gente não pode deixar que a nossa diversidade seja apagada por meia dúzia de homens com medo que têm a sorte de estar com o poder nas mãos neste momento. A história é cíclica, e nós já vimos esse filme muitas vezes. Nós estamos avançando, e não será um governo de homens medíocres e inseguros que vai nos frear.


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