Efetividade dos processos nada tem a ver com condenação ou prisão, mas com sua condução com respeito ao devido processo legal e aos direitos fundamentais
Por José Henrique Rodrigues Torres*, no Justificando
Trancado em sua casa, impedido de participar dos julgamentos, o juiz Filoclêon bradou: “Vocês não vão mesmo me deixar julgar? Dracôntidas será absolvido!”. Esse juiz não era apenas viciado em julgamentos, mas, sobretudo, em condenações, que, para ele, representavam a efetividade dos processos: “O Deus de Delfos respondeu-me que eu morreria no momento em que um acusado escapasse de minhas mãos”. [1]
Como cantaria Cassia Eller: uma paranoia delirante! [2]
Mas, atualmente, está muito difícil não nos lembrarmos dessa peça, encenada há quase 2.500 anos, nos umbrais da “democracia” ateniense. Juízes “FiloMoros”, inspirados no Major Vidigal [3], concentram em suas mãos, impunemente, as tarefas de investigar, acusar, condenar e executar as suas próprias decisões. Para “salvar a sociedade”, e, obviamente, condenar os acusados, que, obviamente, são culpados, porque, obviamente, foram acusados, o que importa é “a doutrina das opiniões prováveis”, não mais as provas produzidas sob o arnês do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Esmeralda, que não matou Phoebus, seria hoje também condenada, também sem provas, não pelo homicídio, mas, pela impertinência de ser cigana, mulher, livre e indomável.
Provas, ora provas! Não mais interessa o sistema probatório, nem o contraditório, nem as demais garantias constitucionais, pois, essa guerra declarada contra inimigos prováveis, bem definidos e elegidos, deve ser vencida a qualquer custo, “exemplarmente”, ainda que seja com as armas da persuasão retórica e com indícios inverossímeis da verossimilhança, em homenagem à espectral ideia imagética do “interesse público”. Machado já nos alertou: não importa se é ou não fake news a carta endereçada a Felix, denunciando a infidelidade de sua noiva Livia [4], porque o que realmente importa é despertar a desconfiança sobre o inimigo a ser eliminado, excluído, subjugado.
E, para que seja garantida a obediência dos subalternizados, pela força, pela ignorância, pelo engano e pela alienação, Julien seria hoje também condenado e preso, mesmo antes de ser condenado, não pelo crime que cometeu, mas, pelo ousio de romper com os grilhões da desigualdade, do preconceito e da pobreza, pela “audácia de imiscuir-se naquilo que o orgulho da gente rica chama de sociedade”. [5]
Enfim, a ideia falsa de neutralidade e equidistância, que cega, para impedir a visão de um mundo repleto de contradições, continuará condenando milhares de “vendedores de verduras”, implacavelmente, porque, submersos no espanto e subjugados diante das ideológicas formalidades do poder, como conta Anatole France, ficarão calados, não para exercer o seu direito constitucional ao silêncio, mas, sim, por temer os seus juízes, como diante dos carrascos que no seu pescoço apertam a frouxidão do laço [6].
É por isso que ainda ressoa, estridente e incômoda, nas esquinas e nos blocos carnavalescos, a resposta de Nekhliúdov, quando perguntado, no curso de um julgamento em que atuava como jurado, qual seria o sentido da justiça: “A manutenção dos interesses de classe. O Tribunal é apenas um instrumento administrativo para a manutenção do estado de coisas vigente, vantajoso para a nossa classe”. [7]
Daí, o delírio: é preciso selecionar, culpar e prender, mesmo antes de condenar. Até Freud explica: “Os grupos homogêneos, para sobreviver, para manter a coesão interna, precisam eliminar os heterogêneos” [8]. E, como observa Humberto de Campos, “quando a justiça quer, os cestos sobem os rios, os peixes cantam nas árvores e os pássaros fazem ninho no fundo do mar” [9].
Não importa, portanto, ouvir a advertência feita por Vieira, há séculos: “Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos, ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo: come-o o Meirinho, o Carcereiro, o Escrivão, o Solicitador, o Advogado, o Inquisidor, a Testemunha e o Julgador. Ainda não está sentenciado e já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido”! [10]
É assim que a íntima paixão punitivista que empolga os Filocleones contemporâneos segue alimentando a ideia irracional de que a efetividade da justiça criminal deve ser garantida com condenações e, especialmente, com prisões antecipadas, para que o banquete seja farto e os acusados, comidos, antes do trânsito em julgado, antes do processamento dos recursos legais, antes mesmo das condenações.
Como títeres de Mefistófeles, os autoproclamados “defensores da sociedade”, intocáveis super-heróis da Justiça sem fronteiras, montados em cavalos que só falam inglês, proclamam, em cadeia midiática nacional: “eu sou uma parte daquela parte do todo que quer fazer o mal, mas cria o bem” [11]. E, assim, superando o ficcional Major Vidigal e incorporando, também, a função legislativa, apresentam propostas para combater a criminalidade que fariam corar a Fausto e Riobaldo, como esta, paradigmática: para garantir efetividade ao Júri, o acusado deve ser imediatamente preso, se condenado pelos jurados, ou seja, para “fazer o bem”, é preciso “fazer o mal” e violar dogmas e garantias constitucionais, neutralizar direitos, conspurcar o princípio da presunção de inocência e romper com a luta e a ação social dos movimentos históricos que consolidaram o sistema de garantias dos direitos humanos.
Mas, isso é inadmissível, inclusive sob o prisma dos princípios éticos constitucionais e convencionais. Sem que exista qualquer motivo para a decretação da prisão cautelar [12], não é possível antecipar o cumprimento da pena, pois, todos os acusados têm direito à presunção de inocência [13], ao devido processo legal e a um recurso eficaz [14]. Contra qualquer decisão de primeiro grau, proferida por órgão monocrático ou colegiado, há de existir a possibilidade legal de um recurso com o mais amplo espectro impugnativo, hábil para devolver à instância superior a cognição de todas as questões referentes à causa, ou seja, os fatos, o direito aplicável e os meios de prova substanciais, impedindo a imediata execução da decisão condenatória [15]. É por isso que as decisões do Júri não são definitivas e suportam recurso, com efeito suspensivo, que permite, inclusive, o reexame das provas [16].
É verdade que o Júri é soberano, mas isso não implica a negação ou exclusão das garantias constitucionais e convencionais. A soberania do Júri é uma garantia fundamental dos acusados e não pode ser invocada contra eles. Aliás, o STF já decidiu que a soberania do Júri “ostenta valor meramente relativo”, “não se reveste de intangibilidade jurídico-processual” e “não confere a esse Tribunal um poder incontrastável e ilimitado” [17].
E não é invocável, senão de forma falaciosa, o julgamento do HC/STF n. 118.770/SP, pois, ao contrário do que consta da ementa publicada, o STF não acolheu a alegada obrigatoriedade de prisão imediata dos condenados pelo Júri, como pretendia o Min. Barroso, mas, sim, não conheceu da impetração “ante a inadequação da via eleita”. E, nesse julgamento, também houve o voto do Min. Marco Aurelio, afirmando que, mesmo diante da condenação do Júri, eventual prisão somente seria admitida se presentes os requisitos exigidos para a prisão cautelar.
Decididamente, não se pode fazer justiça com a pressa do Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas [18]. Nenhuma paranoia delirante há de justificar essa pressa. Seria melhor se ouvíssemos a canção do Chico: “Não se afobe, não, que nada é pra já” [19]. Efetividade do processo nada tem a ver com condenação ou prisão, mas, sim, com a sua condução, até o seu termo final, com absoluto respeito ao devido processo legal e a todos os direitos fundamentais.
Afinal, como já afirmou o Ministro Celso de Melo, “o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades civis, das franquias constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário”.
Seria melhor, portanto, que, despidos de preconceitos, crenças e preferências pessoais, ideologias e códigos ocultos, nós juízes e juízas, antes de darmos crédito a delírios, ouvíssemos o ensinamento de Aristóteles, que já afirmava, há tantos e tantos anos, que fazer Justiça, na realidade, com compromisso ético, antes de qualquer outra coisa, é eliminar as desigualdades. E, quando formos tentados pelo canto lúgubre do punitivismo delirante, seria melhor ainda se nos lembrássemos de Milton Santos: “Somente haverá paz, quando houver igualdade social”.
É preciso, pois, não nos transformarmos em rinocerontes, como na obra de Ionesco, e resistir [23].
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José Henrique Rodrigues Torres é juiz de direito, titular da Vara do Júri de Campinas, membro da AJD e ex-presidente de seu Conselho Executivo
Notas:
[1] “As vespas”, de Aristófanes, 422 a.C.
[2] “De esquina (Paranoia delirante)”, de Xis
[3] “Memórias de um Sargento de Milícia”, de Manuel Antonio de Almeida
[4] “Ressureição”, de Machado de Assis
[5] “O vermelho e o Negro”, de Sthendal
[6] “Crainquebille, o vendedor de verduras”, de Anatole France
[7] “Ressurreição”, Liev Tolstói
[8] “A psicologia das massas”
[9] “O Caso de Li-Tsing”, de Humberto de Campos
[10] “Sermão de Santo Antonio Pregando aos Peixes”
[11] “Fausto”, de Goethe
[12] HC 462.763/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, J. em 18/09/2018, DJe 28/09/2018; Proc. n. 2018.0000975878; 16ª Câm. Crim. Rel. Des. Souza Nucci e Des. Camargo Aranha e Leme Garcia; e TJRS, 1ª Câm. Crim, Rel. Jayme Weingartner Neto – ApCrim Nº 70077995371- Torres- Nº CNJ: 0164749-97.2018.8.21.7000
[13] Art. 5º, LVII da CF/88: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória”; Artigo 8º, 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos: “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”; Artigo 14, 2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992: “Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.
[14] General Comment n.º 32/2007: Comitê de Direitos Humanos: viola o disposto no seu artigo 14.5 da CADH a falta de disponibilização de um recurso eficaz e de natureza ordinária contra a sentença condenatória de primeiro grau
[15] Art.14, 5 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992: “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”; e o art. 8º, 2, h da Convenção Americana de Direitos Humanos garante o “direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”
[16] Arts.593, caput e III e 597 do CPP
[17] STF – HC 81423-SP, Rel. Celso de Mello, j. 18.12.2001, DJe 19.04.2001
[18] “As aventuras de Alice no País das Maravilhas”, de Charles Lutwidge Dodgson (Lewis Carroll)
[19] “Futuros amantes”, de Chico Buarque de Holanda
[20] STF, ADPF n. 54
[21] Referência a Figueiredo Dias e Costa Andrade, em “O homem delinquente e a sociedade criminógena”
[22] “A Ética a Nicômaco”, de Aristóteles
[23] “O Rinoceronte”, Eugène Ionesco