Por que 1964 continua tão vivo

Por Fausto Salvadori, da Ponte

Ninguém briga de verdade por causa do passado. Se tem gente se xingando nas redes sociais e militantes arrancando o sangue uns dos outros em brigas de rua — como a que foi testemunhada ontem, na Avenida Paulista, pelos repórteres Daniel Arroyo e Maria Teresa Cruz — no aniversário do golpe de 1964, é por saber que a disputa pela memória e pelo significado da ditadura militar dizem respeito ao presente e, principalmente, ao futuro.

A narrativa que as Forças Armadas, o governo Jair Bolsonaro e seus apoiadores apresentam sobre o golpe militar e a ditadura que provocou é poderosa. Vende a ideia de que havia uma conspiração invisível para transformar o Brasil em uma ditadura comunista e que, para evitar esse destino, “foi necessário tutelar a nação”, como escreveu o sobrinho-neto de um dos ditadores do período. Tutelar a nação: uma missão que os bravos militares aceitaram, tomando todas as medidas necessárias para evitar que o Brasil tivesse o pior dos destinos. É uma narrativa que justifica todo tipo de atrocidade, do fechamento do Congresso às mortes e torturas, chegando aos recém-descobertos casos de sequestro de crianças por militares, em nome do combate a algo que aparece como o Mal Absoluto.

Que essa narrativa seja desmentida pelos fatos é algo que não tira sua força, ao contrário: é justamente por se sobrepor a qualquer fato, por valer mais do que o mundo real, que esse conto tem tanto poder. O potencial do uso político desse tipo de narrativa é enorme, o que já foi demonstrado com milhões de cadáveres: é essencialmente a mesma trama, trocando-se comunistas por judeus e “solução final” por “tutela da nação”, que serviu para justificar o holocausto nazista. Também é muito parecido com o discurso que, há anos, vem justificando a morte e o encarceramento da população pobre e negra.

É fácil perceber como é arriscado tocar a vida numa democracia em que uma parte significativa dos moradores acha que, sob determinadas circunstâncias, é OK implantar uma ditadura e matar e torturar para derrotar um inimigo, e o risco que passamos a viver ao eleger um presidente que estimula essas ideias.

Mas que ninguém se engane: nada disso começou com Bolsonaro. Ele apenas expôs para todo mundo ver um entulho autoritário que havíamos varrido para baixo do tapete. Não é verdade que as Forças Armadas tenham renegado seu passado ditatorial e se tornado “protetoras da ordem democrática”, uma afirmação que virou modinha entre alguns analistas. Os membros das Forças Armadas podem ser menos estúpidos e estridentes do que a família Bolsonaro, mas suas lideranças têm, sim, orgulho do legado de 64. Para ficar em dois exemplos, Hamilton Mourão elogiou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, dizendo que “heróis matam”, e Augusto Heleno já chamou a Comissão da Verdade de “excrecência” e defendeu as atrocidades cometidas no Araguaia.

O mesmo se pode dizer das forças auxiliares das Forças Armadas, as Polícias Militares dos estados, que, após a redemocratização, nunca deixaram de seguir com a prática sistemática das torturas e das execuções extrajudiciais. As PMs também se orgulham da sua ligação com a ditadura. Uma das 18 estrelas que enfeitam o Brasão de Armas da PM paulista é dedicada… adivinha? À “participação na Contra Revolução de 1964”.

O Brasil seguiu um caminho diferente de outros países que passaram por períodos totalitários. Ninguém celebra a ditadura militar na Argentina. Em diversos países europeus, celebrar o legado nazista dá cadeia. Já o Brasil até hoje não soube completar sua transição democrática: não puniu os crimes da ditadura, manteve as polícias militares e permitiu que os militares continuassem a ensinar em suas escolas que não houve ditadura e que os torturadores eram heróis. Com isso, garantiu a continuidade da barbárie. Como diz Débora Maria da Silva, das Mães de Maio: “Se os crimes da ditadura tivessem sido punidos, os crimes de maio de 2006 não teriam ocorrido. Se os crimes de maio de 2006 tivessem sido punidos, os grupos de extermínio não estariam matando hoje nas periferias”.

O Brasil que vivemos hoje é efeito direto dessa transição à democracia que nunca completamos. Assim como nunca conseguimos concluir a transição da sociedade escravista que fomos um dia, outra parte do nosso passado que nunca deixou de estar presente.

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Veja, também da Ponte:

I Caminhada do Silêncio. São Paulo, 31 de março de 2019. Foto: MPF / Facebook

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