No Conjur
Este é meu texto de Páscoa.
É em solidariedade e homenagem às editoras Boitempo e Contracorrente, impedidas de participar na feira de livros do centro acadêmico João Mendes Jr, órgão representativo de alunos e alunas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. Pois é. A Reitoria censurou as duas editoras. Tempos difíceis de index, não?
Pergunto: e a palavra “Presbiteriana”? Bom, pensando em religião e quejandos, escrevo este artigo! Viva as editoras boicotadas. Que belos livros essa gente publica. Só ignorantes é que não sabem disso! Só ignorantes é que podem dizer coisas como “não precisamos desse tipo de literatura”. “Para que ler livros que não são didáticos?” Triste. Muito triste. Se for gente do Direito, pior ainda. Por isso é que os livros que mais vendem são os que ensinam macetes e sinopses que não fazem sinapses…!
Ao trabalho, pois!
Vendo que “cristãos” fuzilam, ofendem e odeiam em Seu nome (um dos prováveis matadores de Mariele tinha em seu WhatsApp o lema “Deus acima de todos”; os meninos assassinos de Lorena disseram que iam ao seu encontro; o assassino da Nova Zelândia, idem; políticos usam Deus para provocar discursos de ódio; um senador, que tem o lema “Deus acima de todos”, diz que as professoras, se estivessem armadas, poderiam evitar os assassinatos…e o resto cada leitor preenche), Deus resolveu passar a régua. Irritado, deu um berro e disse: “F….-se!”[1]
Mas Ele, que já havia expulsado Adão e Eva sem lhes dar o devido processo legal e ter uma participação dúbia no episodio que aumentou a taxa de homicídios em 100% (quando Caim matou Abel), sabia que tinha de usar critérios. Não podia ser discricionário.
Mas como? E Jesus chegou, com fala pausada, mostrou-Lhe um livro de Amoz Oz e disse: “Pai, eis um livro de um conterrâneo meu. Ganhou Prêmio Nobel. Ele lembra de uma conversa que o Senhor teve com Abraão. Lembra disso, Pai”?
“Sim, lembro, afinal, Deus não esquece (risos)”. E Deus relembrou: “Abraão, gente boa ele, discutiu comigo o destino de Sodoma. Quantos justos lá haveria? Cinquenta? Vinte? Dez? Quando se percebe que não havia nem mesmo cinco justos em Sodoma, Abraão, em vez de pedir perdão, com os olhos voltados aos céus, perguntou-me: ‘Não agirá com justiça o Juiz de toda a Terra?’. Atrevido esse Abraão, não meu filho?” Jesus respondeu: “É, Pai. Mas ele era o cara, pois não?”
Sim, disse Ele. “Abraão, em outras palavras, me disse: o Senhor é realmente o juiz de toda a Terra, mas não está acima da lei. O Senhor é realmente o legislador, mas não está acima da lei. Você é o senhor de todo o universo, mas não está acima da lei”.
“Veja, meu filho, eu não joguei nenhum raio fulminando Abraão como castigo por insolência ou ofensa aos céus. Por que não fulminei? Simples: porque ninguém está acima da lei. Nem eu.”
Jesus disse: “Bingo, Papai”.
E Deus continuou: “Vou fazer um novo dilúvio, uma versão 1.0, mais light, com critérios bem definidos. Pouparei, preliminarmente, todos os ateus. Meu fundamento, segundo o artigo 93, IX, da Constituição brasileira (gosto muito dela, meu filho) é: em regra, não se encontra ateus que odeiem, que matem, que praguejem ou façam qualquer barbárie em Meu nome, invocando-me e quejandos!”
“E os cristãos, Pai?”, perguntou Jesus. “Poxa, tanta gente se esforçando…”
Deus diz: “Para os que me invocam a todo momento, e que dizem “se Deus quiser” ou “Deus me livre” ou “em nome de Deus mato” ou “em nome de Deus afasto de ti este demônio” ou “em nome de Deus me pague 10% de seu sal-diário”, Deus acima de…, etc., farei seguinte”:
Pegou uma xícara de café fumegante feito com grãos brasileiros de exportação (porque o resto dos grãos são consumidos nos bares e restaurantes), deu um longo suspiro e disse: “Examinaremos, Eu, Você, Pedro e alguns estagiários, o WhatsApp e o Twitter (e o Face, essa praga que o diabo jogou na terra) de cada um. Alguma coisa dali que seja ódio ou idiotice (sim, os idiotas e néscios não serão perdoados; também não serão poupados os que dizem que a terra é plana, que Newton estava errado, que a terra só tem 6 mil anos e que Kelsen era um positivista exegético), e, bingo, dilúvio neles”.
E Ele continua: “Os que escaparem desse teste e aqueles que não têm WhatsApp (deve ser 0,0001% de pessoas), darei o benefício da dúvida e os excluirei do neodilúvio. E, é claro, se alguém que tenha postado no WhatsApp e alega que foi brincadeira, terá direito a efeito suspensivo no recurso e não irá direto para o inferno…”.
Ele fez outra pausa para mais um gole da infusão de rubiácea e completa: “Desde que não tenha postado nada dizendo ser contra a presunção de inocência e/ou dito frases como ‘garantias constitucionais incentivam a impunidade, Ferrajoli é marxista, que a editora Boitempo é nome de frigorífico, etc’ – bem, a lista é grande). Nesses casos, os réus não se ajudam…”.
E conclui: “Portanto, serei criterioso. Não agirei ‘sobre’ violenta emoção”, e parpadeó (piscou) para Jesus e Pedro, fazendo o gesto de quem faz aspas em uma palavra…
Ah: Deus foi à biblioteca e pegou um livro da Boitempo (O homem que amava os cachorros) e um da Contracorrente (Revolta e Melancolia). Pegou um vinho Petrus safra 1961 e uns acepipes… E se pôs a ler.
E começou a chover…
Feliz Páscoa a todos os meus leitores (no todos estão incluídas as todas). Talquei?
Sigam lendo. Faz bem. E assistam ao Programa Direito & Literatura, na TV Justiça. Ali analisamos muitas obras de editoras como Boitempo e Contracorrente…!
[1] Inspirei-me na crônica de Mário Corso “Um dia depois do apocalipse”, em que Deus se nega a ressuscitar mais pessoas, fazendo-o apenas com os ateus, porque estes, segundo Ele, nunca praticam crimes em Seu nome. Bingo, Mário!
Destaque: Inferno. Fragmento de mosaico do teto do Batistério de Florença