“Nosso rio Tapajós está pedindo socorro”, diz Alessandra Munduruku em audiência na Câmara Federal

Por Fábio Zuker, da agência Amazônia Real

Brasília (DF)  —  “Mineração, soja, gado: nosso rio Tapajós está pedindo socorro. Na frente da minha aldeia, tem três projetos de portos de soja”. A frase é da liderança Alessandra Korap Munduruku, durante a audiência pública “Debater a mineração na região do Rio Tapajós no Estado do Pará”, que aconteceu nesta terça-feira (23) com a presença de indígenas do povo Munduruku na Câmara dos Deputados, em Brasília. É na cidade que começa nesta quarta-feira (24) e vai até sexta-feira (26) o 15º Acampamento Terra Livre (ATL), a maior mobilização nacional em defesa dos povos indígenas.

“Querem nos expulsar, mas nós queremos viver em paz”, disse Alessandra, que é liderança Munduruku do Médio Tapajós, no município de Itaituba, na bacia do rio Tapajós, e também universitária do curso de Direito da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), em Santarém (PA).

Alessandra Munduruku destacou que é “obrigação do Estado demarcar o território, [mas] o território está sendo invadido, e está sendo vendido, junto com nós dentro”. A liderança indígena mostrou aos deputados federais uma fotografia do encontro do rio Tapajós com o Jamanxim, todo barroso, devido à terra revirada pelo garimpo. “Na seca, não estavam conseguindo cavar, para encontrar a própria água. Cavar com as mãos, e com os instrumentos que tinham”, disse ela.

A audiência pública “Debater a mineração na região do Rio Tapajós no Estado do Pará” foi proposta pelo deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS). A tarde na Câmara dos Deputados foi tumultuada, com todas as atenções da mídia e do governo federal voltadas à votação da proposta da Reforma da Previdência na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Por esse motivo, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), presidente da CMADS, teve apenas o tempo de afirmar estar “muito preocupado com toda a questão relacionada à mineração na Bacia do Tapajós”, e logo passou a palavra a Nilto Tatto e Camilo Capiberibe (PSB-AP), vice-presidente da CMADS e coordenador da audiência. Capiberibe não deixou de mencionar a ausência de representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Fundação Nacional do Índio (Funai): “não puderam estar presentes, ou não quiseram estar presentes”.

Mineração, mercúrio e doenças

As exposições começaram com a fala do médico neurocirurgião de Santarém, Erik Jennings, com longa experiência de trabalho junto às populações indígenas. Sua fala enfocou os impactos da mineração na saúde humana e na vida social das comunidades indígenas e ribeirinhas. “De longa data é sabido que essa atividade de mineração na bacia do Tapajós causa malária, leishmaniose, DSTs, violência, desnutrição e intoxicação mercurial”, disse.

Segundo o médico, o garimpo não apenas joga mercúrio nas águas e na atmosfera. Mas sendo o solo amazônico rico nessa substância, qualquer atividade de desflorestamento e das próprias dragas, ao mover a terra, libera quantidades antes sedimentadas deste metal e insere-o na cadeia alimentar. Na ponta final dessa cadeia está o ser humano, que come peixes carnívoros que são maiores e os mais contaminados, por se alimentarem dos peixes menores.

Jennings considera o mercúrio um “metal não-radioativo mais tóxico para o ser humano”, podendo gerar doenças graves como a tireoide e as atingem o sistema nervoso. A contaminação, que também afeta a população da cidade de Santarém, ressalta o médico, não tem cura, apenas tratamentos de terapia ocupacional.

A fala seguinte, de Heloísa Meneses, bióloga, geneticista e professora de saúde coletiva da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), aprofundou a compreensão dos deputados e do público presente, ao apresentar a sua pesquisa sobre a contaminação por mercúrio na região do Tapajós. “Por muito tempo se imaginava que apenas as áreas próximas ao garimpo eram afetadas, mas também pode ser transportado pelo vento”, afirmou Meneses.

A pesquisadora apresentou o projeto que desenvolve desde 2013 sobre o “perfil epidemiológico, clínico e molecular de populações ambientalmente expostas ao mercúrio na região do baixo tapajós”. O objetivo é avaliar a exposição do metal sob o ponto de vista da saúde humana. O resultado do estudo é alarmante: entre a população estudada, foram encontrados 124,6 microgramas de mercúrio por litro de sangue, em populações que vivem à margem do Tapajós. O nível recomendado pela OMS é de 10 microgramas por litro de sangue. Meneses também apontou sobre a capacidade do mercúrio de atravessar a placenta, contaminando fetos, em pleno processo de gestação.

Em seguida, Gecivaldo Vasconcelos Ferreira, delegado da Polícia Federal em Santarém (PA), afirmou que “um dos assuntos prioritários é a repressão à atividade garimpeira” na região do Tapajós, assim como “reprimir a clandestinidade, que é o que constitui o crime”. Ou seja, “aquela que acontece sem a autorização da agência nacional de mineração”. Segundo o delegado, a repressão “se volta à extração, ao transporte e à comercialização”.

Tradicionalmente focada na extração, a atividade de fiscalização impõe desafios consideráveis, pois a “grande maioria das áreas de atividade clandestina são em áreas remotas”, disse Ferreira.

Por isso, segundo ele, a Polícia Federal atua também na cadeia produtiva de comercialização. “Muitas empresas estavam comprando ouro em massa, acreditando que vinha de áreas legalizadas, mas vinha de área clandestina, esquentado, como se viesse da área legalizada”.

Operação de combate a garimpo ilegal na Amazônia. Foto: Ibama

O ponto de vista Munduruku

Em sua participação na parte da tarde desta terça-feira (23), a líder Alessandra Korap Munduruku apresentou uma fala longa, firme e contundente, sem deixar de exaltar uma certa poesia da sua visão de mundo, que surge, nesse momento de resistência pelas formas de vida indígena.

“Eu estava esperando um presidente da Funai estar nessa mesa. Falar do rio, falar da floresta. [Dá pra] ver que ele não está interessado nisso. Está interessado em expulsar e vender”, iniciou Alessandra. Em sua apresentação, ela mostrou imagens de destruição do território Munduruku. Em uma delas aparece um local com dragas destruídas em ação da Polícia Federal. “Já faz três anos que ela [a draga] parou”, afirmou a indígena, mostrando que a floresta não se recuperou, e a área permanece um lamaçal.

“Garimpo clandestino é ilegal dentro do território Sawré Muybu. Faz mais de dez anos que denunciamos, e não é feito nada. Isso quando era em outros governos. E como será agora, neste governo?”, questionou a indígena, referindo-se ao fato de que o governo de Jair Bolsonaro pretende legalizar a atuação de garimpeiros em terras indígenas.

“Esse território é um território sagrado”, continuou. “Está tendo mais invasão. Não era feito nada, e agora piorou”.

Ela conta que em 2017, os indígenas Munduruku saíram para fiscalizar seu território e viram os estragos causados pelos crimes ambientais. “Procurávamos água limpa no meio da Amazônia, e a água está suja. Não adianta ver de cima a floresta bonita. Ela está pedindo socorro”.

Para as populações indígenas, a contaminação da água influi diretamente sobre a vida, lembrou ela. “Os igarapés onde o cacique bebe água, o rio toma conta. E eles tem que tomar essa água. Crianças já com dor de barriga, e não tem o que dizer do peixe. Se nós deixarmos de comer peixe, vamos morrer de fome. Porque não tem o que comer”, disse Alessandra.

“Querem arrancar nossas raízes, mas as nossas raízes são fortes, nossas raízes estão lá dentro, no fundo. Cada vez que tiram nossas raízes, a semente ela brota, ela cai, e cada vez nasce mais”, continua. “Vocês precisam deixar a Amazônia em paz. Sawe!”, terminou Alessandra Munduruku, arrancado aplausos da plateia e da mesa.

A deputada federal Joênia Wapichana (REDE-RR) também se pronunciou na audiência. Ela afirmou que o garimpo e a contaminação por mercúrio é uma “preocupação legítima dos povos indígenas” e destacou que a atividade de garimpo afeta povos de outros estados brasileiros. “No Pará, mas também em Roraima”, onde o Yanomami também está contaminado. Pode afetar a saúde humana. “Não só dos indígenas, mas daqui a pouco, dos não indígenas também”, ressaltou a deputada.

Joênia ressaltou que essa semana acontece o Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília. “Esperamos que eles possam ter o direito a essa manifestação”, pois “é na situação de expor [os problemas que vivem] para as autoridades que eles vieram”.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, editou a Portaria MJSP nº 441/ 2019 autorizando o emprego da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) na Esplanada dos Ministérios, por um período de 33 dias, a contar de 17 de abril. A decisão, porém, não impediu que os povos indígenas ocupassem nesta madrugada (24)o gramado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

Em nota pública lançada nesta terça-feira (23), a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) disse que o ministro “extrapolou sua competência ao editar a portaria”. O órgão também apontou como manifestamente inconstitucional e ilegal o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em atividade de segurança preventiva, ostensiva ou investigativa por mera solicitação de um ministro de Estado — salvo, eventualmente, em situações de intervenção federal.

Garimpo ilegal em terra indígena na Amazônia. Foto: Ibama

Legalizar o garimpo?

Alguns deputados da audiência “Debater a mineração na região do Rio Tapajós no Estado do Pará”, que não compunham a mesa, apresentaram uma visão oposta da que vinha sendo debatida até então. Eles falaram da necessidade legalizar os garimpos com fiscalização frequente dos órgãos estatais, o que, segundo eles, teria menos impacto ambiental. Tal posição por exemplo, foi defendida pelo deputado Joaquim Passarinho (PSD-PA), sobrinho do ex-ministro, ex-senador e ex-governador do Pará, Jarbas Passarinho (1920–2016).

Joaquim Passarinho declarou que o que mais polui no seu estado “é a falta de estrutura”. Segundo o deputado, no ano passado, dois terços dos recursos da Agência Nacional de Mineração (ANM) foram congelados. “O que mais polui é a ilegalidade”, afirmou o deputado. Para ele, garimpos legalizados, licenciados e constantemente fiscalizados, podem gerar menos impacto ambiental.

Outra participação neste sentido foi a do vereador Diego Mota (Podemos), da Câmara Municipal de Itaituba (PA), em cuja proximidade se encontram importantes polos garimpeiros. Mota ressaltou que existe uma economia dependente do garimpo, e acredita na importância de darem “condições para que garimpeiro possa se regularizar, se legalizar”. “Se o garimpo para, a gente passa fome”, resumiu o vereador.

Assim que abriram as falas para o público, três indígenas se pronunciaram com veemência contra a proposta de legalização do garimpo que, como exposto pelos cientistas no painel, pelo próprio manejo do solo libera camadas de mercúrio sedimentadas.

João Kirixi, liderança Munduruku do rio Teles Pires, no Mato Grosso, lembrou que a operação da Polícia Federal de combate ao garimpo tirou a vida do seu irmão, Adenilson Kirixi Munduruku, morto durante a Operação Eldorado, no dia 7 de novembro de 2012, na aldeia Teles Pires, na divisa do Pará com o Mato Grosso.. “Por isso eu não quero a legalização. Nossa preocupação é com o alimento. Porque nosso supermercado é o rio, e a floresta, onde pegamos caça”, conclui o indígena.

Ediene Kirishi, também liderança Munduruku, falou que o objetivo de sua primeira vinda à Brasília foi “trazer a realidade da nossa população e do nosso território”. “Não queremos que continua lá esse garimpo”, enfatizou ela, que explicou o motivo: “traz doença, e além de doença, traz divisão dentro da comunidade. Isso não é bom pra gente. A gente precisa da nossa terra, da nossa floresta, dos nossos animais, dos nossos rios, porque sem ela nosso povo não vai viver”.

Novamente com a palavra, Alessandra Munduruku tratou de desmontar o argumento da necessidade de legalizar o garimpo. “Quando [o governo] fala que vai cortar verba, tira dos menores, e aí o pai, sem ter condição, vai pro garimpo. Mas a culpa é nossa ou do poder público? É corte de verba da saúde, é corte de verba da educação… e aí? esses deputados, vereadores tem que pensar mais, por que as pessoas pedem socorro, e muitas vezes não é ouvido. Impacta na região toda: no município, no Estado, e no Brasil. A consequência do que está acontecendo hoje, é a falta do emprego. Então o que fazem? Vão pra aldeia, tirar ouro, tirar madeira”, afirmou a indígena, chamando a atenção para toda uma população desassistida de políticas sociais e empregos “que sem poder ganhar o pão de cada dia, vai pro garimpo”. Para Alessandra, “legalizar garimpo não é bom para nós”.

Ao encerrar o debate, o deputado Capiberibe afirmou o debate da mineração traz um “falso dilema entre geração de empregos e preservação do meio ambiente. Temos que cumprir a tarefa toda”. Ele afirmou que a Comissão de Meio Ambiente irá continuar investigando formas de lidar com a mineração e contaminação do Tapajós.

Conforme os planos do governo federal, além do projeto de mineração, há planos para construção de 43 “grandes” barragens (com potência superior a 30 MW) na bacia do Tapajós, sendo dez consideradas prioritárias pelo Ministério das Minas e Energia (MME), com conclusão prevista para até 2022. Entre os impactos socioambientais previstos estão a inundação de várias terras indígenas (TIs) e de unidades de conservação (UCs), segundo o pesquisador Philip Fearnside. “Além disso, o Rio Tapajós, no estado do Pará, e seus afluentes no estado de Mato Grosso, os rios Teles Pires e Juruena, também são foco de planos do Ministério dos Transportes (MT), que planeja convertê-los em hidrovias para transporte de soja de Mato Grosso até portos no Rio Amazonas”, diz o cientista.

A liderança Alessandra Munduruku. Foto: Alberto César Araújo /Amazônia Real

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