Crescem os Conflitos e a Violência no Campo; a luta também. Por frei Gilvander Moreira[1]

Ai dos que ajuntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo, até que não haja mais lugar, de modo que habitem sozinhos no meio da terra!” (Isaías 5,8).

Dia 12 de abril último (2019), na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou o livro-relatório Conflitos no Campo Brasil 2018. Esta é a 34ª edição anual, desde 1985, de pesquisa da CPT que faz diagnóstico dos conflitos e violência no campo. Os dados recolhidos por mais de 700 agentes de pastoral da CPT, tabulados e analisados por uma equipe com competência técnica e compromisso com a causa do campesinato nas áreas dos conflitos agrários e socioambientais, demonstram o que segue.

Em 2018, aumentou o número de pessoas envolvidas em conflitos no campo. Aproximadamente um milhão de pessoas estiveram envolvidas em conflitos no campo no Brasil, em 2018, mais especificamente foram 960.630 pessoas envolvidas em conflitos contra 708.520 pessoas em 2017, um aumento significativo de 35,6%. Nos conflitos especificamente por terra, foram 118.080 famílias envolvidas em conflitos por terra, em 2018, contra 106.180, em 2017, nesse caso um aumento de 11%. De 2015 a 2018, média anual de 127.188 famílias envolvidas em conflitos na luta por terra no período da chamada ruptura política (2015-2018), iniciada com o golpe parlamentar-jurídico-midiático. Na região Norte estão 51,3% de todas as pessoas envolvidas em conflitos agrários. Isso significa forte indício do avanço/invasão da Amazônia pelo agronegócio via monoculturas.

Acirramento da violência privada faz explodir o número de famílias expulsas. Somente no ano de 2018, o poder privado foi responsável pela expulsão de 2.307 famílias (cerca de 9.228 pessoas) e o poder público por despejar 11.235 famílias (cerca de 44,940 pessoas). A região Norte, com 36,3% das famílias expulsas; a região Sudeste, com 35,6 % e a região Centro-Oeste com 24,9%. Em 2018, ano eleitoral, 28 camponeses foram assassinatos em conflitos no campo, sendo 50% lideranças (14), 16 camponeses no Pará e 3 Sem Terra em Anapu, PA. A CPT analisa que anos eleitorais tendem a ter uma diminuição nesse tipo de violência. Contudo, 2019 já aponta o retorno do aumento dos assassinatos. Nos quatro primeiros meses de 2019, a CPT já registrou 10 assassinatos em conflitos no campo. Porém, os números podem ser maiores do que os registrados. No Pará, Nazildo dos Santos Brito, 33 anos, liderança quilombola, foi assassinado na Comunidade Quilombola Turé III. Ele estava ameaçado de morte por denunciar crimes ambientais praticados pela empresa Biopalma da Amazônia S/A, subsidiária da Vale.

No ano de 2015, quando se inicia o período de golpe parlamentar-jurídico-midiático, vimos a extensão – área – em disputa em conflitos no campo aumentar extraordinariamente em 163%, em relação a 2014, passando de 8 milhões e 134 mil hectares em conflito para 21 milhões e 387 mil hectaresA área de 39 milhões e 425 mil hectares implicada em conflitos por terra, em 2018, corresponde a 4,6% da área total do país, o que mostra a gravidade da injustiça agrária no país.

Em 2018, em relação a 2017, houve um crescimento de: a) 4% no número de conflitos no campo; 35% no número de pessoas envolvidas; c) 40% em conflitos por água; d) 30% em conflitos trabalhistas; e) 10% em conflitos envolvendo a mineração; f) 11% no número de famílias envolvidas em conflitos por terra; g) 6,5% em terras em disputa; h) 59% em famílias expulsas; i) 5,7% maior em famílias despejadas: 11.231.

Em 2018, 482 mulheres sofreram violência nos conflitos no campo: a) 36 foram ameaçadas de morte; b) 6 sofreram tentativas de assassinato; c) 15 foram presas (10 mulheres sem-terra foram presas em julho de 2018 durante ocupação da Fazenda Verde Vale, no município de Alvorada do Oeste, em Rondônia); d) 2 torturadas; e) 6 sofreram ferimentos; f) 2 morreram em consequência dos conflitos. g) 1 sofreu aborto; h) 400 foram detidas (na ação em que denunciavam a privatização das águas em Minas Gerais, elas ocuparam a Nestlé, em São Lourenço, sul de MG. A polícia as manteve detidas por horas dentro dos ônibus que as conduziam e todas passaram por revista). A grande maioria das mulheres que sofreram violência em 2018 são sem-terra. Mas também sofreram violência: 13 indígenas, 2 advogadas populares, 2 agentes de pastoral, 8 quilombolas. Entre as mulheres que sofreram violência 20 eram lideranças. Números da Violência contra mulheres de 2009 a 2018: a) 38 foram assassinadas; b) 80 sofreram tentativas de assassinato; c) 409 receberam ameaças de morte; d) 22 morreram em consequência de conflitos; e) 111 foram presas; f) 410 foram detidas; g) 37 foram estupradas; h) Outras sofreram agressão (75), ameaça de prisão (16), contaminação por agrotóxicos (19), ferimento (52), humilhação (67) e intimidação (94).

A 34ª edição de Conflitos no Campo Brasil, referente ao ano de 2018, dedicou a publicação, entre outras, a duas mulheres: Marielle Franco e Irmã Alberta Girardi. O livro traz, ainda, apenas fotografias de autoria de mulheres, como uma forma de visibilizar a atuação delas nas mais distintas esferas no que tange à realidade do meio rural.

Em 2018, conflitos pela água quebraram novo recorde com maior número desde 2002. Em 2018 foram registrados pela CPT 276 conflitos pela água, envolvendo 73.693 famílias. 2018, portanto, quebrou o recorde de 2017, como o ano com o maior número de conflitos pela água, desde 2002, quando a CPT começou a registrar em separado esse tipo de conflito. Entre as vítimas, 85% delas são comunidades tradicionais. O número de conflitos foi 40% maior e o de famílias envolvidas, 108% maior. Bahia e Minas Gerais foram os estados com mais conflitos pela água em 2018. Cada um com 65 casos (23,55%). Ressalte-se que a maioria dos conflitos resulta em violência.

Em 2018, as mineradoras foram as responsáveis por 50,36% dos conflitos pela água (139 conflitos). 111 deles foram protagonizados por mineradoras internacionais e 28 por mineradoras nacionais. Três conflitos emblemáticos: 1) 58 ações envolvendo a tragédia de Mariana da Samarco/Vale/BHP Billiton, em Minas Gerais; 2) 55 comunidades do Baixo São Francisco Sergipano, na luta pela manutenção dos seus modos de vida, contra os interesses especulativos imobiliários; 3) 30 ações da empresa Hydro Alunorte contra as comunidades paraenses do município de Barcarena. Conflitos envolvendo mineração foram os mais altos em 2018. A mineração, a cada dia, torna-se responsável por boa parte dos conflitos e das violências que as comunidades do campo sofrem. Ela não se restringe à mina explorada. Exige toda uma infraestrutura de sedes, acampamentos, galpões, rodovias, ferrovias, minerodutos, condomínios ou company-town, que “pressupõem diferentes formas de domínio sobre o espaço geográfico”. São novos territórios usados, causando sobreposições e conflitos com os povos e comunidades que vivem e atuam nestes mesmos espaços. Os conflitos envolvendo a mineração atingiram diferentes povos e comunidades do campo de diversas categorias de trabalhadores e trabalhadoras, no campo e na cidade. São pessoas que dependem das águas, das florestas e da terra para reproduzir socialmente sua própria existência com dignidade. Os registros da CPT mostram que de 2004 a 2018 houve 1.123 conflitos em torno à mineração. A partir de 2010 houve uma explosão de conflitos causados pela mineração, o que demonstra que a mineração está causando colapso das condições objetivas de vida do povo e dos ecossistemas.

Em 2018, os conflitos trabalhistas deixaram milhares de trabalhadores reféns do silêncio. Em 2018 houve 89 ocorrências de conflitos trabalhistas – 35% a mais que em 2017e com 1.477 pessoas envolvidas – 178,8% a mais que em 2017. De 2000 a 2018, a CPT registrou 363 vítimas em conflitos envolvendo agrotóxicos, pessoas que morreram ou tiveram sua vida ameaçada devido ao contato com os venenos jogados na agricultura do agronegócio. Na realidade, os números são muito maiores, pois a imensa maioria dos trabalhadores não denuncia ou não são caracterizados como casos de intoxicação por exposição ao agrotóxico.

Importante lembrar que para os agentes pastorais da CPT contar a cada dia os números dos conflitos e da violência no campo não é fazer um registro frio. É o serviço de alguém que está ao lado dos/as camponeses/as, sofrendo com eles/elas, mas conspirando lutas de resistência e de enfrentamento ao sistema do capital na convicção de que a mãe terra, a irmã água, a biodiversidade e toda a cultura popular jamais podem ser privatizadas como insistem o sistema do capital e seus vassalos. Enfim, enquanto perdurar a iníqua estrutura fundiária, pautada no latifúndio e no agronegócio com monoculturas, a injustiça agrária e socioambiental se reproduzirá e se ampliará e não será possível superar as gravíssimas injustiças sociais que se abatem sobre a maioria do povo brasileiro. Conscientes disso, centenas de agentes da CPT seguem acompanhando pastoralmente o campesinato, em sua imensa pluralidade, e conspirando a democratização e a socialização da terra. Com o profeta Isaías, da Bíblia, seguimos denunciando: “Ai dos que ajuntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo, até que não haja mais lugar, de modo que habitem sozinhos no meio da terra!” (Isaías 5,8). Segundo o Evangelho de Marcos, uma pessoa que estava diante de Jesus crucificado, viu-o expirar e exclamou: “De fato, esse homem é Filho de Deus” (Marcos 15,39). Dói ver e constatar tanta violência acontecendo no Campo Brasileiro, mas somente quem tem a sensibilidade e a coragem de contemplar olho no olho os crucificados da história pode construir dias de ressurreição, de vida e liberdade para todos os seres humanos e para todos os seres vivos.

Nota:

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

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