A República dos homens-trapo: abaixo a inteligência, viva a morte. Por Marcio Sotelo Felippe

Na Revista Cult

A cerimônia de abertura do ano letivo de 1936 da Universidade de Salamanca foi invadida por franquistas. O reitor, o filósofo Miguel de Unamuno, interrompido pelo grito terrível do general Millán-Astray: “abaixo a inteligência, viva a morte”.

A visão de uma cerimônia oficial em que um grupo de pessoas, aparentemente sãs, celebram a liberação de armamento imitando revólveres com as mãos, os ataques ao ensino de Filosofia e Sociologia, o corte de 30% das verbas das universidades públicasnas bolsas de mestrado e doutorado reproduzem impressionantemente o episódio de Salamanca.

Mostram que o ódio à inteligência, ao conhecimento e o culto da violência são elementos próprios do fascismo, presente hoje tanto quanto na Espanha prestes a se tornar franquista.

Como chegamos a este ponto? Como estamos ultrapassando a fronteira entre civilização e barbárie? Como chegamos a este momento em que uma parte da sociedade se vê ameaçada em sua existência cultural, espiritual, política e ameaçada de aniquilação física a partir do ódio desencadeado e incentivado por homens-trapo, aqueles que Marx denominava de lúmpens (trapo, farrapo em alemão)?

É uma tragédia nossa, mas não só. Ela se inicia, grosso modo, nos anos 70, como reação ao momento em que a desigualdade diminuiu, o segundo pós-guerra, e em que vimos o auge das democracias do bem-estar social. Ganha impulso nos anos 80, momento em que a semente de uma insidiosa visão de mundo começa a germinar e dá-se a ofensiva do neoliberalismo, de acordo com a receita do nefasto economista austríaco Hayek: Estado mínimo, mercado desregulamentado, privatizações, destruição dos sindicatos e movimentos organizados de trabalhadores.

Esse programa não poderia ter sucesso sem a ofensiva ideológica. O neoliberalismo implicava uma certa concepção da vida social. George Monbiot, escritor e jornalista britânico, fez uma sintética, precisa e aguda descrição dessa visão de mundo como “uma tentativa consciente de remodelar a vida humana e alterar o foro de poder”.

Ela, prossegue, vê a concorrência como a característica definidora das relações humanas, as organizações de trabalho e negociações coletivas de sindicatos como distorções de mercado que impedem a formação de uma hierarquia natural de vencedores e perdedores. Os esforços para criar uma sociedade mais igualitária seriam contraproducentes e moralmente corrosivos. O desemprego estrutural é irrelevante e quem não tem trabalho não tem iniciativa. Os que ficam para trás são tidos e autodefinidos como perdedores.

É uma visão de mundo, da vida, caracterizada pelo egoísmo e pela ausência de qualquer traço de solidariedade social. A sociedade passa a ser um aglomerado de indivíduos perseguindo exclusivamente seus próprios interesses, com um brutal desprezo aos excluídos, tidos como inferiores mesmo que, evidentemente, jamais possam ter sucesso se privados, pela origem social, dos meios para tanto. Assim, a diferença entre um homem que vive na África subsaariana, ou um homem negro que cresceu nas favelas e periferias das grandes cidades do Brasil e outro que cresceu em Manhattan, nos Jardins ou no Leblon, explica-se pela qualidade dos indivíduos.

Ao longo desses 40 anos, essa visão de mundo – que tem parentesco conceitual com o fascismo, com concepções de extrema-direita – penetrou fundo na consciência global. É um dos fatores que explicam a ascensão de movimentos fascistas, racistas e xenófobos em todo mundo.

Ao mesmo tempo em que essa visão de mundo era plantada cuidadosamente para germinar na consciência global, o neoliberalismo cuidava de destruir os movimentos organizados de trabalhadores. Dois episódios marcaram esse aniquilamento.

Nos Estados Unidos, a greve dos controladores de voos em 1981, reivindicando limitação da jornada de trabalho e melhorias salariais, foi esmagada por Reagan, que demitiu 11 mil grevistas e proibiu sua readmissão no serviço público.

Em 1984, a derrota da greve dos mineiros contra a política neoliberal de Thatcher foi decisiva para destruir o movimento sindical inglês a partir do aniquilamento do poderoso sindicato dos mineiros. Thatcher fechou e privatizou as minas, resultando em desemprego e redução de salários. As 130 minas de carvão, duas décadas depois, estavam reduzidas a seis, e os 200 mil mineiros a cerca de 1.800. Dali em diante, como observou um jornalista que 25 anos depois visitou a região das minas, “todos os sindicatos do país sabiam que não era possível contestar o governo, que o neoliberalismo e o enfraquecimento dos direitos trabalhistas estavam ali para ficar”.

O governo de Fernando Henrique Cardoso emulou Reagan e Thatcher com a brutal repressão à greve dos petroleiros de 1995, mostrando completo alinhamento com a ofensiva neoliberal.

Os resultados globais apareceram. Em 1980, 1% da população mundial detinha 16% da renda mundial. Hoje detém 20%. Os 50% mais pobres estão estagnados desde 1980 com 9% da renda mundial.

O neoliberalismo significa a hegemonia do capital financeiro, da parcela da burguesia que vive da usura, improdutiva, imediatista, que nada vê além do interesse primário e imediato de acumulação, sem qualquer preocupação sistêmica.

Marx cunhou a expressão lúmpen, farrapo, trapo, para designar indivíduos sem escrúpulos, sem consciência de classe, sobrevivendo de restos que a burguesia lhes oferece e exercendo no proletariado papel contrarrevolucionário. Párias sociais, “espertalhões com meios de subsistência suspeitos, filhos arruinados da burguesia, gatunos, trapaceiros, jogadores, donos de bordel”.

Mas também localizou o lúmpen em uma parte [da] classe dominante. Em A luta de classes na França de 1848 a 1850 afirmou que “a aristocracia financeira, tanto como obtém seus ganhos quanto como desfruta deles, nada mais é do que o renascimento do lumpemproletariado nas camadas mais altas da sociedade burguesa”.

O economista argentino Jorge Beinstein descreve como a financeirização do capitalismo global tornou-se desenfreada e encolheu a economia produtiva. Em 2008, a massa financeira global equivalia a 20 vezes o Produto Bruto Mundial: “hegemonia financeira avassaladora, que transformou completamente a natureza das leis econômicas do planeta, a desregulação, o curto-prazismo, as dinâmicas predatórias foram os comportamentos dominantes que produziram a concentração de renda de forma veloz, tanto nos países centrais como nos periféricos, marginações sociais, deterioração institucional (incluindo as crises de representatividade)”. O que, afirma, confirma “a existência de uma lumpemburguesia global dominante”.

Esse quadro sinteticamente esboçado retrata o momento que estamos vivendo. Todos os seus ingredientes, com algum acréscimo de contingências brasileiras, estão presentes.

A visão de mundo neoliberal, selvagem e predatória, caracterizada pelo supremo egoísmo social, é o mar para onde correu o rio da visão de mundo da estulta, preconceituosa e moralmente rasteira classe média brasileira, impregnada da herança da escravidão, do sentimento de superioridade em relação aos excluídos e a qualquer estrato social e econômico abaixo de si.

O enfraquecimento dos movimentos populares, dos sindicatos, dos movimentos organizados dos trabalhadores (para ser rigoroso, isto remonta ao golpe de 64, que já então abortou a ascenso político dos trabalhadores), facilitou a ascensão da extrema-direita a partir de 2013, o golpe do impeachment e a prisão política do único líder capaz de derrotá-la nas urnas. É preciso notar, de qualquer modo, que a opção da parte mais representativa da esquerda pela luta política apenas institucional, abandonando as ruas e a organização popular, facilitou esse caminho e abriu as portas para o que Vladimir Safatle denominou de evangelo-fascismo.

A classe dominante brasileira é hoje hegemonizada pela lumpemburguesia financeira, sem qualquer preocupação sistêmica, ávida pelos lucros rápidos da especulação rentista por meio do mecanismo da dívida pública, empenhada em sugar recursos que deveriam ser destinados a políticas públicas de interesse da massa excluída, e que deveriam também garantir um mínimo de sobrevivência digna para os trabalhadores na velhice.

O programa da lumpemburguesia brasileira vem sendo executado por um lumpesinato perfeitamente descrito por Marx no 18 Brumário: párias, gatunos, delinquentes (aqui na versão milicianos), desprovidos de qualquer senso moral, ignorantes, cultuadores do ódio e da violência, que agem em perfeito acordo com o grito bárbaro de Millán-Astray: abaixo a inteligência, viva a morte.

Vivemos, pois, a era dos lúmpens. Governados por indivíduos lúmpens a serviço da lumpemburguesia. O Brasil é hoje a República dos homens-trapo.

Parte dos dados deste artigo constam de texto que redigi para obra coletiva sobre Estado de exceção e pós-democracia, no prelo.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.

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