A privatização do saneamento saiu do jeito que as empresas queriam

por João Peres, em The Intercept Brasil

EM SEU PERFIL público no LinkedIn, o consultor Diogo Mac Cord de Faria se define assim: “executivo sênior, com mais de 15 anos de experiência como consultor. Neste período, pude assessorar investimentos da ordem de R$ 40 bilhões em vários setores de infraestrutura (por meio de concessões públicas), como energia elétrica, saneamento básico e mobilidade urbana.”

Não foi só uma inflada de currículo. Mac Cord, de fato, tem experiência na área. Em março de 2018, ele assumiu um cargo na Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base, a Abdib. Era o responsável por discussões relativas a saneamento, um dos assuntos prioritários para a associação. Pouco tempo depois, o então presidente Michel Temer apresentou a primeira versão da Medida Provisória 844, que previa a privatização do saneamento.

Ao longo de 2018, o projeto recebeu contribuições de lobistas do setor, que detalharemos adiante, e foi reapresentado em dezembro, depois que fracassou a primeira tentativa de aprovação. Na virada do ano, Mac Cord pulou para dentro do governo. Foi anunciado pela gestão Bolsonaro como novo secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

Envolvidíssimo com a defesa do que ele chama de “liberalização do saneamento básico”, ele culpa o setor público – até hoje, maior responsável pelo setor de água e esgoto – pelo problema crônico na área no país. Invocando a privatização nos setores elétricos e de telecomunicações, ele defende que só o investimento privado é capaz de universalizar o serviço.

O Brasil não tem, de fato, uma situação positiva quando se trata de saneamento, em especial no que diz respeito aos serviços de esgoto – cerca de metade do país não tem cobertura. Há uma muita disparidade regional. Enquanto o índice geral de atendimento urbano com água é de acima de 90%, no Norte fica em torno dos 70%, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, atualizado anualmente pelo Ministério do Desenvolvimento Regional. No esgoto, a situação é pior: 60,2% de coleta no país, contra 34,8% no Nordeste e 13% no Norte. Mas o exagero nos números, tentando apresentar um país de “indicadores africanos” (seja lá o que isso significa), dá a tônica da discussão, sem conseguir mostrar, de fato, por que é o setor privado – e não o público – quem vai resolver o problema.

Os números são do instituto Trata Brasil, o grande think tank do setor. A organização, criada em 2007, é financiada por corporações de saneamento, além de Coca-Cola e Ambev. A análise, que usa dados do Ministério do Desenvolvimento Regional, é elaborada pela GO Associados, uma consultoria conhecida pela proximidade com o empresariado e pela realização de estudos sob medida para negociar e pressionar órgãos públicos.

Mac Cord não está sozinho no seu trânsito entre o seto público e privado. Na verdade, ele é só um exemplo dos conflitos de interesses que permeiam a história da privatização da água e do esgoto no Brasil. Consultores que migram a cargos públicos estratégicos. Agentes públicos que coordenam think tanks privados. Parlamentares cujas milionárias atividades empresariais estão diretamente ligadas ao tema. Da origem à atual discussão no Congresso, que prevê uma privatização em massa desses serviços, as águas já se misturaram tanto que não é possível saber o que é público e o que é privado.

Da MP apressada ao PL interesseiro

Apresentada em 27 de dezembro, no penúltimo dia de Michel Temer à frente do cargo, a Medida Provisória 868, a MP do Saneamento, promete modernizar a legislação no setor no Brasil. Na prática, obriga os municípios a conceder os serviços de saneamento a empresas privadas.

A MP 868, herança de Temer para Bolsonaro, transformou-se numa das prioridades do atual governo. Não houve acordo para levar a votação dela adiante até o prazo. Caducou. Não deu nem tempo de esfriar a defunta: nesta mesma semana, o senador tucano Tasso Jereissati apresentou um projeto de lei com as mesmas propostas, e ele já tramita no Senado em regime de urgência.

Em linhas gerais, o projeto obriga as prefeituras a perguntar se empresas privadas querem assumir os serviços de água e esgoto. Havendo interesse, é preciso fazer licitação. Hoje as cidades podem prestar os serviços diretamente ou repassá-los para empresas estaduais, através dos chamados “contratos de programa”, que não exigem licitação. É assim, por exemplo, que a Sabesp atua em mais da metade dos municípios paulistas.

A legislação atual já permite que o setor privado participe dos serviços de saneamento. Tanto é assim que centenas de municípios do país fizeram concessões. Mas a MP 868 pretende ir muitos passos além. Com o novo projeto, contratos entre prefeituras e estado passam a ser irregulares e devem deixar de existir. Se as empresas estaduais forem compradas, os contratos serão convertidos automaticamente para a empresa privada, sem licitação e nem consulta à população.

Esse conjunto de medidas desmonta um esquema de subsídios cruzados que, no fim das contas, barateia o serviço para alguns cidadãos. Hoje, os municípios com superávit no saneamento ajudam a bancar as operações nos deficitários. Se as companhias privadas ficarão com os serviços lucrativos, aqueles que têm prejuízo terão um problema ainda maior, já que ficarão sem os subsídios. Em outras palavras, podemos esperar por tarifas mais altas de água e esgoto. Além disso, a MP, agora PL, força as pessoas a pagar pelo esgoto onde houver ligação disponível, mesmo que não possam, por qualquer motivo, conectar-se à rede.

A premissa da argumentação do governo Bolsonaro e dos interessados em tomar para si o negócio da água e esgoto no país é de que o estado não tem como dar conta dos recursos necessários para melhorar a situação do saneamento. Mas, quando olhamos para o Plano Nacional de Saneamento Básico, vemos que a questão não é bem essa.

O plano prevê um investimento total de R$ 304 bilhões entre 2014 e 2033 para garantir 100% de água e esgoto em todo o país. A média de investimento anual entre 2014 e 2017 ficou em R$ 11,7 bilhões. Seria necessário chegar a R$ 16,1 bilhões, ou seja, faltam pouco mais de R$ 4 bilhões, quantia pequena para o orçamento público. O orçamento da União em 2019 é de R$ 3,38 trilhões.

O toque dos lobistas

Quando Michel Temer assumiu o governo, no meio de 2016, foi criado o Programa de Parceria de Investimentos do BNDES, pelo qual o estado, quebrado, financiaria abaixo da inflação a privatização de serviços públicos. O saneamento foi escolhido como primeiro eixo. Mas havia um problema: como privatizar as companhias estaduais se os serviços de água e esgoto pertencem aos municípios?

Foi então que se criou um grupo de trabalho interministerial cujo desfecho já se sabia: fazer a modelagem para permitir a transferência do saneamento a grandes empresas. A “Modernização do marco regulatório”, resultado desses estudos, é um documento oficialmente desaparecido. Por telefone, a assessoria de imprensa da Casa Civil disse não tê-lo nos arquivos, ou seja, sumiu o documento que embasou a MP 844 e, depois, a MP 868. Mas uma pessoa envolvida nas discussões nos permitiu ver uma cópia. Lá, está anotado com todas as letras:

“Identificou-se pleito da Abcon [Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos], que representa as prestadoras privadas, para que as mesmas possam concorrer pelos contratos, tendo em vista que a dispensa de licitação favorece a prestação pelas empresas estaduais.”

A Abcon, interlocutor-chave da MP 868, é a representante dos grandes grupos privados de saneamento. Fica explicado por que a medida provisória tem como centro a obrigação de que os municípios abram licitação, sem possibilidade de contratar diretamente as companhias estaduais.

A primeira tentativa de emplacar a privatização, a MP 844, era articulada no Congresso pelo senador Roberto Muniz, do PP, que migrara direto da presidência da Abcon para o mandato parlamentar. Mas a oposição dos governadores fez com que a medida naufragasse. A argumentação deles era de que a entrega das cidades superavitárias ao setor privado quebraria ou forçaria a venda das empresas estaduais.

“As mudanças no Marco Legal do Saneamento deveriam aumentar a segurança jurídica. Da forma como está haverá exatamente o contrário, com aumento de incertezas e judicialização, inclusive junto ao STF”, avisou, em 13 de maio, a Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais, a Aesbe, em uma nota assinada por 24 governadores contrários à MP.

Quando as águas se misturam

Antes disso, a MP havia sido entregue em “boas mãos”. Foi no final de março que o senador tucano Tasso Jereissati foi nomeado seu relator. A família Jereissati tem investimentos em diversas áreas, com um interesse direto no preço que se paga pela água.

O próprio Tasso declarou à Justiça Eleitoral em 2014 ter R$ 56 milhões em ações da Calila Administração e Comércio S/A, que tem entre as atividades a construção, área diretamente afetada pela presença ou não de serviços de saneamento. O senador também é dono da Solar, que detém todo o engarrafamento e a distribuição dos produtos Coca-Cola no Nordeste e em parte do Centro-Oeste. Ele é um dos maiores empresários do sistema Coca no mundo. Água, claro, é o item mais pesado no orçamento de empresas de bebidas.

E o senador sabe como ninguém como legislar em causa própria. Em 2008, mostra um documento que o Joio e o Trigo revelou, ele usou o cargo para intermediar uma reunião entre o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente da Coca na América Latina, Brian Smith. Deu certo: o governo desistiu de tentar acabar com um esquema de créditos que faz com que os as empresas pagassem menos impostos.

Em 2017, Tasso protocolou o Projeto de Lei 495, destinado a criar “os mercados da água”, especialmente em regiões com “alta incidência de conflitos pelo uso de recursos hídricos”. Para o senador, é uma “ferramenta útil” para secas como as que afetam o Nordeste e que afetaram São Paulo. Pela proposta, qualquer propriedade poderia negociar direitos de venda de água com outra propriedade ou empresa.

Sob sua relatoria, a MP 868 ficou exatamente do jeito que a Abcon queria – o que despertou oposição da maior parte dos governadores, como já vimos.

Os protótipos que não deram certo

Assim como não há provas de que o Brasil realmente precise recorrer ao investimento privado para universalizar o acesso ao saneamento, a eficiência dos serviços privatizados também é questionável, como demonstram os casos de Tocantins e Manaus.

Na capital do Amazonas, os serviços foram privatizados na virada do século. Uma empresa assumiu, repassou a outra, que repassou a outra. Desde a metade de 2018 quem controla as operações é a Aegea, uma das maiores do Brasil. A coleta de esgoto fica na casa de 10% e o tratamento em 23%, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, o Snis, do Ministério do Desenvolvimento Regional. No abastecimento, o índice de perda de água durante o tratamento é de assombrosos 74,6%, um dos mais altos do país.

Para efeito de comparação, no Brasil, a coleta de esgoto chega a 60% em áreas urbanas, e o tratamento em 46%. O índice de perdas de água está em 38%.

O Tocantins é um caso ainda mais emblemático por ser uma espécie de protótipo daquilo que poderia se tornar o sistema de saneamento do país com a MP 868. As ações da Saneatins foram vendidas em 1998, por R$ 2 milhões, para a Empresa Sul-Americana de Montagens.

Em 2010, sem ter interesse em 78 dos 139 municípios do estado, a concessionária devolveu-os ao governo de Tocantins, que criou a Aguatins (posteriormente renomeada Agência Tocantinense de Saneamento, responsável também por cuidar das áreas rurais, exatamente onde é mais dispendioso realizar obras. É uma demonstração do que poderia acontecer com a aprovação das mudanças no Marco Legal do Saneamento: boa parte das cidades não tem como ser lucrativa, salvo com tarifas muito elevadas. Naquele ano, 12 anos após a concessão, apenas 12 cidades contavam com serviços de coleta de esgoto, segundo o SNIS.

Hoje, a situação não é muito melhor: 15 cidades declararam contar com o serviço em 2017. Isso mostra que a ineficiência não é exclusividade nem do público nem do privado, e que resolver o problema talvez passe por outros arranjos e estímulos.

Os especuladores estão com sede

“As empresas privadas hoje têm boa condição de captar recursos no mercado para investir no setor”, avisou Percy Soares Neto, da Abcon, durante uma audiência pública realizada em abril no Congresso. “Quem está discutindo a MP, todos nós já conversamos com bancos, com fundos de investimentos. Há um interesse grande do mercado pelo setor de saneamento no Brasil”, ele garantiu.

Neto passou o recibo de como a MP nasce sob o desejo do mercado financeiro. Em 2017, as receitas totais do setor ultrapassaram R$ 59 bilhões, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.

Hoje, as duas maiores empresas do setor no país, BRK Ambiental e Aegea, já têm uma forte alavancagem de fundos especulativos. A primeira foi comprada em 2017 pela Brookfield, um fundo canadense, com participação minoritária do banco japonês Sumimoto Mitsui. A segunda tem uma participação acionária mais dividida entre vários fundos do mercado financeiro. Destaque para o IFC, braço do Banco Mundial direcionado a investimentos diversos, com 7,14%.

A teia de relações é tão complexa que decidimos criar uma espécie de organograma que detalha quem se liga com quem. No centro da história está a Abcon, tendo órgãos governamentais como principais parceiros.

De olho na água

O Banco Mundial é participante ativo das discussões sobre privatização do saneamento desde os anos 1990. Findo um primeiro ciclo, a instituição esperou pela abertura de uma nova janela de oportunidades. É o que está acontecendo agora aqui no Brasil.

Em uma audiência pública no Congresso em abril, um representante da instituição disse que só o setor privado dará conta dos problemas. E, para isso, será preciso elevar as tarifas para conseguir financiar novos investimentos.

O IFC é um braço do Banco Mundial direcionado a investimentos diversos, com carinho especial por saneamento. Em 2018, a organização injetou US$ 84 milhões na Aegea. Os negócios vão bem: em 2013 a empresa atendia 2 milhões de pessoas em 29 municípios; agora já são 7 milhões em 50 municípios, incluindo a recém-adquirida operação em Manaus.

O Banco Mundial também é o organizador do Water Resources Group, mais conhecido como WRG 2030. Trata-se de um fórum cofinanciado por várias empresas, entre elas Coca-Cola, Nestlé e Ambev. Ele costuma se instalar em países, estados e municípios quando se avizinha uma privatização, para a ajudar a criar o modelo regulatório que será adotado. Foi o que se deu em São Paulo em 2017, enquanto a Assembleia Legislativa aprovava um projeto de lei para autorizar o governo estadual a se desfazer da Sabesp, processo ainda em curso – hoje, 50,3% das ações da empresa são do poder público.

Na mesma época, o WRG firmou um acordo de cooperação com a Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base, a Abdib, organização interessada na MP 868 e que teve como quadro Diogo Mac Cord, como vimos. O contrato prevê o intercâmbio de “boas práticas” no uso de recursos hídricos, com foco claro em políticas públicas, modelos de gestão e eficiência. O tema é tão importante para a Abdib que a organização foi a responsável pela captação de recursos para o 8º Fórum Mundial da Água, realizado em 2018 em Brasília. O evento é realizado a cada três anos pelo World Water Council, que reúne empresários e agentes públicos.

O encontro carrega a crença de que o que é bom para as empresas é bom para mim e para você. Por isso, organizações críticas a essa ideia se reúnem no Fórum Alternativo Mundial da Água, que, no ano passado, terminou com uma declaração exatamente contrária à privatização dos serviços de saneamento no Brasil.

Cerveja aguada

Se a proposta de privatização for aprovada, a Agência Nacional das Águas, a ANA, seria o agente regulador. Quem representa a ANA nos debates sobre a proposta não são os diretores, mas o superintendente Adjunto de Apoio ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, Carlos Motta Nunes. Além do cargo público, Nunes é coordenador de um projeto chamado Infra 2038, ligado à Fundação Lemann.

O projeto se apresenta assim:

“No encontro anual da Fundação Lemann de 2017, um grupo de entusiastas pelo tema de infraestrutura – que haviam voltado de universidades como Harvard, Columbia e Oxford – resolveu se unir para tomar um café. De um simples grupo de WhatsApp surgiu algo enorme: o projeto Infra2038: a meta, nada modesta (no melhor estilo Jorge Paulo Lemann), é colocar nos próximos 20 anos o Brasil entre as 20 primeiras colocações no ranking de infraestrutura do Fórum Econômico Mundial (hoje ocupamos a posição #73).”

Entre os associados estava Diogo Mac Cord.

O Infra 2038 conseguiu emplacar algumas emendas no texto da MP – todas apresentadas pelo deputado Felipe Rigoni, do PSB capixaba, que faz parte da “bancada Lemann“. Como a organização e o parlamentar concordam com as mudanças no Marco Legal do Saneamento, o conteúdo delas era apenas de ajustes, sem grandes alterações.

Todos os fundadores da organização são ligados à Fundação Lemann, que forma jovens líderes para atuarem na política e áreas estratégicas. A organização, vale lembrar, foi criada por Jorge Paulo Lemann, um dos homens mais ricos do Brasil e dono da Ambev – corporação que que tem na água o ingrediente mais caro para a produção de bebidas.

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