A república dos parentes

Por Marcelo Menna Barreto, no Extra Classe

Filho de peixe, peixinho é. Você sabe com quem está falando? Essas expressões, apesar de pueris, de certa forma colaboram para o entendimento do trabalho de Ricardo da Costa Oliveira, doutor e professor titular de Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná, onde coordena o grupo de pesquisa chamado “República do Nepotismo”. Oliveira, que, em 2018, demonstrou que membros da Operação Lava Jato, como Sergio Moro, Deltan Dallagnol e advogados ligados às delações premiadas, são herdeiros de figuras do Judiciário e da política paranaenses e atuam em forma de rede, nesta entrevista afirma que a história política brasileira dominante é a história das grandes famílias políticas, um sistema corporativo que se protege para preservar suas vantagens.

Extra Classe – O senhor afirma que o Brasil é uma república do nepotismo. Como assim?

Ricardo Costa de Oliveira – O nepotismo na sociologia política é a relação entre parentesco e poder político. Como as famílias políticas, como familiares de políticos, muitas vezes apresentam vantagens e privilégios nas suas carreiras e nas formas de obtenções de cargos. A política dominante no Brasil é um grande negócio de famílias. Todas as nossas pesquisas revelam uma forte presença de famílias políticas atravessando todas as instituições. No Poder Executivo, a família “presidencial” Bolsonaro opera como uma grande unidade política de interesses familiares, pai, filhos, esposas, parentes da ex-esposa, inclusive com outras famílias de assessores anteriormente contratadas no Legislativo, muitas apontadas como milicianos no Rio de Janeiro.

EC – O quanto se estende essas relações familiares na política e na sociedade brasileira?

Oliveira – O vice-presidente, o General Mourão, é filho de outro general e neto de um desembargador. A maioria dos atuais ministros possui significativos capitais políticos e familiares herdados no campo político, jurídico, militar e empresarial, são herdeiros de velhos e tradicionais poderes. É o nosso artigo no Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia neste ano. A maioria dos senadores e deputados, em Brasília, também possui vínculos em famílias políticas ou as formam como estratégia social e política. A maioria dos prefeitos das capitais, muitos governadores, boa parte do sistema judicial, a magistratura e muitos procuradores apresentam conexões familiares. Os Tribunais de Contas são tribunais de famílias políticas, com muitos parentes e ex-políticos. Ainda hoje, os cartórios, o empresariado e a grande mídia apresentam conhecidas famílias muito atuantes na política e no Estado. O nepotismo local, nos municípios, nas prefeituras, Câmaras municipais, também é muito grande e pouco estudado.

EC – Existe eficácia da legislação que proíbe o nepotismo no país?

Oliveira – Não! Inclusive as legislações promoveram o nepotismo para o primeiro escalão, como a Súmula Vinculante número 13 do Supremo Tribunal Federal (STF). Podemos observar que parentes e cônjuges assumiram importantes cargos nos governos estaduais, como no Paraná, no governo anterior de Beto Richa, ele mesmo filho de ex-governador, a esposa e o irmão dele eram supersecretários estaduais. A legislação brasileira e a cultura política hegemônica no Brasil aceitam o nepotismo como coisa “natural”, ao invés de proibi-lo e combatê-lo. O nepotismo sempre possui uma base material baseada no clientelismo, no abuso do poder econômico, na reprodução de vantagens e privilégios produzidos ao longo de várias gerações. O nepotismo reforça as desigualdades sociais e impede a renovação social e política.

EC – Por que, em sua opinião, as reformas eleitorais realizadas nos últimos anos deram mais poder às oligarquias políticas, ao invés de coibir a influência do poder econômico nas eleições?

Oliveira – Verificamos um processo de oligarquização familiar no Brasil desde a Constituição de 1988. As eleições são muito caras, e o dinheiro comanda o processo em muitas situações. A classe dominante brasileira é muito atrasada e arcaica, sempre articulando o velho com o novo. A desigualdade social, a concentração de renda formam dimensões únicas no Brasil. Nenhuma outra sociedade complexa e grande, como a brasileira, apresenta tanta concentração de riquezas e poderes como a nossa, e uma das suas fórmulas de reprodução social, econômica e política é a cultura do nepotismo. Como poucas famílias dominam os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, empresarial, as Forças Armadas, a mídia. Um candidato da classe trabalhadora, pobre e sem família política, dificilmente poderá competir com um candidato de conhecida família política, com sobrenome, com muitos cargos comissionados, com muitos cabos eleitorais, rede social, rede política e muito dinheiro acumulado pela família ao longo do tempo.

“A justiça depende da origem da família, da classe social, da cor e do gênero, como quase todas as outras variantes sociais. Há uma conexão ’paranaense‘ com o ex-juiz Sergio Moro, que inclusive ganhou o cargo de Ministro da Justiça pela sua atuação política no caso da prisão do Lula”

EC – Como a influência das famílias políticas e sua lógica de riqueza e poder nos ajudam a compreender a história da política brasileira?

Oliveira – A história política brasileira dominante é a história das grandes famílias políticas. Podemos investigar e analisar a dinâmica dos poderes familiares em cada estado da federação, em cada município, e encontraremos as oligarquias familiares, nos principais cargos políticos, nas maiores fortunas, nos nomes dos logradouros, ruas, avenidas, praças, equipamentos urbanos, nomes de rodovias. Essas famílias devem ser empiricamente estudadas e pesquisadas, desde as suas origens, a sua história antiga, com muita atenção em seus detalhes e formatos. A concentração de renda é um legado do período colonial, da escravidão, muitas dessas vantagens atravessaram o Império, a República Velha, atravessaram o século 20 e continuam na contemporaneidade. Os que, muitas vezes, ascenderam na sociedade, na economia e na política, os novos imigrantes europeus, acabam casando com as velhas famílias, eles, os netos e bisnetos, assim vão reproduzindo os velhos interesses elitistas. A estrutura social brasileira, em boa parte, é uma estrutura genealógica. Os que descendem das senzalas tendem a permanecer nas favelas e periferias, no trabalho braçal e manual. Os que descendem da casa grande tendem a permanecer nas classes mais altas e mais escolarizadas, nas melhores profissões.

EC – Para o senhor, o que chama de famílias políticas, as tais oligarquias familiares, foram as reais responsáveis pela derrubada de Dilma Rousseff em 2016. Como e por quê?

Oliveira – Sim, o golpe de 2016 foi promovido e patrocinado pelas velhas e novas oligarquias políticas familiares. Não havia crime de responsabilidade da Dilma. Foi uma votação política.  Basta verificar os comportamentos políticos de famílias políticas desde o Tribunal de Contas da União. Muitos analistas e jornalistas políticos debateram os interesses de famílias como a Nardes, o ministro Augusto Nardes e o irmão dele, o suplente Cajar Nardes, que assumiu o cargo de deputado somente com o governo de Temer. Na votação do impeachment, na votação do golpe, na Câmara dos Deputados, o termo “família” foi um dos mais citados pelos parlamentares, o que mostrou os interesses e a base social do Legislativo. Os interesses mais atrasados e reacionários sempre são contrários à democracia, ao voto popular, e as velhas famílias políticas não aceitam qualquer forma de distribuição de renda, não aceitam a melhoria de vida dos mais pobres. Esta gente elitista, políticos e empresários, não quer ver os filhos da classe trabalhadora nas universidades, nos aeroportos, nos supermercados, nos bairros mais ricos, só os querem como mão de obra barata, sem direitos e sem cidadania. Nem uma carteira de trabalho vale mais. Depois do golpe, o desemprego aumentou e os salários diminuíram. Agora vem com a mentira da reforma da Previdência.

EC – Para o senhor, os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, o Ministério Público, os Tribunais de Contas, a grande mídia e grande parte do empresariado brasileiro também são dominados por interesses familiares? Como escapar dessa armadilha?

Oliveira – As pesquisas comprovam que as famílias políticas estão ao mesmo tempo em todos os poderes. O Brasil ainda não alcançou a separação dos poderes de Montesquieu. De certa maneira, ainda somos uma espécie de sociedade do “Antigo Regime”, ainda “valem as Ordenações Filipinas”; a justiça depende da classe social, da família e do pedigree do indivíduo. Aécio Neves ainda está solto e Lula é um preso político, preso sem nenhum prova e rapidamente condenado pelo Judiciário em um processo aceleradíssimo para evitar que ele concorresse nas eleições. Um helicóptero com meia tonelada de drogas, de gente rica e poderosa, é diferente de uma pequena apreensão de drogas na favela, tudo depende de quem poderá ser preso. Poucos sobrenomes e poucas genealogias familiares têm o monopólio dos poderes políticos, e todos têm muitos parentes e redes sociais nos outros poderes da República. A única maneira de mudarmos as nossas instituições é pela expansão da educação e da democracia. Somente com inclusão social é que avançaremos. O número de negros, ameríndios, trabalhadores, mulheres e grupos ainda não representados é uma terrível lacuna na nossa política.

EC – Para o senhor, os integrantes da Lava Jato – incluindo magistrados, procuradores e advogados – operam em um circuito que chama de “fechado” e que funcionaria “em rede”. Como chegou a essa conclusão?

Oliveira – Escrevemos um artigo científico sobre os componentes da Lava Jato, a prosopografia familiar dos seus membros. Os interessados podem ler na nossa Revista do Núcleo de Estudos Paranaenses (Revista NEP-UFPR). A prosopografia é uma técnica de pesquisa sobre perfis sociais, políticos, históricos, as biografias coletivas, qual é o perfil de classe e quais são os interesses de seus membros. Como o Judiciário brasileiro é pré-moderno, muitas vezes cada magistrado faz o que quer, na velocidade que quer e julga de maneira diferenciada em função de seus interesses. Geralmente, os magistrados e procuradores possuem origens em famílias elitizadas, bem posicionadas, alguns com muitos membros no sistema judicial, quase sempre possuem muitos amigos, conhecidos, familiares com escritórios jurídicos e membros no sistema judicial, de modo que a formação, a educação, os códigos de comportamentos, o ethos e “habitus de classe” são definidos a priori. A justiça é um campo social e político de lutas e conflitos, os interesses privados e os interesses públicos podem se confundir. O comportamento político, a parcialidade e a dinâmica do sistema judicial seguem os interesses de classe do grupo como um todo. A justiça depende da origem da família, da classe social, da cor e do gênero, como quase todas as outras variantes sociais. Há uma conexão “paranaense” com o ex-juiz Sergio Moro, que inclusive ganhou o cargo de Ministro da Justiça pela sua atuação política no caso, o Tribunal Regional Federal 4ª Região (TRF4) com Gebran, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) com Fischer e o STF com Fachin, todos formam famílias político-jurídicas. Temos artigos sobre esta dinâmica social e política.

EC – Como essa sua descoberta se inter-relaciona com o conceito de nepotismo que estamos discutindo nesta entrevista?

Oliveira – Esta descoberta revela que o Judiciário, o MP, o sistema judicial, todos formam grandes redes sociais, jurídicas e políticas familiares, são também redes genealógicas. Muitos magistrados são filhos, netos, sobrinhos de outros magistrados, é o caso do ex-presidente do TRF Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, com uma das mais antigas genealogias no Rio Grande do Sul. O familismo e a lógica familiar são essenciais para compreendermos todos esses atores sociais em suas ideologias, redes sociais e políticas.

EC – Em depoimento, em Brasília, o ex-assessor e advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacla Duran, chamou a Lava Jato de “esquema de delação à la carte”. Por que, mesmo muitas vezes sendo escancarados esses tipos de relações, não acontece um freio? O sistema se protege?

Oliveira – Sim, o sistema é extremamente corporativo, oportunista, autoritário e se protege o tempo todo para preservar suas vantagens. Como o Brasil ainda é uma espécie de sociedade derivada do “Antigo Regime”, sem interrupções ou rupturas, a lei é social e politicamente diferenciada, a lei não é para todos e depende dos interesses e da classe social de origem de cada um. Em outras sociedades, o juiz pode ser eleito; em outras, o professor de ensino fundamental ganha tanto como um juiz. No Brasil, ainda temos a tradição de um Judiciário como uma forma de “nobreza togada”, com os melhores privilégios, luxos, as mais elevadas remunerações e aposentadorias, as maiores vantagens corporativas, tudo vem do passado arcaico e colonial do Brasil porque aqui os poderes não se fiscalizam, não se investigam e não se limitam, mas atuam como uma grande rede articulada de interesses familiares, corporativos e políticos em comum.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Emilia Wien.

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