O Brasil violento, distante do olhar de Zé Carioca

Em parábola do país contemporâneo, personagem encontra um Rio diferente do que apresentou ao mundo e aos próprios brasileiros. Há ufanismo e malandros românticos — mas também a desigualdade brutal que a idealização oculta

por Gabriel Bayarri, em Outras Palavras

A vitória política dos monstros não se entendia nos outros continentes. Brasil era a terra do Zé Carioca, aquele que tinha mostrado ao mundo em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, um Brasil que parecia cordial e feliz, um Brasil que valorizava sua mestiçagem como símbolo da cultura nacional. O papagaio apresentava ao Pato Donald uma cidade orgulhosa de si mesma, bonita e alegre, onde se misturava o samba, a cachaça, a festa e os malandros românticos. Agora observava assombrado como a cidade maravilhosa abraçava a heróis armados, e empreendeu um voo pintado em sua perplexidade, tratando de entender o que se tinha transformado numa cidade que recordava pintada em aquarela. Zé Carioca voou ao coração da cidade tropical, onde se simbolizavam os espaços de resistência de uma democracia que ele achava harmoniosa e blindada aos monstros que agora a governavam.

O papagaio agitou as asas entre os morros, e pousou suas penas na sua querida praça da Cinelândia, e respirou sua história, da que só reconhecia a parte harmoniosa: desde sua época inicial de areal deserto, a praça tinha se transformado num lugar central a inícios do Século XX, que foi pintando sua paisagem de pequenos cafés e pastelarias, representando a Belle Époque do Rio de Janeiro, de seu conflito pela modernização urbana e cultural da vida no campo. A Cinelândia adquiriu traços afrancesados, tão desejados pela recente República brasileira, que tratou de refletir a antiga capital como uma Paris Tropical através das reformas estéticas e higienistas do prefeito Pereira Passos (1902-1906). Ao centro da cidade chegavam os escravos recentemente libertos das plantações de café, açúcar e algodão, ao mesmo tempo em que a Praça adquiria uma personalidade cosmopolita com seu Teatro Municipal, a Escola Nacional de Belas Artes, o demolido Palácio Monroe, a Biblioteca Nacional e a Câmara Municipal. Isso tudo resultava familiar para o Papagaio, que encontrava na história um relato alegre.

De fora do país, a narrativa de um Rio de Janeiro feliz e harmonioso recuperou os elementos de um Brasil cordial, sem racismo e sem violência, promovido durante a década de 1920, do Zé Carioca. Além disso, esse imaginário da cidade foi extrapolado ao exterior junto aos governos do PT, protagonizados pelo carismático ex-presidente Lula, como o período de um “Brasil dourado”: do aumento do 7,5% do PIB em 2010 durante uma crise econômica global, da queda dos índices de pobreza, do aumento de investimentos e da enorme influência no contexto latino-americano e mundial.

O pássaro respirou as crônicas dos literários e boêmios que povoaram os arredores, e que foram construindo nos seus escritos os personagens que transitavam a praça, suas musas, seus malandros, seus heróis carnavalescos ou seus capoeiristas. Autores como Machado de Assis, João do Rio ou Lima Barreto construíam naquele tempo um modelo do “povo carioca” que o papagaio Zé Carioca repetia e sintetizava na sua imagem: um povo amável, cordial e caloroso que atravessava as fronteiras, transmitindo ao mundo uma imagem de Brasil harmonizada e ausente de conflitos e violência. Era aquela concepção freyreana de que no Brasil tudo tenderia a amolecer e se adaptar.

Respirando fundo, o papagaio lembrou como desde os anos 20, avalado pelo setor empresarial, o Paris Tropical começou a observar a Broadway nova-iorquina como modelo de ócio, empresarial e cultural a se reproduzir no centro carioca. A Cinelândia começava a se dotar de cinemas e salas de espetáculo, hotéis, restaurantes e bares noturnos. A chegada do cachorro-quente na Praça resultou revolucionária como ponta de acesso das influências culturais norte-americanas após a Segunda Guerra Mundial na vida carioca. O Rio de Janeiro brasileirizou seus elementos, introduzindo ingredientes como os ovos de codorna e o purê de batata, e compondo na sua homenagem marchas carnavalescas que cristalizavam sua influência nas interações da Cinelândia. 

O papagaio sentia orgulho da sua cidade, até que uma mulher se aproximou a ele: “O nosso cachorro-quente é carioca da gema”, explicou a vendedora ambulante que portava uma camiseta com o rosto de Marielle Franco. Quem era essa mulher que lhe queria explicar os elementos da brasilidade? E quem era essa mulher negra que levava na camiseta? Onde estava a Carmen Miranda? Onde estavam as frutas da sua cabeça? Então o papagaio escutou na praça a história do assassinato da vereadora e seu motorista, e os novos relatos sobre a violência da “noite carioca”, de seus conflitos policiais, da cidadania incompleta e da transição do Polo Cultural do Centro para a Zona Sul burguesa e elitizada. Mas Zé Carioca não acreditava que sua bela cidade estivesse afetada por estas questões.

O papagaio era consciente de que a Cinelândia representava um desenho da essência do “Ser brasileiro”, da construção de uma alma própria no espaço público, do jeitinho e da malandragem, mas se surpreendeu ao escutar que seu povo alegre e dançante também era um povo ativo e guerreiro, que tinha utilizado ao longo das décadas esta praça como espaço histórico de construção de demandas, como palco pela soberania Nacional do Petróleo sob o lema “O petróleo é nosso”, da Passeata dos Cem Mil contra a ditadura militar e chegando até as recentes manifestações feministas e do Ele não. Durante a campanha eleitoral o movimento feminista tinha se expressado nesta praça, e por extensão ao resto dos bairros históricos do centro. A praça albergava numa das suas ruas o nome da própria Marielle, cuja placa foi quebrada pelo atual governador bolsonarista do Rio de Janeiro, e que foi o símbolo de concentração das mulheres contra o seu atual presidente. 

O papagaio tinha disneysificado a imagem de sua cidade, num relato de heróis, castelos e princesas tropicais que tinha se exportado, e que dificultava entender a vitória política dos monstros. Parecia como se a história do Brasil estivesse se reconstruindo ante seus olhos, e seu povo estivesse agora constituído por ativistas, mulheres guerreiras, coletivos LGTBI+ e movimentos antirracistas que defendiam direitos civis e demandas identitárias sem os que não se podia explicar a complexidade de um Brasil que não estava formulado para principiantes. O que tinha acontecido com o seu Brasil colorido? – se perguntava nervoso, recolocando seu chapéu-palheta e arrancando suas penas com o pico. 

Algo se transformou na mirada do papagaio, e após um breve transtorno, decidiu recuperar a serenidade. O pássaro abriu as asas e levantou voo até o Copacabana Palace, aquele lugar onde tinha nascido da mão de Walt Disney há 77 anos. Necessitava refletir, agregar os tons cinzas da verdade na sua fantasia colorida, e buscar, da mão das artes corajosas, novos espaços de resistência contra os monstros. 

Talvez o mundo tinha acreditado nesse relato colorido de Zé Carioca, na paleta de ilusões que um Brasil emergente oferecia, e tinham esquecido que, como toda criança grande, o Brasil tinha pesadelos, esperneava o seu racismo e militarismo estrutural, a sua violência assassina, as suas desigualdades patriarcais. Talvez Zé Carioca tinha se apaixonado pela exuberância de uma terra de frutas, marinheira e sorridente, e o mundo tinha escutado seu relato, um relato amável ao turismo dos megaeventos esportivos, da cidade-commodity, e tinham esquecido as vozes de seu povo que observavam a aproximação de um desfile militar pelo Congresso. 

O voo do Zé Carioca transformou ao papagaio, e já na sua velhice atravessou um ritual de passagem para a vida adulta. Após anos de cegueira diante da violência de uma sociedade pós-colonial, do seu madonismo e das torturas de coturno, Zé Carioca abriu os olhos, e se enfrentou com a parte oculta de um Brasil ferido. Um Brasil que tinha sido fantasiado em cores tropicais e que devia agora ser sincero, com o mundo e com ele mesmo, para vencer os tempos dos monstros. 

Gabriel Bayarri é espanhol, doutorando em antropologia e escritor. Cursa seu doutorado pela Universidade Complutense de Madri e pela Universidade Macquarie de Sydney. Durante o período 2015-2018 foi conselheiro eleito pelo partido Si Se Puede!, integrante do movimento Podemos na Espanha.

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