Futeboleiras: corpos controlados e resistência

Para o patriarcado, mulheres deveriam praticar esportes de pouco impacto, para manter a beleza e preparar-se para maternidade. Futebol seria “violento demais” para elas. Por isso, igualdade no esporte é batalha importante do feminismo

Por Sara Rauch | Tradução: Inês Castilho, em Outras Palavras

“Difícil imaginar um trabalho mais direto com crianças do que programas escolares que as ensinem a mover seus corpos”, escrevem Brenda Esley e Joshua Nadel na introdução de Futeboleira: Uma História de Mulheres e Esportes na América Latina. Essa visão se ajusta perfeitamente à análise provocadora de como a corporalidade das mulheres tem sido controlada e manipulada por meio de atividade físicas socialmente aceitáveis na América Latina. Não por acaso, essa envolvente história social leva o nome daquelas que lutaram para conseguir acesso e representação iguais no campo. Futeboleira é um termo usado [em castelhano, Futbolera] para referir-se à mulher que joga futebol, simplesmente, embora no decorrer dos anos tenha passado a ser mais usado como abreviação para as mulheres que pressionaram as fronteiras culturais.

O livro, publicado pela Editora da Universidade do Texas em maio, enfoca particularmente o lugar das mulheres nos esportes na Argentina, Chile, Brasil e México, mas abrange também outras nações – Uruguai, Costa Rica, El Salvador. Como é o caso em muitas culturas ocidentais, os papeis que eram permitidos às mulheres desempenhar, na América Latina, eram severamente circunscritos por valores nacionalistas, patriarcais. A narrativa que Esley e Nadel constroem é sobre o controle direto do Estado e da burocracia sobre os corpos das mulheres. Futeboleira analisa arquivos por toda a América Latina, pesquisando a fundo para preencher as lacunas da exclusão das mulheres dos registros históricos, e oferecendo uma representação mais equilibrada do interesse e participação feminino.

A partir dos anos 1800, a educação física ganhou terreno nos países da América Latina através da influência sueca, primeiro como modo de “aperfeiçoar a raça”. Mas não demorou para que “especialistas” julgassem que certas atividades físicas eram mais apropriadas para as mulheres. Tênis, natação, atletismo (frequentemente com mudanças de distância ou peso) e até mesmo basquete foram geralmente considerados aceitáveis para mulheres praticarem, mas com frequência promoviam-se atividades como dança ou ginástica rítmica “para deter o desenvolvimento dos músculos das mulheres” e acalmar a preocupação com o fato de que exercícios extenuantes prejudicariam o equilíbrio físico e hormonal das mulheres. Ao mesmo tempo em que esses “especialistas” defendiam “vigor e ação” para as atividades masculinas, recomendavam exercícios como um meio de manter a beleza da mulher e prepará-la para a maternidade. As mulheres que desejavam praticar esportes em benefício próprio eram vistas – por políticos, educadores e pelos cidadãos em geral – como antinaturais ou “monstruosas”. Sua sexualidade era colocada em dúvida: porque os “esportes haviam sido definidos como essenciais para construir e exibir a masculinidade adequada, eles constituíam um terreno perigoso em termos de seu potencial para masculinizar as mulheres”; por outro lado, os esportes femininos eram “vistos como exóticos… como amazonas que existiam fora do desenvolvimento normal”. Até mesmo torcedoras, treinadoras e árbitras eram consideradas perigosas.

Como esperado, o futebol desempenhou um papel importante na história dos esportes femininos na América Latina, e é na exploração particular desse esporte coletivo que os autores encontram seu passo. Muito embora haja evidências de que as mulheres continuaram a jogar futebol a despeito das declarações em contrário, sua exclusão social do esporte pode nos trazer vislumbres a respeito das ideias sobre sexualidade e gênero nessas culturas. Esportes são terreno fértil para entender como as divisões de raça e classe são articuladas dentro da sociedade. O capítulo “Policiamento dos Esportes Femininos no Brasil” recorda que, conforme o futebol se tornava cada vez mais identificado como o esporte nacional brasileiro, “a exclusão das mulheres… era parte e razão para marginalizá-las enquanto agentes ativos da nação”. No Brasil, a limitação à participação das mulheres no exercício físico como método de promover a beleza feminino também “incluía um foco na cor branca”. O futebol, que ganhou popularidade entre brasileiros negros e das classes trabalhadoras nos anos 1920 e 30, era percebido como particularmente “violento”, reforçando assim a ideia de que mulheres não deveriam jogar. No Brasil, assim como em outros lugares da América Latina, “a exclusão das mulheres [do futebol] ocorreu no exato momento em que se consolidou a narrativa do esporte como força democratizadora e unificadora da identidade nacional, particularmente em termos de raça”.

O que colabora para tornar Futeboleira tão interessante é que muitas das lutas que as mulheres esportistas enfrentaram permanecem existindo. Considere que ainda recentemente, em 2017, “o time [de futebol] feminino inteiro do Clube Nacional do Uruguai acusou seu treinador… de discriminação de gênero”. O time inteiro! O machismo – que, entre outras coisas, dita o tipo de corpo físico que uma cultura julga atraente – permanece também implacável no mundo dos esportes da América Latina: em 2017, a Adidas apresentou os novos uniformes dos times na Argentina usando jogadores homens… e mulheres modelos. Exemplos como esses ajudam a expor as ideias implícitas sobre feminilidade e o papel que se espera das mulheres na esfera pública – ideias que permanecem entrincheiradas, a despeito das mudanças em outras áreas.

Futeboleira tem foco na América Latina, mas não é difícil enxergar os paralelos com o estado atual dos esportes femininos nos Estados Unidos e globalmente, onde as mulheres continuam a lutar por igualdade. Pense, por exemplo, nos debates sobre as ações e a escolha de roupas de Serena Williams nos Estados Unidos. É fácil ver que as mulheres nos esportes ainda são vítimas de valores patriarcais que tentam mantê-las restritas a um certo molde.

A história predominante das mulheres no esporte na América Latina pode ser de ofuscação, maus-tratos e má administração, mas há sinais de que os tempos estão mudando. Times femininos do Uruguai, Argentina, Equador e outros países estão conquistando popularidade e cada vez mais são capazes de reivindicar melhor acesso a equipamentos esportivos e assistência financeira. Times jovens para meninas estão sendo promovidos na Argentina e, no Equador, Vanessa Arauz ocupou durante anos o cargo de treinadora principal da seleção feminina.

Enquanto o feminismo continua a avançar em todos os aspectos da vida, um livro como Futeboleira ajuda a iluminar as maneiras como, no decorrer da história, o patriarcado exerceu controle sobre os corpos das mulheres. Essa história, bem escrita e meticulosamente pesquisada, nos ajuda a entender o passado e retira o corpo feminino do silêncio imposto a ele. A história pode ter tentado deixar as mulheres fora da narrativa sobre os esportes na América Latina, mas Futeboleira coloca a posse da bola de volta com as mulheres.

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