Na coluna Clima e Comunidade, a vida dos agricultores afetados pela transposição. Foram deslocados com a esperança de água abundante. Passados 15 anos, assentamentos são marcados por saúde mental deteriorada e poços secos
por Damião Ferreira Fernandes, em Outras Palavras*
Tudo começou em 1998 quando começaram as primeiras especulações sobre um grupo de topógrafos que apareceram na comunidade de Riacho de Boa Vista (onde hoje está localizada a parede do Barragem de Boa Vista) para fazer estudo de solos e colher algumas amostras de terras e pedras pra análises. Chegaram dizendo que era um estudo para construir um açude, coisa que na época ninguém acreditou, e houve uma certa resistência por parte dos proprietários para deixar as maquinas entrarem em suas propriedades para perfurar o solo. Achavam que esse grupo estava atrás de minérios como ouro, diamante ou qualquer outro tipo de pedra preciosas. Acompanhei todo o processo, tinha oito anos na época. Nem de longe passou pela minha cabeça que ali seria um dos maiores reservatórios de barragem do sistema que, hoje, comporta o Projeto de Integração das Bacias do Rio São Francisco no Sertão Setentrional (PISF). O solo era perfurado, catalogado e depois embalado e enviado para Recife. Enfim, depois de concluídos os trabalhos, foram embora e ninguém nunca mais ouviu falar sobre o tal açude.
Em 2004, novamente apareceu outra equipe de topografia — dessa vez pra fazer o mapeamento da área. Na época causou um grande alvoroço na população, pois eram tempos de muitas incertezas e muitas duvidas. Naquele tempo, ninguém sabia realmente como tudo iria acontecer: vamos perder nossas casas? Vamos ter onde morar? Vai ficar tudo coberto de água? Vamos poder usar a água?
Esse foi um período de muitas reuniões com o DENOCS que, na época, instalou um escritório no município para poder calcular as indenizações e emitir os laudos (estipular valores para as propriedades, casas, plantas etc.) e esses valores que dependeria de suas benfeitorias (o que foi construído por você e não pela natureza). Isso acontecia da seguinte maneira: nas indenizações que partiam de R$ 0,0 até R$ 30.000,00, o proprietário poderia escolher receber todo esse valor e construir sua casa em outro lugar, ou poderia abrir mão do valor da casa e receber apenas o valor das benfeitorias.
Receber apenas o valor dessas benfeitorias era a opção que pequenos agricultores deveriam fazer para poder ganhar uma casa nas agrovilas que, posteriormente, seriam construídas. Hoje elas tem o nome de Vilas Produtivas Rurais. Por exemplo, se uma pessoas recebia um laudo que apontasse para suas propriedades o valor de R$ 28.000,00, esse valor não era apenas de sua casa. Nele estava embutido todas as benfeitorias. Além do valor da casa estavam somados os pés de arvores plantados, frutíferos ou não, curral se tivesse, galinheiro se tivesse….. Enfim, qualquer coisa que foi plantado ou construído pelo morador era considerado como benfeitoria e, se esses valores juntos com o da casa não ultrapassasse R$ 30.000,00, o morador abria mão do valor da casa e receberia apenas o valor das benfeitorias — e desta maneira ele poderia receber uma outra propriedade que, até o momento, não se sabia o tamanho nem onde era. Apenas sabíamos que era uma área irrigada e que teríamos uma casa pra morar. Aos que recebiam valores superiores a R$ 30.000,00, que era os que tinham uma propriedade maior, esses não tinham a opção de escolher. Eles eram obrigados a receber o dinheiro e tinham que desocupar a propriedade quando fosse solicitada. Porém, todas as pessoas tinham o direito de pedir a correção dos laudos caso entendesse que os valores apresentados não eram correspondentes ao que valiam suas propriedades.
Existia na época três tipos de moradores atingidos pelo projeto: o proprietário, que não tinha direito de escolher se ia para a vila por ser considerado um médio proprietário, e que deveria buscar outras propriedades para comprar; o morador com benfeitoria, que era aquele que não tinha propriedade da terra, mas que tinha a posse do terreno com uma casa construída com o suor de ser trabalho e, nesse terreno, existiam pequenas construções de benfeitorias (lembrando que o valor delas não podia exceder R$30.000,00 reais, caso contrario ele era obrigado a receber o dinheiro e não poderia optar por morar na vila); e o morador sem benfeitoria, esse era aquele que não tinha casa nem benfeitoria, apenas morava de favor em uma casa de seu patrão ou então estava ali prestando algum tipo de serviço para o proprietário da terra.
Êxodo
Nos anos seguintes, juntamente com o DENOCS (Departamento Nacional de Obras contra a Seca), as autoridades do governo federal, em especial o Ministério da Integração Nacional (MIN) chegaram pra fazer um levantamento de quantas famílias seriam atingidas e quantas comunidades seriam submergidas pela água nos lugares por onde passaria o projeto. Eles explicaram com mais detalhes a possibilidade de reassentar todas as famílias em comunidades (chamadas de vilas na época). Como sempre havia uma certa desconfiança por parte da população em deixar sua casa sem saber se realmente iria ser cumprido o que estava sendo prometido. Aproximadamente nos anos de 2008 a 2010, alguns proprietários começaram a receber o valor de suas indenizações. Posteriormente, eles precisariam retirar-se de suas propriedades. A obra precisava avançar e, apesar de muitos proprietários já terem saído, ainda existiam moradores em suas casas, pois os proprietários recebiam e iam desocupando as terras enquanto os moradores permaneciam. Estes eram aqueles falados anteriormente, com e sem benfeitorias. Esta foi uma estratégia usada pelo Ministério para que as famílias pudessem deixar suas casas e aderissem a um programa chamado Verba de Manutenção Temporária (VMT) que consistia em uma ajuda de custo no valor de R$ 1.352,00 para que as famílias pudessem se manter até serem reassentadas nas comunidades e começassem a usufruir de sua produção.
A forma de incluir as famílias nesse beneficio era de acordo com as necessidades do projeto. Por exemplo, as máquinas chegavam em uma comunidade pra trabalhar, então aquelas famílias que estavam próximas tinham que ser removidas. Não necessariamente precisava ser todas ao mesmo tempo. Existem famílias que receberam a VMT por mais de nove anos e outras por apenas quatro. Essas famílias que estavam sendo convidadas a desocupar a área, geralmente, se deslocavam para a cidade. Este fato fez com que na época a cidade de São Jose de Piranhas, na Paraíba, passasse por um inflação imobiliária com aluguéis de imóveis a preços jamais imagináveis para a época. Vale lembrar que esse período coincidiu com a chegada de um grande número de operários da obra da transposição que foram albergados aqui na cidade, inchando ainda mais a sua população. Tendo em vista que na cidade não existia mão de obra qualificada para determinadas funções técnicas, as empresas trouxeram essas pessoas de outros municípios e estados.
Esse processo de êxodo rural se intensificou no ano de 2012 quando os morados que se descolocaram para a cidade, em sua maioria, ficaram ociosos, pois a única atividade que sabiam desenvolver era a agricultura de subsistência. Eles não tinham nenhuma qualificação para conseguir um emprego na cidade ou nas empresas das obras da transposição, tendo que sobreviver com sua família apenas com a ajuda de custo da VMT. Acredito que esse foi um dos períodos mais críticos do projeto. Imagine ir morar na cidade recebendo R$ 1.352,00, tendo sua vida transformada. Quando o homem do campo se viu em um lugar onde ele se sentia preso, pois ali muitas das vezes não encontrava boa vizinhança como tinha antigamente no sitio. Não tinha os mesmos hábitos, como o de sentar todas as noites na calçada e conversar até tarde. Enfim, esse período foi de muita dificuldade de adaptação, onde algumas pessoas caíram em depressão. Em casos específicos algumas pessoas precisaram ir para um hospício. Alguns procuraram uma casa no sitio pra alugar porque, naquela situação, existia um vazio grande que não alcançávamos e que seria preenchido com o modo de vida que era vivido num passado não muito distante.
Poços secos
Por volta dos anos de 2014 a 2015, o MIN também começou a fazer capacitações e oficinas com os reassentados, dividido em módulos por comunidades, pois as pessoas precisariam entender que dali para frente não iriam mais morar de maneira isolada e precisavam aprender modos de boa convivência, conhecimentos básicos para respeitar a natureza e o meio ambiente. Elas deveriam participar de dez módulos de capacitação sobre diversos assuntos que iam desde conhecimentos básicos sobre cooperativismo, convívio em comunidade, técnicas para desenvolver determinadas culturas adaptáveis ao semiárido e formas de manejar a terra. Essas capacitações duraram muito tempo, tendo em vista que eram feitas em todas as comunidades que iriam ser reassentadas pelo projeto. Nas quatro comunidades que estão localizadas aqui no município de São José de Piranhas, essas capacitações aconteciam no anexo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São José de Piranhas, à margem da rodovia PB-400, no Centro de Treinamento dos Trabalhadores Rurais. Nessas ocasiões ele dava todo o apoio relacionado ao espaço físico para as famílias e também aos instrutores da CMT Engenharia que vinham ministrar esses cursos.
Depois de todos esses cursos no centro de treinamento, alguns mais ainda foram realizados na própria comunidade no prédio da Associação Comunitária. As primeiras famílias que foram reassentadas no município de São Jose de Piranhas nas VPRs, foram as que faziam parte da comunidade da Vila Produtiva Rural Irapuá I. Estas famílias chegaram por volta de 28 de fevereiro e 01 de marco de 2016, a mudança era feita com veículos cedidos pelo MIN [Ministério da Integração Nacional] e durou dois dias e meio.
As famílias que foram reassentadas na Vila Produtiva Rural Irapuá I chegaram aqui com esperança de receber sua casa, seus lotes de terras e um kit de irrigação para produzir. A esperança era de água em abundância para que pudêssemos ser uma vila produtiva como realmente está no papel. Porém, a magia da vida nova com novos ares, novos vizinhos e a ilusão de que tudo estava em perfeita harmonia foi quebrada logo na primeira semana quando o poço que abastecia a comunidade secou completamente. Tudo isso é apenas uma breve historia de uma comunidade de 30 famílias, hoje 33, que é abastecida pelas águas das chuva que está acumulada na barragem de Boa Vista e que anseia por uma vida em que possa desfrutar das águas do Velho Chico.
*Outras Palavras estreia a coluna Clima e Comunidade, uma parceria com o Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, articulação de entidades com ampla base social e espalhadas por todo o país. Com textos criados a partir de oficinas de Comunicadores Populares, a coluna apresentará relatos e reportagens acerca do meio ambiente e da vida comunitária, refletindo sobre como aquecimento global agrava a desigualdade de renda. Sempre com vozes das próprias comunidades, com textos livres e sem as rígidas regras do jornalismo convencional, mas carregados da legitimidade e espontaneidade necessárias para o debate público sobre temas que afligem a população mais pobre.
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Damião Ferreira Fernandes e sua mãe diante da casa deles na Vila Produtiva Rural Irapuá I. (Foto: Maristela Crispim)