Dia de inspeção em Congonhas. Por Antonio Claret Fernandes

O Inspetor, nesse dia, está particularmente feliz. Ele gosta da sua profissão. Não esconde isso de ninguém. Vê-se, sem esforço, pela sua cara. Meio bonachão e muito contente. Ganha bem. Mora numa mansão no Rio de Janeiro; coincidentemente no Botafogo, mesmo bairro do escritório da Vale. E ainda é cotejado por grandes empresas. Recebe regalos por favores aqui e ali. Segue a prática comum no ambiente privado, onde a corrupção, ao contrário do que pensa o senso comum, é maior do que no público.

Mas, para além da satisfação normal, a proximidade da inspeção em Congonhas, com 24 barragens de rejeito, para onde já está a caminho, o deixa especialmente feliz. Ele adora aquela cidade. A sua história. O seu relevo.

Às vezes se descuida e fica incomodado com a contradição de uma cidade patrimônio da humanidade roída pelas mineradoras. Uma arrecadação alta, perto de 30 milhões por mês, e a negação de direitos elementares do povo. As doenças associadas a complicações nas vias respiratórias pela poeira de minério. Mas, particularmente, o impedimento do início do Ano Letivo da Creche Dom Luciano, que atende 130 crianças, no bairro Residencial, por causa do risco de rompimento de barragem de rejeito, quase o sensibiliza. Esse sentimento, porém, passa rápido. Procura ser neutro, mas, no fundo, sabe que deseja, unicamente, salvar o seu emprego.

Na aeronave, não vê a hora de chegar ao destino. Quando o piloto avisa que em 10 minutos está em Confins, BH, ele se remexe na poltrona. A impressão é que aquilo dura um ano. Arranja uma coisa e outra para, se possível, furar a fila, no desembarque, e não perder nem um segundo.

Em exatos 7 minutos, a aeronave toca o solo e leva mais três nas manobras até que as portas se abram. O capital sabe organizar-se bem para explorar melhor.

O Inspetor conhece Confins igual a palma da mão. Além disso, aprendeu com a vida que fiscal de mineração não precisa levar nada na viagem. Apenas poucos papéis numa minúscula mochila com muda de roupa – a qual vai às costas – e muita disposição para banquetear-se. É o suficiente! Não carrega mala. Vai, então, atalhando caminho. E segue direto ao ponto onde, nos seus cinco anos de inspeção de barragem de rejeito, o mesmo taxista o espera.

Essa é uma característica forte do Inspetor: seguir uma rotina, sem nenhuma vontade de mudança. A vida lhe é favorável e quer mantê-la, exatamente como está. A ciência da morte o incomoda, por vezes. Mas resolveu esse problema de uma vez por todas com o seguinte raciocínio: enquanto está vivo, aproveita e não sente a morte e, depois de morto, também não a sentirá por razões obvias.

A bem da verdade, o Inspetor não trabalha somente em barragens de rejeito. Mas foi nelas que fez sua fama. As empresas comumente se referem a ele, nos bastidores (quase) secretos das avaliações internas – guardadas a sete chaves – com o adjetivo ‘habilidoso’. Ele contempla a expectativa delas, que seguem um ritmo louco, apressadíssimo, na velocidade da disputa de novos negócios, sem tempo para aguardar licenças. Os seus autos de infração planejados resolvem essa disritmia.

Taxista e Inspetor se cumprimentam. Sorriem. São antigos conhecidos. Conversam sobre coisas triviais, do tempo, do frio incomum nos últimos dias, da chuva, do trânsito, da distância de Confins ao centro de BH. Mas a maior parte do percurso, do aeroporto ao baldeio, na Casa de Pedra, é ocupada com a beleza de Congonhas.

De olho no freguês tão assíduo e frequente, e sabendo que o hobby dele são as cidades históricas de Minas Gerais, o taxista procura aperfeiçoar seu conhecimento principalmente sobre Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei, Tiradentes e, claro, Congonhas, dialogando, com toda desenvoltura, sobre Aleijadinho, os profetas, a culinária e outros temas afins. Assim, seu ganha-pão é garantido e a viagem fica agradável.

Sua familiaridade com o Inspetor, no entanto, não lhe permite abrir o coração ao ponto de partilhar ideias ‘estranhas’ que lhe fervilham a cabeça. Uma delas é o caso, em boca miúda, de que Deus deixa o sacrário do Santuário do Bom Jesus, chaveado, e vai passar a noite junto aos atingidos; bem à surdina para não escandalizar o templo. Ele também corre risco junto às cinco mil pessoas, residentes ali, e não quer morrer de novo, mas, também, tem seu direito negado até o momento.

O Inspetor é suficientemente conhecido nas mineradoras – um engenheiro que entrega sua vida ali e, agora, aposentado, o testemunha -; mas, mesmo assim, faz todo o protocolo de praxe. Sabe que o adjetivo ‘habilidoso’, como é qualificado, vem justamente de sua capacidade de embrulhar o interesse da empresa no formalmente correto. Apresenta as credenciais. Cumprimenta os diretores. Assina os papéis.

Uma coisa do Inspetor, muito elogiada entre as empresas mineradoras, é que 90% da inspeção se fazem antecipadamente, pelos técnicos das próprias empresas. Eles mesmos levantam todas as informações e constroem a narrativa conveniente. Cada vez, de forma minuciosa e atenta às preocupações mais prementes do Estado e dos governos, eles próprios elegem um ou dois quesitos que vão figurar como elemento do auto de infração. É uma distração! Então, o laudo produzido pela própria empresa, assumido pelo Inspetor, traz uma rigidez formal, chegando a ser extremamente duro com a própria mineradora, como tática de desestímulo dos funcionários dos órgãos competentes e de indução da atenção deles justamente aos pontos de interesse da empresa para futuros investimentos. Em síntese, o auto de infração e a articulação com os gestores públicos alicerçam a base e abrem caminho para sua expansão.  A promessa de investimento superior a um bilhão por parte de uma das mineradoras, na cidade de Congonhas, seguiria essa trajetória.

O laudo, com o auto de infração, já é assinado ali mesmo, na recepção. Feito esse ritual, que vem dando certo, o dia da inspeção vira uma festa.

Primeiro é o aperitivo. Uma sala reservada somente para receber as ‘pessoas de bem’. Há uma imensa variedade de bebida, muitas importadas. A empresa, em geral, chama convidados especiais, principalmente autoridades municipais. Há representantes do mundo da cultura escolhidos a dedo. Se há algum religioso de qualquer igreja disposto a fazer parte desse ambiente é chamado também.

O Inspetor, comedido na bebida, pois em trabalho, mantém, assim, sua imagem de profissional sério; o que economiza na bebida, porém, esbanja no seu particular interesse pelas artes. Isso lhe rende, sem nenhum esforço, alguma bajulação de autoridades presentes, que desejam ver seus projetos aprovados, mais afeitos ao dinheiro do que às obras.

Do aperitivo se vai ao almoço. Entra-se numa espécie de labirinto abrindo e fechando seguidas portas, todas com o aviso ‘entrada restrita’. O Inspetor, ainda que familiarizado ao ambiente, ficaria, quando sozinho, perdido naqueles corredores sem fim.

De alguns pontos, enquanto caminha, o Inspetor avista operários que se dirigem ao restaurante, suados, famintos. Ele sabe que aquelas pessoas, cujo trabalho é surrupiado pelo processo devidamente explicado por Karl Marx, é que produzem toda a riqueza. A empresa é que precisa deles, mas eles é que ficam reféns dela. O lucro, portanto, não vem da habilidade no aproveitamento das oportunidades do mercado, da venda do minério, mas da exploração do trabalho. Tudo isso lhe vem à mente do tempo da universidade. Sente, então, um friozinho na barriga, mas, em seguida, consola-se: o estudo é uma coisa, mas a realidade é outra, pensa.

Ele sabe, porém, que não é bem assim. Não chega a sentir-se um ladrão. Mas tem a ciência de que faz parte de uma engrenagem maior montada, ao longo da história, para a acumulação. Enricamento e empobrecimento estão imbricados. Duas faces da mesma moeda. Mas prefere a sobrevivência econômica à luta politica. Um economicista pragmático entranhado da ideologia do opressor.

Após o labirinto e esses sentimentos, que não revela a ninguém, o Inspetor chega ao refeitório especial, ambientado exclusivamente para esse dia e, nele, com as mais diferentes iguarias, continua o clima de festa iniciado no aperitivo.

O relógio dá 14 horas. Faz duas horas e meia de sua chegada e nem parece.  Pelo espaço familiar. Pela distração. Pelo dever cumprido.

Os convidados despedem-se uns dos outros. Os que exageram na bebida conversam seguidamente, num tom mais alto, e não escondem a expectativa pela próxima inspeção. Ninguém quer ficar de fora.

O Inspetor, adestrado à estrutura perversa de exploração mineral no país, solicita à empresa que o leve à barragem. Prontamente é atendido, com veículo, motorista e companhia do Diretor da mineradora. Dirigem-se à barragem, aonde, chegando, descem ligeiro, batem umas fotos e, em menos de cinco minutos, Diretor e Inspetor se despedem, trocando amabilidades, indicativo de que estão do mesmo lado. O primeiro volta à empresa e, o segundo, dá passos rumo ao seu taxista, que o espera, para levá-lo ao centro da cidade. O Inspetor pode, agora, fazer aquilo de que mais gosta: visitar museus, igrejas e saborear as delícias da culinária local. Às 11 horas da noite já está no hotel, preparando-se para dormir, pois, às 6 horas, em ponto, vai estar de pé, entrando no taxi, de volta a Confins. De lá segue para o Rio de Janeiro. Vai ver a família. 

Emil Nolde, Máscaras (1911)

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