PFDC recomenda revogação de portaria que trata de ingresso e deportação sumária de migrantes e refugiados no Brasil

Portaria extrapola sua competência regulamentadora, além de violar arcabouço jurídico nacional e internacional sobre o tema

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal (MPF), recomendou nesta segunda-feira (5) ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que adote as medidas necessárias para a imediata suspensão dos efeitos da Portaria MJ 666/2019 e sua consequente revogação. Editado em 25 de julho, o ato normativo dispõe sobre “o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”. Para a PFDC, a portaria extrapola sua competência regulamentadora, além de violar o arcabouço jurídico nacional e internacional sobre o tema.

No documento, o órgão do MPF reafirma que todos os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal também se aplicam aos migrantes que estejam no país, sem distinção de qualquer natureza. Esclarece também que a todo migrante é garantido no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o direito à liberdade de circulação.

Entre os princípios e diretrizes que regem a política migratória brasileira, conforme destaca a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, estão a universalidade, a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; o repúdio e a prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; a não criminalização da migração; a não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional; e o repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas, conforme o artigo 3º da Lei de Migração (13.445/2017). Além de apresentar regras aplicáveis aos migrantes em geral, a referida lei também consagra direitos dos refugiados e dos solicitantes de refúgio, a par da aplicação da Lei 9.474/1997.

Outro aspecto abordado pela PFDC é o fato de o Brasil ser signatário de diversos tratados internacionais que preveem uma série de direitos a essas pessoas quando em território diverso ao de sua origem, mencionando a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (Convenção de Genebra).

Nesse sentido, diante da gravidade das sanções aplicadas (impedimento de ingresso, repatriação e deportação), as restrições devem estar estabelecidas em lei, sendo que as condutas elencadas no art. 2º da Portaria MJ 666/2019 para definir “pessoas perigosas ou que tenham praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal” foram descritas de forma ampla e com alto grau de subjetividade, possibilitando inclusive que possam ser aplicadas a “suspeitos de envolvimento”, o que ofende ao princípio da presunção de inocência.

Dessa forma, complementa a PFDC, “em se tratando de um Estado Democrático de Direito e já tendo o legislador exercido um juízo de valor sobre gravidade dos delitos e emanado uma lei em que prevê quais os mais severos e que, portanto, sujeita o seu autor a um regime mais gravoso e a uma série de restrições de direitos, fere o regime democrático e desrespeita a repartição de poderes a elaboração pelo Executivo, em portaria, de uma lista de crimes graves que despreza essa valoração legislativa para, a pretexto de uma regulamentação, adotar em substituição seu próprio juízo valorativo abstrato”.

A recomendação também reforça que a aplicação das causas de exclusão – tanto para declarar um solicitante de refúgio como inelegível à proteção, quanto para cancelar ou revogar o status de refugiado já reconhecido – cabe ao Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), e não à Polícia Federal. A respeito das restrições à informação ao migrante dos motivos da aplicação da penalidade, sob suposta necessidade de preservar as investigações – impostas pela portaria do Ministério da Justiça – a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão explica que tal medida viola o direito ao contraditório e à ampla defesa da pessoa que teve impedido o seu ingresso ou esteja sujeita a repatriação ou deportação, uma vez que não lhe é possível exercer o seu direito de defesa sem o conhecimento das razões da decisão administrativa.

Além disso, argumenta a PFDC, a Lei de Migração não permite deportação “sumária”, sendo que a única delegação prevista quanto ao tema refere-se aos prazos, devendo as demais garantias previstas em lei permanecerem idênticas e, mesmo a redução permitida para a resposta do migrante, não pode ser inferior a cinco dias (Lei 9.748/1999), cabendo prorrogação justificada por igual período, “sendo portanto ilegal a definição de um prazo de até 48 horas para resposta à notificação”. Ainda conforme a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, a possibilidade de prisão cautelar para fins de deportação expressa no art. 5º da medida editada pelo Ministério da Justiça, aplicando-se “quando couber” o Código de Processo Penal, altera a lógica das prisões cautelares e, por isso, a restrição de liberdade puramente por razões migratórias é ilegal e não pode ser efetivada.

Por fim, o órgão do MPF questiona o art. 8º da Portaria 666/2019 na medida em que designa o  chefe da respectiva unidade da Polícia Federal como responsável pela instauração e decisão dos procedimentos de que se trata a portaria. Para a PFDC, “a configuração e concentração de poderes em uma única figura, especialmente em um procedimento de caráter sumário, configura grave possibilidade de violação de direitos humanos, especialmente ante os conceitos abertos e subjetivos previstos na portaria, abrindo possibilidade para arbitrariedades e entendimentos diversos na sua aplicação pelos diferentes chefes das unidades da Polícia Federal, sendo que eventual controle judicial poderá inclusive ser  inócuo diante dos prazos previstos na Portaria MJ 666/2019 e das inerentes dificuldades de se reverter os efeitos da execução de uma medida de remoção compulsória”.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública tem até cinco dias (a partir do recebimento) para se manifestar acerca das medidas adotadas para o cumprimento do disposto na recomendação, ou as razões para o seu não acatamento, sob pena de adoção das medidas judiciais pertinentes.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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