Ainda somos gente quando toleramos que um presidente glorifique um torturador?

Bolsonaro parece manter apoio de parcela da população não apesar das atrocidades que diz, mas por causa delas

Por Luiz Fernando Vianna, na Época

Empatia é uma palavra que entrou em nosso vocabulário cotidiano. O significado dela, porém, não parece estar em alta. Segundo o Aurélio, é a “tendência para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa”. Fácil de entender, mas difícil de praticar.

Antes de sermos Flamengo ou Fluminense, esquerda ou direita, indígenas ou não indígenas, heterossexuais ou não, temos algo que nos une: somos todos humanos, ok? Fecha-se agora o almanaque de filosofia e abrem-se os jornais.

Na quinta-feira 8, Jair Bolsonaro voltou a exaltar seu torturador de cabeceira, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015). Disse que foi um “herói nacional”. A Arquidiocese de São Paulo denunciou mais de 500 casos de tortura ocorridos no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) entre 1970 e 1974, quando Ustra era o comandante. De acordo com muitos relatos, como o do vereador paulistano Gilberto Natalin i (PV), Ustra não apenas dava ordens, mas participava das sessões. Foi condenado em segunda instância como torturador.                                

Considerar inaceitável qualquer forma de tortura deveria ser o marco zero da empatia. É verdade que torturas psicológicas podem ser tão devastadoras quanto as físicas. Vários de nós já fomos causadores ou vítimas disso. Mas destruir o corpo de alguém indefeso, ainda extraindo prazer dessa destruição, soa como o ponto máximo da covardia.

Pesquisas recentes indicam que Bolsonaro permanece apoiado por um terço dos entrevistados no país – a aprovação é menor no Nordeste . Se, depois de todas as atrocidades que ele proferiu em pouco mais de sete meses de governo, a parcela dos que o apoiam não despenca, fica difícil afirmar que isso acontece “apesar” das atrocidades. Talvez seja “por causa” delas.

Devem ser muitos os que não sentem náuseas ao ouvir o presidente do país glorificar um torturador; ou chamar de mentirosa uma pessoa (a jornalista Míriam Leitão) que relatou em detalhes as torturas que sofreu; ou tripudiar da dor de um filho (o advogado Felipe Santa Cruz) que não pôde crescer com o pai, pois a ditadura o matou e ainda desapareceu com seu corpo.

Existem as turmas do “por outro lado…”. Um exemplo são os empresários, financistas e até jornalistas que minimizam as declarações de Bolsonaro (“Ele é assim mesmo…”) em nome do que seria mais importante: as reformas econômicas. Para eles, civilização e empatia têm pouco valor e podem atrasar o Brasil. Ame-o ou deixe-o.

A intolerância com a corrupção é saudável e necessária. Mas como ser intolerante com os roubos ocorridos nos governos petistas e fechar os olhos para os fortíssimos indícios de que a família Bolsonaro e os clãs ao redor se apropriaram de dinheiro público, conforme vêm revelando ÉPOCA e o jornal O Globo? O desvio de recursos públicos pode se dar em outra ordem de grandeza, mas a questão não é matemática, e sim filosófica: é correto ou não é correto fazer uso pessoal de bens coletivos? Até certa quantia pode continuar enchendo o peito e se dizer “cidadão de bem”?

Nos períodos sombrios, palavras vão perdendo sentidos, nuances, princípios, pontos de equilíbrio. Tornam-se brutas e cínicas. Como sabemos, na entrada do campo de concentração de Auschwitz estava escrito: “O trabalho liberta”. O escritor Primo Levi (1919-1981), que sobreviveu a Auschwitz e se matou quatro décadas depois, escreveu outra frase no título de seu livro mais importante: “É isso um homem?”. Enquanto ainda conseguirmos fazer essa pergunta aos outros e a nós mesmos, restará um pouco de esperança e empatia.

Imagem: Christopher Ulrich, O Tolo

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