Um dos objetivos principais desta fala foi advertir os Procuradores que participam da fatídica “operação lava-jato” (que parece até ser uma pessoa hoje, querida e amada por muitos), ante a divulgação de conversas comprometedoras e reveladoras de todos os ardis, ilegalidades e inconstitucionalidades na perseguição seletiva de políticos.
Este é o fato inicial. O problema é a hipocrisia, incoerência e perseguição que foi praticada logo em seguida, que demonstra uma postura antirrepublicana na condução do julgamento de um processo administrativo disciplinar (PAD)de um Procurador de Justiça do Estado da Bahia, o Professor Rômulo Moreira.
Segundo o CNMP no julgamento do PAD, o Procurador “teria violado os deveres legais de manter, pública e particularmente, conduta ilibada e compatível com o exercício do cargo e de zelar pelo prestígio da Justiça”, impondo-lhe, em decorrência disso, uma suspensão com prejuízo dos vencimentos por 30 (trinta) dias.
O leitor então deve se questionar: o que teria feito de tão assustador e grave? Respondo, escreveu este artigo no Justificando “Eu detestaria estar no lugar de quem venceu”, na qualidade de cidadão, criticando o presidente eleito no processo eleitoral de 2018, nos seguintes termos:
“Optou-se por um sujeito fascista, preconceituoso, desqualificado, homofóbico, racista, misógino, retrógrado, arauto da tortura, adorador de torturadores, amante das ditaduras, subserviente aos militares – especialmente “os de pijama”, posto alijados já da caserna -, enfim, um “bunda-suja” (como os militares de alta patente designam aqueles que não subiram na carreira, o caso do capitão, que não era respeitado nem pelos seus superiores.”
A acusação foi pautada na infração prevista pelo art. 148, VI, da Lei Complementar nº 11/1996, do Estado da Bahia (LOMP/BA), por violar os seguintes dispositivos da lei Orgânica:
Art. 145 ‐ São deveres funcionais dos membros do Ministério Público, além de outros previstos na Constituição e na lei: I ‐ manter, pública e particularmente, conduta ilibada e compatível com o exercício do cargo; II ‐ zelar pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas funções, e pelo respeito aos membros do Ministério Público, aos magistrados e advogados.
Essa condenação, porém, padece de vários problemas, senão vejamos. Primeiro, não nenhum dos deveres funcionais capitulados no processo foram violados, uma vez que o fato foi a publicação de um artigo que nada faz além de reproduzir fatos de conhecimento público e notório sobre o atual mandatário do executivo federal.
Para ilustrar, transcreve-se abaixo algumas reportagens veiculadas sobre atos e pronunciamentos do Presidente da República:
Racismo (Esquerda diário)
“Bolsonaro foi condenado ontem pela Justiça Federal do Rio de Janeiro por ter declarado que negros quilombolas “não servem para nada”, em suas palavras,“nem para procriadores servem mais”. Isto foi dito por ele em atividade no Clube Hebraica no Rio de Janeiro em abril deste ano. (…) O Ministério Público Federal entrou com uma ação contra o Deputado exigindo o pagamento de R$ 300 mil reais em ressarcimento às comunidades Quilombolas, mas a justiça acabou condenando-o à pagar apenas R$ 50 mil, que irão para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. Esta não foi a primeira vez que Bolsonaro demonstrou seu racismo publicamente (…)”.
Misoginia (Uol)
“Via Twiter: “Não tomo decisão sozinho, ouço os ministros, até porque posso errar. Tenho que ter responsabilidade. [Ouço] até a Damares, que é uma ministra com importância NÃO muito grande.” Diz bolsonaro direto do Chile. Isso me lembrou o “Mas tem mulher q é competente” Que tempos!…”
Apologia à tortura (G1)
“O Conselho de Ética da Câmara abriu processo contra o deputado Jair Bolsonaro, do PSC, por apologia à tortura. Ele pode até perder o mandato. O processo foi aberto nesta terça-feira (28) com o plenário do Conselho de Ética praticamente vazio. Mas o que o deputado Jair Bolsonaro fez para ser processado foi diante de quase todos os seus colegas. E ao vivo, na TV: no dia da votação do impeachment na Câmara, Bolsonaro citou o coronel que comandou durante a ditadura militar o DOI-Codi, um órgão de repressão.”
“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.
Por que consideramos que Rômulo Moreira foi censurado?
Sobre a utilização da expressão “bunda-suja”, o próprio autor do texto explica que se trata de referência utilizada pelos “militares de alta patente designam aqueles que não subiram na carreira, o caso do capitão, que não era respeitado nem pelos seus superiores”. Há alguma inverdade nisso? Lembremos que o “capitão” foi expulso da corporação[8], “acusado por cinco irregularidades e teve que responder a um Conselho de Justificação, uma espécie de inquérito, formado por três coronéis”.[9]
Resta claro, ante a apresentação de apenas algumas reportagens, todas pautadas em provas incontestes já amplamente divulgadas, que o trecho do artigo escrito pelo Procurador Rômulo Moreira e utilizado para o acusar não constitui nenhuma conduta ilibada, tampouco incompatível com seu cargo, por uma simples razão, sequer constitui opinião, mas retratam VERDADES de conhecimento público. Será que o CNMP pensa de forma diferente, ou até mesmo acredita em MITOS? Seria muita infantilidade e desconhecimento da realidade.
Segundo ponto, imaginemos que o cidadão Rômulo Moreira quisesse expressar a sua opinião sobre o candidato eleito. No que isso agride os seus deveres funcionais? Trata-se de um legítimo direito fundamental constitucionalmente tutelado e de alta importância para assegurar um real Estado Democrático: a LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
Acerca desse direito fundamental, que consiste em conditio sine qua non para a garantia do princípio do pluralismo político, e por conseguinte da democracia, defendo que:
O que está em jogo na defesa da liberdade de manifestação do pensamento, na liberdade de opinião, é a expressão da verdade, pois consiste na “liberdade de pensar e dizer o que se crê verdadeiro”. A manifestação, portanto, do dissenso, na medida em que as verdades aparecem, as oposições se consolidam, e a democracia encontra a sua condição de realização, dentro do “caos absoluto” da esfera política.[10]
A nossa Constituição ainda defende a prevalência de um regime democrático, que só se faz politicamente possível na pluralidade, que, por sua vez, carece da defesa de liberdade de expressão do pensamento, mesmo que eu não concorde com este, ou mesmo que ele não me agrade, este é um direito essencial, o de manifestação.
Assim, o cidadão Rômulo Moreira exerceu dignamente o seu direito de falar o que acha, de se manifestar politicamente, de discordar de práticas comprovadas do então CANDIDATO ELEITO, pois sequer havia sido sequer diplomado pelo resultado do pleito eleitoral.
A pluralidade política e a democracia são essenciais, segundo os valores insculpidos em nossa Constituição Federal de 1988 (art. 1º), mas mais do que isso, pensemos que:
A política baseia-se na pluralidade dos homens. (…) A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. Enquanto os homens organizam corpos políticos sobre a família, em cujo quadro familiar se entendem, o parentesco significa, em diversos graus, por um lado aquilo que pode ligar os mais diferentes e por outro aquilo pelo qual formas individuais semelhantes podem separar-se de novo umas das outras e umas contra as outras.[11]
As diferenças, inclusive no pensar, portanto, precisam ser defendidas, pois se trata de corolário constitucional.
Ante esses argumentos, portanto, retorno ao início para justificar a hipocrisia, e, também, o título deste escrito: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço; uma vez que a Procuradora-Geral da República conclama os membros dos Ministérios Públicos a respeitar a legalidade e a Constituição, mas ela mesma junto com alguns de seus pares, e demais membros do órgão colegiado, não o fizeram.
A legítima manifestação de oposição do cidadão Rômulo Moreira, que exerce a função de Procurador de Justiça no Estado da Bahia, fundamentada no seu direito fundamental de liberdade de expressão, pautada em fatos comprovados e de conhecimento público acerca da pessoa de um candidato eleito para exercer o cargo de Presidente da República, não constitui nenhuma violação legal dos seus deveres funcionais. Insisto, antes de tudo é uma LIBERDADE CONSTITUCIONAL, fundamental para a manutenção da nossa tão sofrida democracia.
O ato do CNMP transparece censura, para não se pensar em algo mais grave, como uma perseguição, por exemplo, advinda de cidadãos que exercem funções que constitucionalmente exigem a defesa de direitos e do sistema jurídico, e que sustentam isso em suas retóricas vazias, mas na prática eles é que desrespeitam todo o sistema.
Dizer a verdade, ter opinião, manifestar seu pensamento político, que se espera em qualquer democracia, quando começam a ser objeto de restrição, e, pior, de punição, acaba por permitir que se cruze uma linha para um regime autoritário, comprovando suspeitas que vêm sendo alertadas desde o curso do processo eleitoral.
Isso nos faz recordar tempos que se pensava superados, parte de uma infeliz memória histórica, que parece gradualmente recuperada. Vale, portanto, lembrar que:
Os juristas de 1964, adeptos do pensamento autoritário, apresentavam uma teoria jurídica reacionária com o intuito de relativizar direitos e garantias fundamentais conforme os interesses do regime militar. Obviamente, essa concepção jurídica anulava qualquer possibilidade de autonomia do direito em relação à política e permitiu a institucionalização da intolerância contra os setores sociais classificados como inimigos internos do regime (…).[12]
É exatamente o que se percebe neste caso, a necessidade de se punir, como exemplo, todo aquele que se opuser ao sistema político, de feição claramente autoritária, numa flagrante supressão do sistema jurídico, a partir de uma decisão que afronta liberdade fundamental constitucional.
O que há em verdade é um jogo de base cínica. Nesse sentido, Peter Sloterdijk assevera que:
Nas confrontações do esclarecimento, o que está em questão é tudo menos a verdade: posições de preponderância, interesses de classe, posições escolares, estabelecimento de desejos, paixões e a defesa de “identidades”. Estes dados prévios de maneira tão intensa conferem uma forma ao diálogo esclarecido, que seja mais apropriado falar em uma consciência de guerra do que de um diálogo de paz. Os adversários não se encontram uns frente aos outros sob o domínio de um contrato de paz de antemão acordado. Acham-se antes em uma concorrência entre repressão e aniquilação; não são livres em relação aos poderes que levam sua consciência a falar desse modo e não de outro.[13]
O Ministro Celso de Mello já questionou se “é possível a uma sociedade livre, apoiada em bases genuinamente democráticas, subsistir sem que se assegurem direitos fundamentais tão arduamente conquistados pelos cidadãos em sua histórica e permanente luta contra a opressão do poder”[14]
Diante do absurdo aqui narrado, da necessidade de defesa dos direitos fundamentais, da manutenção da liberdade de expressão, do pluralismo político e de nosso Estado Democrático de Direito, manifesto ao final minha total solidariedade, apreço, admiração pela coragem do cidadão, professor e Procurador de Justiça Rômulo Moreira, na sua empreitada na defesa de todos os valores que os seus pares do CNMP foram incapazes de defender.
É com os cidadãos comprometidos com o Estado Democrático de Direito que devemos nos alinhar nesse momento de autoritarismo e afronta à Constituição que vivemos que precisamos nos alinhar.
Axé, Rômulo Moreira!
–
Geovane Peixoto é doutor e mestre em Direito Público (UFBA). Mestre em Políticas Sociais e Cidadania (UCSAL). Professor Adjunto de Direito Constitucional da UFBA.
Leia também: Eu detestaria estar no lugar de quem venceu
Notas:
[1] Doutor e Mestre em Direito Público (UFBA). Mestre em Políticas Sociais e Cidadania (UCSAL). Professor Adjunto de Direito Constitucional da UFBA.
[2] PAD 1.00055/2019-46
[3] Fonte: https://www.conjur.com.br/2019-ago-13/cnmp-suspende-procurador-bahia-ofensas-bolsonaro-stf.
[4] O artigo na íntegra está disponível no seguinte link:http://www.justificando.com/2018/10/29/eu-detestaria-estar-no-lugar-de-quem-venceu/.
[5] https://esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=18579
[6] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/03/22/ouco-ate-a-damares-fala-de-bolsonaro-provoca-debate-sobre-misoginia.htm
[7] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/06/conselho-de-etica-processa-bolsonaro-por-apologia-tortura.html
[8] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/osdocumentosque-levaram-o-exercito-a-expulsar-bolsonaro-a-mentira-do-capitao/
[9] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1884033-bolsonaro-admitiu-atos-de-indisciplina-e-deslealdade-no-exercito.shtml
[10] PEIXOTO, Geovane. Pluralismo Político e Liberdade de Expressão: A Concretização da Democracia substancial pela Salvaguarda dos Direitos Fundamentais. In Direito Unifacs – Revista Debate Virtual, n. 225, março de 2019. Disponível em:https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/5947.
[11] ARENDT, Hannah. O que é política? 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.21/22.
[12] LIMA, Pereira Danilo. Legalidade e Autoritarismo: O papel dos juristas na consolidação da ditadura militar de 1964. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 73-74.
[13] SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p.42.
[14] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADC43MCM.pdf.