Por Rubens Valente, da Folhapress
O juiz federal substituto da 1ª Vara Federal de Manaus, Lincoln Rossi da Silva Viguini, condenou nesta quinta-feira, 22, a União e a Funai (Fundação Nacional do Índio) a indenizar indígenas de duas etnias em R$ 10 milhões por danos causados pela construção da Transamazônica durante a ditadura militar (1964-1985).
União e Funai também foram condenadas a criar uma base de apoio à saúde indígena das etnias tenharim e jiahui, reforma de três escolas e construção de novas, preservação de locais sagrados, como cemitérios, contratação de professores indígenas e criação de um centro de memória permanente, entre outras medidas. Cabe recurso à decisão.
O juiz considerou provados, no curso do processo, todos os pontos principais da denúncia formulada em 2013 pelos procuradores da República Julio José Araújo Junior e Fernando Merloto Soave.
“A União foi totalmente omissa. Delegou ao DNIT (departamento de estradas) a tarefa de abrir a Transamazônica e não cuidou sequer minimamente das terras indígenas de sua propriedade, despreocupando-se com o conhecimento ancestral que iria desaparecer e enterrando a identidade do povo brasileiro”, escreveu o juiz Viguini. “O caderno de provas constante dos autos demonstra cabalmente os atos por omissão e ação de ambas as rés (União e Funai)”.
O processo judicial, acompanhado pelo grupo de trabalho Povos Indígenas e Regime Militar do Ministério Público Federal, foi aberto no contexto de uma série de conflitos e ameaças entre indígenas e não indígenas na região de Humaitá (AM).
Esses episódios culminaram em violência física entre o final de 2013 e o começo de 2014. Três moradores de Humaitá não indígenas foram mortos dentro da terra indígena, segundo inquérito da Polícia Federal.
Ao pesquisar as condições de vida dos indígenas, o Ministério Público cobrou na Justiça indenização pelos danos que as duas etnias sofreram quando a Transamazônica atravessou seu território, localizado no sul do Amazonas, por volta de 1972, no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
O juiz federal Lincoln Viguini rejeitou, em sua decisão, o argumento da União e da Funai de que a ação não tinha sentido porque os fatos ocorreram há mais de 40 anos. “As partes não impugnaram (negaram) os danos causados aos povos indígenas tenharim e jiahui. Apenas se limitaram a dizer que a rodovia teria sido construída há 40 anos e que não houve ação ou omissão de suas partes. Ocorre, neste ponto, que todo dano ambiental é imprescritível e seus efeitos são permanentes”, decidiu o juiz.
Outro ponto incontroverso, segundo o magistrado, é que a obra da Transamazônica foi feita “sem qualquer licenciamento ou estudo prévio de impacto ambiental. Jamais o governo federal se preocupou com a preservação de locais sagrados, cemitérios e espaços territoriais imprescindíveis ao sentimento de pertencimento dos povos tenharim e jiahui”.
O juiz federal afirmou que a preservação dessas terras “deve ser tratada como condição indispensável (sine qua non) para a proteção de todos os demais direitos indígenas”.
O magistrado ressaltou que “é preciso rechaçar a ideia de que a terra indígena possa ser compreendida apenas pelas relações de produção, com viés lucrativo”. Ele citou várias decisões no mesmo sentido já tomadas pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Em 2017, a juíza federal Jaíza Maria Pinto Fraxe já havia condenado o DNIT e a construtora ASC ao pagamento de uma indenização também de R$ 10 milhões a título de danos morais coletivos sofridos pelos indígenas em razão da Transamazônica.
Na sua decisão, ela argumentou que a construção da rodovia “trouxe garimpeiros e exploração ilegal de minérios, o que resultou na contaminação dos recursos hídricos e dos mananciais de peixes, prejudicando a alimentação dos povos indígenas”.
Além disso, citou a chegada de madeireiros, que “instalaram serrarias e cortaram árvores de porte comercial de forma totalmente incontrolável, sem critérios e cautelas para o respectivo reflorestamento, causando danos à terra indígena jiahui, em especial com a formação de pasto no local”.
União e Funai podem recorrer da decisão do juiz Lincoln Viguini tanto ao próprio juiz quanto ao TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região).
No processo, a União defendeu a improcedência do pedido de indenização, alegando que “não houve qualquer ato omissivo ou comissivo de sua parte”.
Segundo ela, “a construção da BR-230 não possui qualquer vínculo com os fatos narrados na inicial, pois que a obra se encerrou há 40 anos”. Sobre os pleitos referentes à educação, “o modelo de assistência ocorre regularmente dentro das terras indígenas pelos DSEI’s (distritos sanitários) responsáveis.
A Funai argumentou “ausência de omissão; intromissão indevida na administração (devendo ser respeitada a separação dos Poderes); impossibilidade de condenação da Funai ao pagamento de indenização por danos morais coletivos; improcedência da demanda”.
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Velha Tenharim. Foto de Ana Lange