Psicólogos evangélicos foram recebidos pela ministra e buscam vencer eleição no conselho para autorizar terapia que pretende transformar LGBTQI+ em ex-homossexuais
Por Ana Karoline Silano, Bruno Fonseca, Agência Pública
“Existe muito em prol de se tornar natural o que não é natural. Mas ninguém está dizendo para você que você pode decidir não continuar com esse estilo de vida”, sugere Deuza Avellar, psicóloga, membro da Primeira Igreja Batista de Curitiba e autointitulada “ativista pró-família”, em um vídeo gravado em uma bucólica fazenda no interior do Paraná. De blusão roxo, ela se senta entre dois homens que compartilham seu testemunho: ex-homossexuais que, com ajuda religiosa e psicológica, abandonaram o “estilo de vida” e se converteram em pastores evangélicos. “Se você acha que é [homossexual], eu digo que você está. Não é uma condição permanente”, garante a psicóloga.
O vídeo é apenas um entre vários conteúdos compartilhados por Deuza ao longo de anos de militância pelo tratamento psicológico para lésbicas, gays, bissexuais e transexuais se tornarem ex-homossexuais. A novidade é que, agora, ela é vice-presidente de uma chapa que concorre ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) e que tem como um dos principais objetivos mudar a regulamentação profissional para permitir que psicólogos ofereçam o tratamento.
O grupo de Deuza, chamado Psicólogos em Ação, resumiu as principais propostas da chapa em um panfleto com dez medidas, segundo eles, para acabar com o aparelhamento ideológico do CFP. Entre as promessas da chapa, está a revogação de duas resoluções do conselho que proíbem tratamento de conversão a pessoas LGBTQI+: a primeira, de 1999, que determina que “psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”; e a segunda, de 2018, que reforça a proibição a “terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero”, além de proibir “qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travestis”.
Além da campanha nas redes sociais, no início deste mês, membros dos Psicólogos em Ação se encontraram com a pastora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Deuza e outros psicólogos reuniram-se com Damares a pretexto de apresentar o “Movimento Ex-Gays do Brasil”, organização recém-criada que diz ajudar “pessoas convertidas ao evangelho de Cristo, que por convicção espiritual nesse processo não mais desejam caminhar na homossexualidade”.
No final de 2018, foi Deuza quem apresentou Damares ao público do congresso Sexualidade e os Desafios da Igreja, da Primeira Igreja Batista de Curitiba. Durante o evento, aos gritos de “é guerra”, Damares afirmou existir “um monte de mulher-pirata no Brasil, que não têm útero, não têm vagina, que estão se dizendo mulher”.
A Agência Pública questionou o ministério de Damares sobre a agenda do encontro e se o ministério está desenvolvendo alguma ação ou programa que contemple o movimento de ex-gays. A reportagem perguntou também à ministra qual a sua posição sobre “terapias de reversão” e sobre a criminalização da homofobia pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nenhum dos questionamentos foi respondido até a publicação da reportagem.
A Pública procurou também a Secretaria de Proteção Global – pasta indicada por Damares para lidar com demandas LGBTQI+ –, que confirmou que seu secretário-adjunto, Alexandre Magno, reuniu-se com o movimento de ex-gays. Segundo a assessoria, o grupo pediu “garantia de direitos e reconhecimento para que a nomenclatura ex-gay seja reconhecida sem serem ridicularizados ou perseguidos” e “relatou que sofre perseguição e recebe ameaças nas redes sociais”. A secretaria acrescentou que “em nenhum momento da reunião foi tratado sobre cura gay, a pauta principal era liberdade de expressão”. O titular da secretaria, o secretário nacional de Proteção Global, Sérgio Queiroz, é pastor da Primeira Igreja Batista de João Pessoa, mesma denominação de Deuza.
Deuza foi procurada pela reportagem também para falar sobre sua participação no Movimento Ex-Gays do Brasil e sobre as reivindicações do movimento ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A Pública perguntou à psicóloga se, caso levem à frente a proposta de derrubar as resoluções do conselho, haveria alguma regra ou protocolo para as terapias de reversão ou uma idade mínima para alguém passar por essas terapias. Por fim, a reportagem indagou se as terapias de reversão funcionam apenas para homossexuais insatisfeitos ou servem também para heterossexuais que não desejam mais ser heterossexuais. Nada foi respondido pela psicóloga.
Grupo de psicólogos pediu fim do CFP e apoiou Bolsonaro
A titular da presidência na chapa em que Deuza é vice, Psicólogos em Ação, é Rozângela Justino, outro nome conhecido pela militância em prol do tratamento psicológico para pessoas LGBTQI+. Membro da Igreja Presbiteriana, ela foi censurada em 2009 pelo CFP justamente por oferecer terapias em desacordo com a regulamentação profissional. Rozângela então entrou na Justiça para derrubar a resolução de 1999, a que proíbe aos psicólogos o “tratamento e cura das homossexualidades”. Em 2017, ela obteve do juiz de primeira instância da 14ª Vara Cível de Brasília, Waldemar Cláudio de Carvalho, uma liminar que liberou o tratamento de LGBTQI+, que só foi derrubada em 2019 pela ministra Cármen Lúcia, do STF.
Em carta divulgada pelos Psicólogos em Ação em julho deste ano, o grupo chegou a pedir a extinção das autarquias federais, o que incluiria o CFP e todos os conselhos regionais – cada estado possui o seu conselho representante. De acordo com a chapa, todos os conselhos se “prestam a financiar políticas da esquerda” e “há 30 anos trabalham pela desconstrução de todo sistema de crenças e valores sociais”.
Além de criticarem as resoluções que barram tratamento de conversão a LGBTQI+, os Psicólogos em Ação colocam como meta zelar pela imparcialidade e apartidarismo do conselho. Deuza, contudo, é autora de uma série de postagens de apoio ao então candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL).
A chapa Psicólogos em Ação também se posiciona contra a “destruição da infância e da família” e diz que irá promover “o debate interno acerca de temas polêmicos e que ainda não tenham o respaldo científico com especialistas que defendam seus posicionamentos com embasamento científico”, entre outros pontos.
“A psicologia, neste momento, está sob forte ataque de setores que querem uma psicologia pra chamar de sua, para que ela corrobore as suas ideologias”, critica o atual presidente do CFP, Rogério Giannini. Na visão do psicólogo, grupos de orientação religiosa têm utilizado argumentos pseudocientíficos para cooptar as práticas psicológicas – e o principal alvo é o próprio conselho. “Tratando as sexualidades como desvio ou doença, elas se tornam passíveis de serem reorientadas […]. Assim, o CFP talvez seja a mais importante entidade para esses grupos, porque o conselho normatiza a profissão, fiscaliza e orienta a atividade profissional. São essas atribuições que são disputadas”, aponta.
A Pública questionou Rozângela sobre quais seriam as regras para terapias de mudança de orientação sexual de LGBTQI+ e sobre a fundamentação científica das práticas que ela oferece e quais autores ou escolas são utilizados para embasar os métodos de reversão. Não obteve resposta da candidata à presidência do conselho.
A nova roupa da “cura gay”
O discurso de Rozângela em defesa do tratamento de pessoas LGBTQI+ não é mais aquele de 2008, em que, em um seminário sobre influência da pornografia no abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes na Câmara dos Deputados, chegou a afirmar categoricamente que “os travestis e muitas pessoas que desenvolveram a homossexualidade sempre têm uma experiência de abuso sexual”. A psicóloga ainda acrescentou que “a homossexualidade pode ser um transtorno de orientação, de comportamento ou de preferência sexual, e pode haver vários transtornos junto com a homossexualidade”, disse.
No ano seguinte, em entrevista à Folha de S.Paulo, Rozângela Justino referiu-se claramente ao homossexualismo [sic] como “uma doença”. “E uma doença que estão querendo implantar em toda a sociedade”, disse na entrevista, em que voltou a associar a homossexualidade ao abuso sexual contra crianças e disse haver “uma ditadura gay” e uma “Santa Inquisição para heterossexuais”.
Mais recentemente, a psicóloga passou a afirmar que não considera a homossexualidade uma doença e a questionar quem chama seu tratamento de “cura gay” – Rozângela chegou a processar a Rede Globo pelo uso do termo em reportagens no Jornal Nacional e do Fantástico, em 2017. O juiz Julio Roberto dos Reis, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, condenou a emissora a pagar R$ 170 mil em indenização por danos morais ao grupo de psicólogos.
Em um vídeo postado em julho deste ano, em campanha para eleição ao CFP, Rozângela disse que nunca prometeu cura de “transtorno psicológico, desordem mental ou disforia”, mas que ex-gays existem: “Basta acessar na internet e vocês irão constatar a existência de pessoas que deixaram o comportamento homossexual” e “que estão livres da atração sexual indesejada por pessoas do mesmo sexo”.
O termo técnico utilizado por Rozângela e Deuza, que se apresentam como psicólogas cristãs, para defender o tratamento para LGBTQI+ é: “egodistônico”. Segundo elas, os homossexuais egodistônicos estão em conflito com o desejo por uma pessoa do mesmo sexo e querem ressignificar esse desejo, para acabar com um sofrimento psíquico intenso que pode gerar quadros de depressão, ansiedade e outros.
Para a maioria dos pesquisadores, críticos às “terapias de reorientação”, é justamente essa tentativa de combater o desejo que causa o sofrimento. Um estudo focado em jovens lésbicas, gays e bissexuais feito pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos, mostrou que esse grupo tem uma propensão cinco vezes maior ao suicídio que pessoas heterossexuais – mas o fator determinante é justamente o suporte social e familiar que esses jovens recebem. O estudo destacou que os riscos a problemas psíquicos não estão associados à sexualidade em si, mas sim a como as pessoas ao redor tratavam os jovens por conta da sua sexualidade.
“[O conceito de egodistônico] é genérico e daí cabe qualquer coisa. É uma visão muito antiga”, afirma João Fortes, psicólogo e presidente da chapa Fortalecer a Profissão, que concorre com a Psicólogos em Ação. “Nós podemos ser procurados por pessoas que estão se questionando sobre a sexualidade e trabalhar essas questões, que são apresentadas pelo próprio paciente. O que nós não podemos é desviar o foco desse tema, tentando desfocar o tema para não falar o que realmente é pregado: a cura gay”, declara. Para ele, os defensores das terapias de reversão não possuem respaldo científico e misturam religião à profissão.
O CFP produziu uma pesquisa que reuniu relatos de pessoas LGBTQI+ que passaram por situações de preconceito, abandono e terapias de reversão. Entre os casos apresentados há o uso de argumentos religiosos por profissionais da psicologia com o objetivo de provar que suas sexualidades estavam “erradas”, além de induzirem os pacientes a acreditar que ser gay é sinônimo de infelicidade.
Violações de direitos humanos
Em 2017, o psicólogo Fillipe Mello participou de uma série de fiscalizações do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais em comunidades terapêuticas no estado. Entre as várias violações de direitos humanos constatadas nas visitas, há relatos de uma mulher transexual que teve suas roupas femininas proibidas enquanto o pastor tentava convencê-la de que aquele comportamento era fruto de uma possessão de espírito maligno ou “pombagira”.
“De um modo geral, o que mais nos espanta é como o lugar da diversidade sexual é visto pelos proprietários dessas entidades. O sujeito já está ali fragilizado pelo uso prejudicial de uma substância. Nós temos um problema sério, não está colocada uma questão de cuidado, mas uma questão moral, de preconceito”, avalia o psicólogo.
“Eu me sentia como uma panela de pressão e o meu medo era como eu ia explodir”
“A pastora lésbica” é o apelido da pernambucana Lanna Holder, que está à frente de uma igreja evangélica inclusiva no centro de São Paulo. Suas palavras de acolhimento e suas ações de apoio à comunidade LGBTQI+ não dão pistas de que Lanna passou mais de dez anos buscando “se curar”. “As pessoas que pregam o evangelho são sempre muito enfáticas: você ser gay vai te levar ao inferno. E eu não queria ir para o inferno. Então, eu disse para mim mesma: “O que eu tiver que fazer para não ir para o inferno, eu vou fazer”.
Lanna diz que a igreja evangélica costuma olhar a homossexualidade sob duas perspectivas: doença, para as neopentecostais, ou demônios, para as pentecostais. Foi sob essa ótica de “tratamento” que Lanna viveu por sete anos: a do demônio. Ela passou por incontáveis jejuns, orações e missões dadas pelos pastores que juravam que, se cumprisse o que era dito, ela seria “liberta do demônio”. Lanna seguiu todos os passos e mesmo assim sua orientação sexual não mudava – ela aprendeu a contê-la. “Eu me lembro de, naquela época, me sentir como uma panela de pressão que poderia explodir a qualquer momento. Eu sentia que minha sexualidade estava numa panela de pressão e eu tinha muito receio de como aquilo iria explodir”, ela conta.
Lanna chegou a se casar com um homem para ajudar no processo de “cura” e, de quebra, satisfazer a igreja, que sempre buscava provas de sua “libertação”. “Foi um processo que eu levei muito a sério. Eu me dediquei muito, porque eu realmente não queria ir para o inferno. Eu me converti aos 21 anos e, até eu entender que minha sexualidade era uma bênção divina, não teve um dia da minha história que eu não pensasse e sentisse medo de ir para o inferno por ser quem eu era.”
Nada surtia efeito. A igreja, contudo, também tinha uma resposta para isso: “Se você fez tudo certo, se dedicou e o demônio não saiu, então isso é um espinho. Um espinho que você tem que lidar para o resto da vida”, ela relembra. Lanna decidiu que viveria com esse espinho, lutando contra e contendo sua sexualidade até o fim da vida.
Com quatro anos de casada, porém, Lanna conheceu Rosania Rocha. E a panela de pressão explodiu: “E aconteceu da pior maneira possível. Eu era casada, ela era casada. Eu já tinha um ministério. Já tinha rodado meio mundo dizendo que tinha sido curada”. Sem conseguir esconder sua sexualidade, Lanna perdeu tudo que tinha construído na igreja. Na época, nem sequer o relacionamento entre as duas deu certo.
Sem ministério e sem Rosania, Lanna se manteve afastada da igreja por um ano. “Eu abri mão de tudo porque eu não conseguia mais ficar fingindo ser uma coisa que eu não sou. Eu abri mão do que eu mais amava, que era pregar o evangelho” – e foi isso que a levou de volta à igreja. Dessa vez, a neopentecostal. O diagnóstico da igreja: ela estava doente. “O tratamento, nesse caso, é muito mais requintado que o anterior. Falar sobre demônios é muito mais radical, bruto, sem muita explicação que faça sentido. Nesse novo tratamento, havia uma explicação”, conta.
Lanna então escutou o que muitos LGBTQI+ escutam sobre a “origem” de suas sexualidades: elas nascem de traumas e abusos da infância. A igreja afirmava que, por Lanna ter pais separados e ter sido criada pelos avós, ela havia sofrido um desvio na sua sexualidade. “Nunca foi um tratamento formal. Eram pessoas que tinham formação em psicologia, mas que tinham uma linguagem mais espiritualista. Por exemplo, eles indicam ‘fulana’ e avisam: ‘Olha, ela é psicóloga, mas vai te ajudar espiritualmente; você vai fazer uma regressão, uma cura interior, um desligamento de alma’. Usando essa linguagem mais espiritualista mesmo”, relembra.
Mas a essa altura, com 30 anos, Lanna já conhecia muito bem o evangelho e não aceitava respostas sem questionar. E foi assim que ela descobriu a teologia inclusiva. Embora continuasse se aconselhando para a “cura”, estudava sobre um evangelho que aceitasse pessoas LGBTQI+. “Eu tinha medo. Não queria aceitar a teologia inclusiva apenas porque agradava meus desejos. Queria ter certeza de que aquilo era real, era o que Deus queria de mim”, repetia, enquanto se mantinha mais quatro anos em tratamento.
Depois de um coma, causado por um acidente de carro, Lanna narra ter vivenciado um “encontro com Deus” que a fez entender que sua orientação sexual não a levaria ao inferno. “Eu descobri que Deus me aceitava, me amava. E eu tinha que dizer isso pra todo mundo!” Assim nasceu sua igreja, a Cidade do Refúgio, que dirige ao lado de Rosania – hoje, sua esposa. Elas se reencontraram depois de anos separadas e seguem juntas, fazendo da sua missão acolher pessoas LGBTQI+ que não querem abandonar a religião.
A pastora é contra as terapias de reversão porque afirma que são um risco para a saúde física e emocional. “Se liberarem essas terapias, quais serão os limites? Pais vão colocar seus filhos menores em clínicas? Que tipo de terapias são essas? Isso não é a pessoa exercendo o livre-arbítrio, e é isso que mais me preocupa”, critica. Como a maior parte do seu público na igreja é LGBTQI+, Lanna vê de perto o resultado dessas terapias: “Não funciona. Se a pessoa é gay, ela não vai mudar. Eu conheço muitos que passaram pela ‘cura’, se diziam curados, mas não aguentaram muito tempo. Essas pessoas, assim como eu, tiveram que assumir que nunca deixaram de ser gays. Isso deixa marcas para o resto da vida”, conclui.
LGBTQI+: Lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, queer e intersex, entre outros gêneros e orientações sexuais.
Colaborou: Caroline Ferrari.
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Imagem: Ao lado de Deuza Avellar, Damares participou de congresso sobre sexualidade da Igreja Batista — no evento, a ministra chamou mulheres sem útero e sem vagina de “mulheres-pirata” – Igreja Batista de Curitiba/Reprodução