Se a casa era grande, por que ter senzala?[1]: O capitaloceno e antropoceno se realimentam[2] !?

Nilma Bentes [3]

Quando jovem, sob ataque constante do racismo, ficava enraivecida diante do que considerava uma injustiça cruel e tentava achar algum jeito de neutralizar uns sentimentos até autoaniquiladores. Penso que qualquer ativista do movimento negro é  sobrevivente pois participar de um, ainda,´exército de pretaleone´,considerando que mais de cem milhões compõem a população negra no Brasil e é desafiador atender,  simultaneamente,  as necessidades da dimensão individual e as de um coletivo subalternizado há séculos – ´ escravizaceno´ acabou?.

Lembro também de que membros de partidos “progressistas” conseguiam explicitar o combate ao apartheid na África do Sul mas  invisibilizavam o daqui. Discriminavam a gente e insinuavam que os movimentos eram divisionistas – racismo e machismo. Aliás, ainda hoje algumas pessoas falam que lutas identitárias só colaboram é com o neoliberalismo.  Por outro lado, ouvir falar sobre modelo chinês/Maoismo; Albanês;  Soviético; Zapatista; Cubano e outros, quase sempre me levava ao  pensamento sobre qual deve ser o nosso? Será que construir modelos já não é reduzir, fixar demais?  Será que não há possibilidade de um pensar um agir  mais abrangente? Será que a conjugação de várias experiências não serviria para apoiar a construção de uma sociedade igualitária verdadeira, interligada e respeitando a diversidade?

No ´antro-capitaloceno´ que vivemos, o qual  alonga e aprofunda as desigualdades sócio-raciais, de gênero e outras,  e que no Brasil provoca  maiores  prejuízos sócio-econômicos-culturais-ambientais  às populações negra e indígenas, acredito  justo e legítimo que queiramos entrar para o rol dos protagonistas de ´ destinos ´.   Estando na ala das pessoas adeptas à conversações  sobre caminhos  para abreviar o capitaloceno,  creio ser necessário pactos, sobretudo, com a participação consciente dos segmentos mais prejudicados – não como no processo ´ exclusão participativa ´[4].

Propostas interessantes estão ligadas ao estímulo à articulações de princípios/ ideias/práticas que, holisticamente se interpenetram, como por exemplo: a) Filosofias do continente africano, inclusive Ubuntu; b) Teko Porã/ Sumak Kawsai/ Qamaña, que também dão lastro ao “ Bem Viver”; c) Decrescimento; d) Quilombismo; e) Feminismos adjetivados: Eco-feminismo, Feminismo Negro; Feminismo Popular, Feminismo Comunitário, Feminismo Periférico, conjugando consubstancialidade – interseccionalidade; f) Ecossocialismo/Ecosocialismo; g) Afro-negras-amazonidades/Florestania; h) Socialismo Marxista-Marxiano e/ou outras propostas ´alterativas´ e/ou ´alternativas´ a este sistema capitalista triturador/devorador não só de seres humanos, mas da natureza como um todo. Capitalismo é bom para capitalistas.

A sugestão não é ´ fazer uma sopa ´ e sim de ´ articular ´ diversas ideias, para eliminar ou reduzir ao mínimo as desigualdades. Segue sinalizações, em forma de indagações genéricas, sendo que, provavelmente, alguns aspectos são mais pertinentes à situações dos países do Norte e outras às dos do Sul, mas que se interligam e se realimentam, mesmo quando apontam mais para problemas do meio urbano que agrário, pois a ´ gestalt ´ atinge a todos. Antigas questões mas para fazer ´ menos do mesmo ´[5] :

1) É possível se pensar e criar mecanismos para eliminar a pobreza material sem alterar a riqueza?
2) Quando falam em crescimento/desenvolvimento, quem se beneficia concretamente disso?
3) Pode haver crescimento infinito com recursos finitos?
4) É justo privatizar subsolo, solo, água e outros recursos do planeta Terra?
5) No Brasil existem empresas-familiares detendo milhares de hectares de terra, ao mesmo tempo que existem famílias sem terra, sem teto. Há justiça nisso?
6) Como pode haver justiça social se os chamados meios de comunicação de massa (TV, sobretudo) que influenciam decisões da maioria, que não teve oportunidade de usufruir da possibilidade crítica de ir para além do chamado ´ senso comum ´ (criado inclusive por essa mesma mídia), estão nas mãos de, não mais, que dez famílias?
7) Como neutralizar o tal princípio da distração, o poder do escândalo, os quais, entre outras coisas, cultivam a violência como ´ entretenimento ´ (séries policiais/criminais, made in USA, sobretudo) e noticiários sanguinolentos para ´ animar ´ a população de baixa renda, aos sons das buzinas de ambulâncias, viaturas e carros de bombeiros?
8) Como impedir os fortes estímulos à competição desenfreada (competição até entre crianças de tenra idade) ;
9) Como neutralizar o estímulo ao consumismo, às compras compulsórias, exacerbadas, alimentadas , principalmente pela publicidade corporativa, que faz inclusive através de embalagens coloridas que consumamos bens deletérios à quantidade e qualidade de nosso viver;
10) Como eliminar enormes desigualdades no campo do trabalho, emprego, geração de renda, existindo um enorme segmento dos ´ sem renda ´, ´ renda familiar mínima( aquém de garantir um viver com qualidade), coexistindo com os de salários estratosféricos (desportistas/jogadores de futebol, CEOs – Corporações, por exemplo)? Deve ter salário mínimo e salário máximo?
11) Como repensar o Estado (uns acham que deve ser eliminado), para que seja mais solução do que problema no processo ligado à eliminação de desigualdades?
12) Como impedir a continuidade da indústria da morte – armas, embarcações nucleares, aeronaves de guerra e outras?
13) Como paralisar a exploração deletéria de recursos da natureza que ameaçam o viver no planeta, alterando matrizes energéticas destruidoras da natureza humana e inumana ( nuclear, ´ sol artificial ´, combustíveis fósseis, grandes hidrelétricas e outras );
14) Como resolver a crise da mobilidade urbana onde se fica 2 a 4 horas em engarrafamentos e/ou se leva 4 a 5 horas para se chegar ao trabalho, agudizando problemas ambientais, até pelo uso de combustíveis vindo de recursos não renováveis?
15) Como impedir que o agronegócio (inclui extrativismo/monocultivo) centralize/privatize ´ bens comuns ´ (terra, água, florestas, etc.), recursos que são da humanidade;
16) Como paralisar a degradação da natureza, sobretudo, nos países do Sul, via extrativismo-agroexportador para garantir empregos-acumulação de riquezas nos países do Norte ?

17) Como convencer os países a priorizar o incentivo de mudanças culturais que valorizem/priorizem conviver coletivo, solidário: hortas comunitárias, cozinhas e lavanderias coletivas (públicas e em escolas); compartilhamento de espaços?
18) Como fazer os países responsáveis pela escravização de humanos, colonização arrogante, predatória, reconheçam que, pela histórica opressão (inclui expansionismo atual ), são responsáveis pela crise migratória?
19) Como fazer reconhecer que o trabalho não pago – inclui o de cuidados -, faz parte do processo de acumulação capitalista?
20) Como impedir que a ONU[6] continue a ser, principalmente, um braço dos países ditos desenvolvidos? Pode ela conduzir um processo voltado a conseguir um maior equilíbrio e justiça neste mundo? Será necessária a criação de outro órgão com abrangência maior?

Tudo isso é muita ingenuidade? Em algum tempo a humanidade será capaz de deter a insanidade e violência de acumuladores de privilégios, cuja ganância e insensibilidade alcança níveis não imaginados por uma grande parte da desta mesma humanidade, cuja fé religiosa não a deixa acreditar que ela própria pode se tornar tão replicante quanto os replicantes sem emoção, de filmes ficcionais.

Será que cada ´ Casa Grande ´ do Norte, do Sul, do Leste ou do Oeste, continuará tendo a sua Senzala? É difícil adivinhar qual raça será extinta quando for viabilizada a fabricação de humanos, através da engenharia genética?

Creio que vale a pena citar, mesmo que já bastante citada: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” [7]

Amazônia-BR-setembro/2019


[1] Frase atribuída a cartunista  Henfil, sem referências bibliográfica, no momento.

[2]Ver inclusive   Astrid Ulloa   

[3] Ativista do Negritando, usando aqui, desde o título, um bom ´pretuguês´ (Lélia Gonzalez, citando autor lusófono, segundo Jurema Werneck-Criola).

[4] Tipo audiências públicas para validar exploração – citação num folheto da FASEFederação de Órgãos para Assistência Social e Educacional

[5] Relacionado à  Ulrich Brand, livro “ Pós-extrativismo e descrescimento” –Saídas do labirinto capitalista.

[6] Organizações das Nações Unidas

[7] Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano in ‘Las palabras andantes?’ de Eduardo Galeano. publicado por Siglo XXI, 1994.)- https://www.revistaprosaversoearte.com/para-que-serve-a-utopia-eduardo-galeano/

Foto: Getty Images

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