Descrito por indígenas do povo juruna como “o ano do fim do mundo”, 2016 marcou o início do desvio de parte do rio Xingu para alimentar a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.
por João Fellet, em BBC Brasil
A obra rachou a comunidade, reduziu drasticamente a vazão das águas na região da Volta Grande do Xingu, onde ficam suas aldeias, e foi acompanhada por uma disparada nos índices de desmatamento e de violência na região.
Mas, se a construção simbolizou o fim de uma era para os jurunas da Volta Grande, ela também marcou o início de sua reaproximação com membros da etnia de quem estavam separados há quase um século e por mais de mil quilômetros, desde que os parentes se refugiaram no atual Território Indígena do Xingu, em Mato Grosso.
A retomada dos laços desencadeou um processo de resgate linguístico e de tradições ancestrais – perdidas pelo grupo da Volta Grande, mas mantidas pelo grupo de Mato Grosso, que ficou menos exposto a pressões da sociedade envolvente após a separação.
“Nós perdemos a cultura, mas preservamos o território, e nossos parentes do Mato Grosso perderam o território, mas preservaram a cultura”, diz à BBC News Brasil Giliarde Juruna, cacique na aldeia Miratu da Terra Indígena Paquiçamba, que concentra parte do povo que ficou na Volta Grande, a terra ancestral da etnia.
A partir de 2011, a comunidade passou a usar parte da verba que recebe como compensação por Belo Monte para promover intercâmbios com o grupo de Mato Grosso, mais conhecido pelo nome yudjá.
Desde então, as famílias da Volta Grande ganharam algumas pessoas fluentes na língua ancestral, retomaram a tradição de pinturas corporais e suas crianças voltaram a ser batizadas com nomes como Awãkayu e Maykawá (meninos) e Kianayu e Iankurishy (meninas).
A reaproximação, porém, envolveu estranhezas. Nem todos os costumes dos yudjá agradaram aos jurunas da Volta Grande – que, numa via de mão dupla, também passaram a influenciar o modo de vida da outra comunidade (leia mais abaixo).
‘Os donos do rio Xingu’
A relação dos jurunas com a Volta Grande remonta a tempos imemoriais. Canoeiros, eles se consideram “os donos do rio Xingu” e já foram o povo indígena mais numeroso da região.
O avanço de colonizadores pela Amazônia, no entanto, quase levou a etnia à extinção. De 2 mil membros, em 1842, eles encolheram para 52, em 1916, dizimados por epidemias e escravizados para trabalhar em seringais.
Em 1920, Curt Nimuendajú – etnólogo alemão que viveu mais de 40 anos no Brasil – fez um relato em carta ao Serviço de Proteção ao Índio, órgão antecessor da Funai:
“Os Juruna, antigamente a tribo mais importante do Xingu, sofreu todo o peso do avanço dos seringueiros. Especialmente o pessoal do coronel Tancredo Martins Jorge, na boca do rio Fresco, cometeu, do assassinato para baixo, toda sorte de crimes contra estes pobres, até que eles se revoltaram e fugiram, chefiados pelo seu tuxáua (chefe) Máma (…).”
Composto por 40 pessoas, o grupo em fuga gerou a comunidade yudjá de Mato Gosso. Para chegar à nova morada, eles remaram rio acima uma distância equivalente à que separa Belo Horizonte de Florianópolis, vencendo corredeiras e cruzando áreas de povos inimigos.
Mas Nimuendajú ignorava que um grupo de 12 jurunas havia permanecido no território original, próximo à cachoeira do Jericoá, dando origem à comunidade atual da Volta Grande.
Urbanização e miscigenação
O grupo em Mato Grosso teve de se adaptar a um ambiente distinto, mas conseguiu evitar contatos tão intensos com o mundo dos brancos. Eles mantiveram a língua e tradições únicas – como o taratararu, tipo de clarinete feito de bambu – e hoje somam 248 membros.
Já os que ficaram na Volta Grande “tiveram de se misturar para sobreviver”, diz à BBC News Brasil Bel Juruna, uma das integrantes do grupo. A comunidade hoje tem cerca de cem pessoas na Terra Indígena Paquiçamba, além de outras dezenas em áreas vizinhas.
Em meio à forte urbanização na região – impulsionada pela construção da rodovia Transamazônica, nos anos 1970 -, os jurunas da Volta Grande se casaram com ribeirinhos e indígenas de outras etnias. Incorporaram vários itens do mundo branco, como a língua portuguesa, e passaram a ser vistos como “índios aculturados” pela sociedade envolvente.
Giliarde Juruna descreve os efeitos desse processo em sua família. Sua avó, segundo ele, era “uma índia pura” que se casou com um homem branco. Ela foi a última parente a falar a língua juruna na região, até ser obrigada a abandonar o idioma, nos anos 1970.
Ao crescer, Giliarde só falava português com os pais e até chegou a aprender um pouco de kayapó com indígenas xikrin da região. Só nos últimos anos passou a ouvir a língua juruna em casa, agora falada fluentemente por três filhas que fizeram intercâmbio recentemente com os yudjá.
Constituição de 1988
O movimento de “retorno às origens” descrito pelos jurunas da Volta Grande foi catapultado por dois acontecimentos. O primeiro foi a promulgação da Constituição de 1988, que acelerou a demarcação de várias terras indígenas pelo país.
Após a aprovação da Carta, vários indígenas que viviam em Altamira passaram a se declarar jurunas e a voltar para a região que se tornaria a Terra Indígena Paquiçamba.
Além de buscar a demarcação de seus territórios, as comunidades nativas também começavam a se articular para discutir intervenções do governo na Amazônia – tema do 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira, em 1989.
Já naquela época autoridades pretediam erguer na região a usina de Belo Monte, inicialmente batizada de Kararaô.
Um dos representantes do governo no encontro, o engenheiro José Antônio Muniz viu a jovem Tuíra Kayapó se aproximar da mesa com um facão, encostando a lâmina várias vezes em seu rosto.
A imagem correu o mundo e sinalizou que os indígenas não aceitariam passivamente os planos das autoridades. Belo Monte só sairia do papel mais de 20 anos depois, executada pelos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, do PT.
Impactos de Belo Monte
Os preparativos para a obra, nos anos 2000, voltaram a mobilizar indígenas xinguanos e aceleraram o processo de “resgate cultural” dos jurunas, bem como de outras etnias que também chegaram a ser consideradas extintas, como os xipaya e os kuruaya.
Em entrevista à época, Eduardo Viveiros de Castro, professor de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), comentou o fenômeno. “Os índios da Volta Grande estavam cada vez mais esquecendo que eram índios. Com Belo Monte, descobriram que juridicamente são índios e passaram a lutar por seus direitos.”
O estudo ambiental de Belo Monte tratou os jurunas e os araras da Volta Grande como os grupos indígenas mais impactados pela obra, pois o desvio das águas diminuiria sensivelmente o fluxo do rio em suas aldeias.
A Norte Energia, consórcio responsável pelo empreendimento, passou então a negociar compensações financeiras com os grupos, gerando graves cisões nas comunidades.
Moradores descontentes com as negociações fundaram novas aldeias para ter suas demandas atendidas. Os jurunas de Paquiçamba, que antes de Belo Monte viviam todos juntos, se dividiram em quatro grupos.
Foi nesse contexto que um parente propôs usar o dinheiro da compensação para custear uma reaproximação com os yudjá. “Foi a única coisa boa que Belo Monte nos trouxe”, diz Bel Juruna.
Ela conta que, quando a ideia veio à tona, muitos nem sabiam da existência do grupo. Desde os anos 1990, os parentes haviam abandonado o nome juruna – provavelmente cunhado por outros grupos indígenas – e passado a se identificar como yudjá.
Os jurunas então organizaram uma viagem inicial para visitar os yudjá e apresentar a proposta de intercâmbio, em 2011.
“Foi muito bom”, lembra Bel, que diz ter sido recebida “como alguém que é da família”. Ela logo percebeu um traço que, apesar da ruptura, continuava a unir os grupos: o apreço por bebidas alcoólicas.
Os visitantes foram recebidos com baldes de caxiri, berbida fermentada à base de mandioca. “Deve ser uma coisa genética”, conta Bel, aos risos.
Ela afirma que os yudjá concordaram com o plano de intercâmbio e se prontificaram a enviar um casal para passar uma temporada na Volta Grande ensinando a língua e tradições aos parentes.
Questão de gênero
Os jurunas da Volta Grande aguardaram o casal com grande expectativa. Quando a dupla chegou, porém, a missão se revelou mais complexa do que se imaginava.
O homem falava português e deu um curso introdutório sobre a língua juruna. Mas a mulher só dominava o idioma nativo, o que dificultava a transmissão de conhecimentos que, na cultura da etnia, são restritos ao universo feminino.
Somente as mulheres jurunas sabem fabricar caxiri, trabalhar com argila e fazer as pinturas corporais características do grupo. Somente elas dominam as técnicas para o cultivo da mandioca e a torra da farinha, entre tantos outros saberes.
O grupo da Volta Grande percebeu que, para realmente absorver os ensinamentos, teria de enviar suas mulheres para conviver por longos períodos com as yudjá.
Em sua primeira visita aos parentes, Bel já havia notado o domínio que as mulheres exercem na cultura local. Mas ela também achou que as mulheres ficavam sobrecarregadas com tantas atribuições.
“As mulheres lá trabalham muito, e os homens trabalham muito pouco. Eles têm direito de sair para a cidade para estudar; as mulheres, nem tanto”, conta.
Bel diz que o cenário começou a mudar conforme as parentes passaram a hospedar jovens jurunas da Volta Grande, que estariam influenciando uma nova divisão de tarefas na comunidade.
“Creio que (a disparidade entre homens e mulheres) já está se equilibrando, porque o contato, a presença das nossas meninas juruna lá fortalece as mulheres de lá”, afirma.
Cultura em movimento
Os jurunas da Volta Grande buscavam recuperar sua cultura original com os intercâmbios. No processo, porém, descobriram que nem todos os costumes dos yudjá se encaixavam em seus modos de vida – e que a cultura dos parentes nunca estivera congelada.
Uma das novidades presenciadas pelos jurunas nas visitas foi o consumo de ayahuasca entre os yudjá. Os yudjá incorporaram a bebida – feita com plantas amazônicas e popularmente conhecida como chá do Santo Daime – após contatos com indígenas do Acre e com adeptos da religião União do Vegetal na cidade de Alta Floresta (MT), nos últimos anos.
Após ouvir relatos de pessoas que teriam visto “almas” ao ingerir a bebida, Bel diz ter desistido de prová-la. “Não tive coragem”, conta.
O intercâmbio segue a todo vapor. Bel diz que as jurunas que passaram temporadas entre os yudjá estão repassando seu aprendizado às crianças da Volta Grande. No futuro, há planos de ensinar a língua ancestral nas escolas.
Segundo Bel, cerca de 50 jurunas da Volta Grande já visitaram os yudjá, e uns 70 yudjá já passaram temporadas na Volta Grande.
Ela conta que os parentes costumam visitá-los no inverno, quando o Xingu enche e a pesca se torna mais difícil. “Eles passam necessidade e ficam isolados. Quando vêm para cá, gostam do movimento: vão para a cidade, querem ver jogo de futebol”, diz.
Bel afirma que os parentes são gratos aos jurunas por terem permanecido na terra ancestral da etnia, apesar de todas as pressões. “Eles falam bastante que o território deles é na Volta Grande. Eles não têm culpa de ter subido (o rio), e nós não temos culpa de ter perdido tanta cultura.”
Segundo Bel, os yudjá também lamentaram quando as águas do Xingu na Volta Grande passaram a ser desviadas para alimentar Belo Monte, em 2016, embora hoje vivam longe do território ancestral e não tenham sido impactados pela construção. A usina deve atingir sua capacidade máxima até o fim de 2019.
Bel diz que, após a inauguração, a vazão do rio tem diminuindo progressivamente e hoje se tornou “um fiozinho d’água”.
A comunidade ainda tem conseguido pescar, porque há muitos peixes nos trechos que ficaram rasos. Mas há temores de que a menor vazão impeça os animais de acessar os locais de desova para se reproduzir.
Revisão da licença
Os impactos gerados pelo desvio das águas fizeram o Ministério Público Federal (MPF) recomendar a revisão da licença ambiental de Belo Monte, no início de setembro.
O órgão defende que haja um aumento da vazão na Volta Grande para evitar “impactos irreversíveis em um dos principais rios da Amazônia”. Na prática, a mudança impediria a usina de operar com potência máxima.
Procurada pela BBC News Brasil, a Norte Energia não se pronunciou sobre o tema.
Em seu site, a concessionária diz que a vazão da Volta Grande foi definida pela Agência Nacional de Águas (ANA) antes do leilão para a construção da usina.
A Norte Energia diz “monitorar os processos ecológicos na Volta Grande do Xingu” e trabalhar junto do Ibama, prefeituras e comunidades locais para implementar “ações que ajudarão a lidar melhor com as alterações” causadas pelo desvio das águas.
Duas culturas, um só povo
Para Bel, sete anos após a reaproximação, os jurunas já percebem que nunca terão a mesma cultura que os yudjá – e tudo bem. A retomada dos laços já rendeu muitos frutos e mostrou que o vínculo entre os grupos jamais foi perdido.
“Os juruna e os yudjá podem ir para onde for, mas eles são o povo do rio”, ela afirma.
Nessa saga, Belo Monte representa um paradoxo. A mesma obra que estimulou a reconexão dos grupos ameaça os modos de vida que os tornam um só povo apesar das diferenças, à medida que a Volta Grande se torna cada vez mais seca.
Bel explica: “Os donos do rio estão sem rio.”
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Giliarde Juruna com o filho Awãkayu (à esq.) e a filha Anita (ou Yakawilu); ela se tornou fluente na língua ancestral do povo após interâmbio com membros da etnia refugiados em Mato Grosso há quase um século LUCAS LANDAU/REDE XINGU +