Damares, Nietzsche e o Museu do Esquecimento. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

O carrasco sempre mata duas vezes, a segunda por meio do silêncio”. (Eli Wiesel)

Mesmo com 80% da obra já concluída, o governo Bolsonaro decidiu extinguir o Memorial da Anistia Política no Brasil. A ministra Damares Alves declarou que “a obra não vai ser entregue à sociedade da forma como foi planejada, ou seja, como memorial”. Em um jogo de palavras sem sentido, alegou ao Ministério Público Federal (MPF) que o projeto é “contraditório nos seus termos”, pois “anistia significa esquecimento e um Memorial da Anistia seria algo como o Memorial do Esquecimento”. Ela precisava definir o que entende por “esquecimento”.

A construção do Memorial foi compromisso firmado pelo Estado brasileiro diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que há mais de dez anos julgou o Caso Gomes Lund e outros e condenou o Brasil por tortura e desaparecimento de presos políticos. A Corte aceitou então, como reparação moral, a proposta brasileira de criar o Memorial. Para cumprir a sentença proferida, o Ministério da Justiça encomendou à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a execução do projeto em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte e o apoio da Caixa Econômica Federal.

As obras iniciadas em 2009 previam a edificação de um anexo e da praça de convivência, além da reforma do prédio da antiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – o “Coleginho” – para abrigar, em suas instalações, mais de 64 mil processos submetidos à Comissão de Anistia, além de arquivos doados por governos e instituições particulares e um arquivo de história oral com entrevistas registradas em áudio e vídeo coletadas por pesquisadores, em articulação digital com outros centros de documentação no país.

Pastoral do esquecimento

A pesquisa histórica e museográfica, a produção do material expográfico e o tratamento do acervo da Comissão de Anistia foram integralmente concluídos. No entanto, a Polícia Federal indiciou na semana passada, quatro professores de história, duas servidoras aposentadas e três estudantes bolsistas, sob suspeita de estelionato, falsidade ideológica, desvio, concussão e prevaricação. Os três bolsistas teriam sido forçados a devolver parte do que recebiam. Dessa forma, embora a situação seja nebulosa, foram igualados diante da opinião pública a praticantes da “rachadinha” como Fabrício Queiroz – o desaparecido, Flávio Bolsonaro e seu irmão Carlos, no Rio de Janeiro.

Para complicar, o prédio do “Coleginho”, com mais de 100 anos, apresentou problemas estruturais, estourando o orçamento. Em seu perfil nas redes sociais, a ministra Damares afirmou que o projeto gastou R$ 28 milhões, o que é negado pelo pró-reitor de Planejamento, Maurício Garcia. Ele indica gastos de R$ 12 milhões, registrados no Sistema Federal Financeiro (SIAF). As obras foram interrompidas em 2016 por falta de repasses, mas a UFMG seguiu à risca as determinações do Ministério da Justiça – declarou ao Globo, na terça (17), a reitora Sandra Almeida.

A ação da Polícia Federal tem repercussão midiática que reforça a decisão do governo Bolsonaro, por razões ideológicas, de não inaugurar o Memorial da Anistia, o que rompe o acordo internacional firmado pelo Estado brasileiro. Outros países mantêm abertos museus e espaços de consciência e de memória como Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Alemanha, o Museu do Apartheid na África do Sul e o Museu da Resistência em Amsterdam. Até mesmo no Brasil, foi criado na sede do antigo DEOPS de São Paulo o Memorial da Resistência, nunca visitado por nenhum ministro de Bolsonaro.

Agora, sua ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, inaugura uma espécie de Pastoral do Esquecimento, para determinar aquilo que o brasileiro deve lembrar e aquilo que deve esquecer, à semelhança da Pastoral do Iletramento de seu colega e pastor Marcelo Crivella, prefeito do Rio, que censurou publicação na Bienal do Livro na semana passada.

A arte de esquecer

Se a ministra Damares conhecesse os escritos de um filósofo alemão do séc. XIX, Friedrich Nietzsche, talvez compreendesse a diferença entre o esquecimento como “força inercial” e o esquecimento como “força ativa”. A noção de “esquecimento ativo” sugere que o esquecimento não é uma doença, uma falha da memória, e sim uma porta de acesso a ela. É importante esquecer, mas para isso é necessário saber. A gente só pode esquecer aquilo que a gente sabe.  São faculdades distintas, mas complementares, que atuam juntas e compõem uma ação afirmadora da vida.

Nietzsche considera que o esquecimento é uma atividade plena, que favorece a ação. A arte de esquecer, se elaborada em sintonia com a lembrança, nos liberta dos grilhões de uma memória onipresente, permite que vivamos o momento atual de forma intensa e nos impele a novas criações. A atividade da memória é relevante, se for desenvolvida de forma a abrir espaço ao esquecimento, que permite o novo. Só assim, ligado à memória, o esquecimento tem um poder transformador. 

O passado não deve agir como uma algema que impede de andar. Um excesso de história limita a ação do ser humano, já que a incapacidade de agir está relacionada à incapacidade de esquecer. É preciso saber esquecer de forma seletiva para viver de forma mais saudável, mas também é preciso saber o que, como e quando lembrar. Nietzsche valoriza o esquecimento, mas não desqualifica a memória, considerando que ambos são forças necessárias para a saúde de indivíduos, povos, culturas. Não se trata de apagar fatos, o que a ministra quer, mas de deslembrar sentimentos.

É isso aí, dona Damares. Perdoar não implica esquecer ou esconder os fatos, que precisam ser conhecidos para serem ou não desculpados. Devemos combater esse tipo de esquecimento, incompatível com as exigências do direito e da moral, o que é o caso da atual política deliberada que extingue o Memorial da Anistia para tentar assim apagar os crimes hediondos cometidos por um Estado todo poderoso contra cidadãos já presos e, portanto, indefesos. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, entre 1964 e 1985 ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, invasão de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, prisões, torturas e maus tratos. Não devemos esquecer essas e outras mortes de militantes políticos.

O silêncio matador

Esse tipo de silêncio, que pretende esvaziar a cachola de acontecimentos históricos, numa espécie de Alzheimer coletivo, longe de contribuir para criação de novos valores e novas formas de viver, mata as vítimas pela segunda vez como disse o poeta e teólogo Eli Wiesel, prémio Nobel da Paz e sobrevivente do campo de concentração nazista de Auschwitz.

Memorial da Anistia em Minas Gerais se inspira no Memorial da  Resistência instalado na sede do antigo DEOPS, construído com a assessoria do Fórum Permanente de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo. A ideia que prevaleceu foi a de não priorizar a tortura, que efetivamente existiu, nem de glorificar os heróis, individualmente, mas de centrar na luta coletiva, articulando as memórias do passado com o presente.

– O Memorial deve mostrar que apesar de toda a barbárie, venceu a humanidade. Derrotamos a ditadura” – diz Alipio Freire, um dos ex-presos entrevistados. A decisão da ministra parece indicar hoje, mais do que nunca, que a luta continua.

P.S. – Uma confissão: Nietzsche não é minha praia. Domino sua obra completa tanto quanto a ministra Damares ou o ministro da Educação Abraham Kafta Weintraub, que não sabem bulhufas. O que nos faz essencialmente diferentes é que convivo no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO, com muitos colegas, entre os quais Jô Gondar e Miguel Barrenechea, que me apresentaram Nietzsche e, evidentemente, não são responsáveis por minhas leituras apressadas dos seus textos. Sugiro aos interessados leitura mais atenta que a minha.

GONDAR, Jô. Lembrar e esquecer: desejo de memória. In: GONDAR, Jô et al. (Org.). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, pp. 35-43.

BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche – O eterno retorno e a memória do futuro. In: BARRENECHEA, M. A. de. As dobras da memória. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, pp. 51-63.

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