O desconforto de Rondônia para os documentos do Sínodo da Amazônia

Após os céus novamente se fechar com a fumaça e o ambiente político acima de nosso estado de Rondônia, dos mais devastados da Amazônia brasileira, não quero deixar de apresentar uma singela contribuição pessoal e comentário sobre o Instrumento Laboris, de preparação do Sínodo da Amazônia. Não é fácil, depois que a atenção do mundo novamente se voltou esses dias para nós, por causa do fogo e da destruição. Confira o artigo de opinião de Josep Iborra Plans, conhecido como Zezinho:

Artigo de opinião por Josep Iborra Plans¹, em CPT

Para começar, um testemunho pessoal

A história pessoal de vida me levou para Amazônia em 1993, na Diocese de fronteira de Guajará-Mirim, no estado de Rondônia. Os primeiros anos, até o ano de 2000, fui vigário de Nova Mamoré. Um dos municípios que continuava a receber mais colonos e também grandes grileiros de terra, com imensas derrubadas e queimadas. Era muito doloroso ver a exuberante floresta amazônica sendo derrubada e queimada. Mesmo assim, a inexperiência me levou a apoiar quatro comunidades de invasores da Terra Indígena Karipuna, que já encontrei estabelecidas na minha chegada, os mais carentes de toda a Paróquia. Hoje lembro com arrependimento que contribuí para que a Terra Indígena fosse reduzida em 35.000 hectares, apesar dos protestos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Este foi um dos maiores erros dos meus primeiros anos na Amazônia. Com muitas dúvidas, apoiava a abertura da estrada BR-421 através do Parque Estadual de Guajará-Mirim, mas fui recuando, vendo a devastação, descontrole governamental e concentração fundiária aumentando dentro da antiga área indígena.

Assim, pouco a pouco fui percebendo que em boa parte estava no lado errado. Sempre havia muitas coisas que não entendia. Me ajudou participar de um encontro dos Bispos da Amazônia em Manaus, em 1997i. No ano de 2000 dediquei alguns meses ao mestrado, após uma primeira crise vocacional, para estudar a relação entre ecologia e teologia, uma temática que não tinha entrado no meu currículo teológico básico. O resultado foi um trabalho sobre o papel da Igreja na desflorestação da Amazônia, publicado anos mais tarde, com a ocasião da Campanha de Fraternidade sobre Amazônia, em 20072. Antes, porém a reflexão me ajudou a mudar de prioridades pastorais.

O atendimento religioso exemplar da frente migratória

Nossa equipe missionária, como outras tantas, tinha chegado à região impulsionada pelas transformações intensas provocadas pela colonização e migração dos anos 70, 80 e 90 na Amazônia, que converteram o território Federal do Guaporé no atual estado de Rondônia, passando de dois municípios, Porto Velho e Guajará-Mirim, aos atuais 52. Um grande desafio para a Igreja Católica, de dar conta de atender a multidão de povo que estava chegando. Dezenas de novas paróquias foram criadas e centenas de comunidades e capelas rurais passaram a ser formadas. Nos sete anos como vigário de Nova Mamoré apoiei a criação de 12 novas comunidades, formadas pelos colonos que chegavam, sempre mais no interior das linhas abertas na floresta por madeireiros clandestinos.

Novas paróquias e núcleos com milhares de pessoas continuavam precisando de atenção e de dedicação, numa concorrência cada vez maior com as igrejas evangélicas, que encontraram nesta situação o espaço para se expandir nas cidades e áreas rurais, tornando Rondônia o segundo estado mais evangélico do Brasil.

Padres estrangeiros éramos em torno de 80% do clero amazônico. Irmãs e freiras, numa porcentagem mais equilibrada, com as religiosas presentes de origem brasileira e do sul. Um grande desafio de décadas, ao qual padres, religiosos e leigos se dedicaram com grande dedicação missionária, criando e equipando com toda estrutura as novas comunidades e paróquias. O trabalho de uma vida de inúmeras pessoas, com grande contribuição de congregações religiosas, auxiliando as nascentes paróquias e dioceses, sempre carentes de equipe qualificada, que também dedicou grande esforço na formação de seminaristas próprios, em busca de autonomia.

A diminuição de vocações do exterior forçou a busca de apoio da Igrejas Irmãs do Brasil, que também de forma generosa e dedicada continua presente nas mais diversas paróquias e dioceses amazônicas do Brasil, com apoio da Comissão Episcopal da Amazônia, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Porém, neste processo, indígenas e comunidades tradicionais, convertidas em minoria, ficaram relegadas pelas necessidades peremptórias, desta migração massiva e continuada da colonização.

Os de fora acabaram dominando completamente o cenário político e do poder estadual, inclusive escolhendo governadores e deputados do novo estado de Rondônia. Os povos originários e tradicionais se converteram numa minoria afastada e insignificante eleitoralmente, situadas em comunidades isoladas. Principais vítimas do êxodo rural, o povo marginalizado, jogado nas periferias de algumas poucas cidades, como Porto Velho, Guajará-Mirim, Costa Marques e o município de Pimenteiras, que ainda tem um número significativo de população de origem autóctone. Muito abandonados, não apenas pelas autoridades, mas inclusive pela própria Igreja Católica, os indígenas foram confiados ao Conselho Indigenista Missionário, lá onde a autoridade governamental, a Funai, não os enxotava. E os ribeirinhos e seringueiros, atendidos apenas pelas tradicionais visitas de desobriga, uma vez por ano.

Quando sofre a natureza, também sofre o ser humano

No estudo sobre ecologia, li que quando a natureza sofria, o ser humano também acabava sofrendo. Fiquei me perguntando, se também era assim em Rondônia. Porque a população colonizadora tinha achado aqui oportunidades de terra, trabalho, renda… Para ela a ocupação e desmatamento da floresta tinha resultado em terra, sucesso, oportunidades, trabalho e fartura. Aí concluí que, a população que tinha sofrido mais pela devastação ambiental e que continuava sendo sempre mais acuada pelo processo migratório e colonizador, era a indígena e tradicional.

Assim, com o apoio de minha equipe missionária, me dediquei mais aos ribeirinhos, quilombolas e indígenas do Vale do Guaporé, na divisa com a Bolívia, voltando prioritariamente a eles os oito últimos anos de ministério presbiteral. Me tornei com eles “beiradeiro”. Deles recebi a devoção do Senhor Divino Espírito Santo, a maior tradição e espiritualidade do Vale do Guaporé. Mas também me valeu as piores perseguições.

O olhar do Sínodo para Amazônia

Agora que o Papa Francisco resgatou a importância da ecologia para a nossa fé e o olhar do mundo e da Igreja para a Amazônia, também são para estes povos que aponta prioritariamente o documento preparatório do Sínodo da Amazônia. Aqueles que continuam sendo os mais atacados e prejudicados em toda a Pan-Amazônia. Perseguidos pelas frentes madeireiras, pela bandidagem da grilagem de terras, da mineração, das usinas hidroelétricas, da pecuária, das infraestruturas de transporte e pelas monoculturas do agronegócio exportador. Junto às pastorais sociais de Porto Velho temos refletido bastante sobre o nosso compromisso neste cenário.

A conversão ecológica da Igreja de Rondônia

Para muitas comunidades e paróquias de Rondônia parece que o Sínodo não é para elas. Não se sentem muito representadas neste olhar dos documentos de preparação, que se voltam especialmente para os indígenas. E a crise econômica está empurrando muitas pessoas de novo para “o mato”, para a colonização do sul do Amazonas, norte do Mato Grosso ou invadindo os últimos locais remanescentes de florestas de Rondônia. Mas o primeiro que nos pedia a Laudato Sí já era a conversão para nossa relação com a Criação Divina.

Hoje, o restante do território dos Karipuna é dos mais ameaçadas de todas as Terras Indígenas do estado, pelos madeireiros e por invasões organizadas. A Reserva Extrativista de Jaci Paraná está invadida há décadas. O mal exemplo e a impunidade fazem que sejam persistentes os saques e as invasões territoriais das reservas dos seringueiros de Machadinho do Oeste. As campanhas eleitorais espalharam promessas de “liberação” das queimadas e da invasão das terras das Unidades de Conservação. Enquanto as ocupações em demanda de reforma agrária são duramente reprimidas e criminalizadas, e a invasão de reservas obtém ampla tolerância e impunidade.

Urge para os agricultores a conversão para a agroecologia. Mudar para “produzir sem destruir”, segundo o lema da saudosa Associação de Ouro Preto do Oeste (APA). Todos nós, católicos, temos nosso dever de fraternidade com os povos originários desta terra e nossa responsabilidade com a Criação Divina. Não podemos tolerar estas atitudes que continuam vitimando os povos indígenas e tradicionais, assim como os seus territórios e espaços de vida e sobrevivência. Temos que estar ao lado deles e impedir esta barbárie.

Uma conversão pastoral

Por outro lado, muitos rondonienses de agora, mal conhecem uma aldeia ou povo indígena, por mais que estejam aqui há décadas e se encontrem no estado pelo menos 60 povos diferentes. Esta é outra conversão que nos pede o Sínodo, olhar e escutar os indígenas e comunidades tradicionais. É a vez deles. Também para que tenham a dedicação justa e necessária, prioritária, das paróquias e comunidades. Mesmo que formadas em parte pela população das frentes colonizadoras. Eles que foram acolhidos, formados e atendidos de forma exemplarmente dedicada, durante as últimas décadas em nossas dioceses. Agora olhem para os ribeirinhos, seringueiros e indígenas que já estavam aqui antes. Os respeitem e apoiem em suas necessidades. Mesmo que sejam comunidades pequenas, residuais, periféricas, de difícil acesso e de outra forma de ser.

Essas comunidades merecem todo o nosso empenho e dedicação para garantir os seus territórios, suas culturas, sua vida. Contra as ambições desmedidas e do falso progresso. Como as novas usinas de Tabajara ou do Ribeirão, por exemplo. Contra tantas ameaças que ainda vitimam como sempre aos mesmos, assim como aos rios e as florestas das quais dependem para  a sua sobrevivência.

A conversão em marcha da Pastoral da Terra

Também na Pastoral da Terra de Rondônia e outras da região amazônica o povo alvo de nosso apoio sempre foi o excluído do processo de ocupação. Os colonos, os pequenos agricultores que chegavam atraídos pelas promessas de terras que não eram cumpridas. Eles continuam sendo a maior parte dos grupos que exigem a nossa atenção, seja pelas demandas de terra para reforma agrária, seja pelos conflitos e contínuas expulsões de grupos de posseiros. A mesma problemática amazônica que deu origem à nossa Pastoral nos anos setenta.

Em todas as CPT’s da Amazônia há uma grande expectativa criada pelo processo sinodal de escuta. E também um certo desconforto, porque o documento preparatório do Sínodo não parece dar atenção suficiente ao tema dos pequenos agricultores, da violência no campo e dos conflitos agrários pelas disputas de terras. Assuntos que atingem de forma desproporcional a região amazônica, se comparados com o resto do Brasil.

A chamada do Sínodo é clara: Nos dediquemos mais a estes grupos de comunidades tradicionais, que também nas últimas décadas cada vez mais se aproximaram da CPT e nós de suas iniciativas e necessidades. Ainda, a conversão ecológica: A resistência social destes grupos não é possível sem a defesa e proteção ambiental da floresta e da Amazônia. Tanto na reformulação da agricultura, não apenas sem veneno, mas também mais adaptada e harmoniosa com o bioma amazônico, como os camponeses agroecológicos mais conscientes já apontam.

É neste empenho que as populações indígenas e tradicionais têm muito a ensinar aos pequenos agricultores, que aqui chegaram para fincar suas raízes. Cuidando das águas e das árvores, que protegem as nascentes e a fragilidade do solo. Deixar-se “amazonizar”, como nos ensina a professora Márcia. “A gente cultiva a terra e a terra cultiva a gente”, como canta maravilhosamente o artista e poeta Zé Pinto.

O desrespeito pelo ser humano e pela natureza andam de lado, como comprovamos pelos piores índices de violência e de desmatamento. Espiritualidade, bem viver, cuidado pela natureza, pelo Planeta e pela humanidade também têm que ir juntas na Amazônia, escutando e aprendendo com aqueles que tiveram mais tempo para aprender e conviver em harmonia com ela: Os povos originários e tradicionais amazônicos.

Porto Velho, Rondônia, setembro de 2019.

¹Sou catalão de origem, missionário claretiano de 1993 a 2008 na Diocese de Guajará Mirim. Hoje padre casado, pai de três filhos. Mestre em Teologia Moral, pela Faculdade de Teologia de Catalunha (Barcelona). Professor de Moral Social, no Seminário da Arquidiocese de Porto Velho. Da Equipe da Articulação da Amazônia da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

² “Amazônia. A Igreja diante da devastação amazônica” São Paulo, Ed Ave Maria, 1997.

i  Doc. Manaus Documento da Assembleia dos Regionais Norte 1 e 2 da CNBB, “A Igreja se faz carne e arma sua tenda na Amazônia”, Manaus, 1997, em: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Desafio missionário. Documentos da Igreja na Amazônia. Coletânea, Ed. CNBB, Brasília, 2014, págs. 67-84.

Imagem: Joka Madruga

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