Mar Fronteira

Segundo dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM), em 2019, até à data, cerca de 933 pessoas terão morrido ou desaparecido no mar Mediterrâneo a caminho da Europa; a rota da Líbia para a Europa continua a ser a rota migratória com maior número de óbitos em todo o mundo (646 mortes até hoje) e registou cinco vezes mais mortes em 2018 do que em 2015, nomeadamente devido a uma redução das operações de busca e salvamento (SAR) ao largo da costa Líbia. As importações da UE da Líbia são dominadas por combustíveis minerais (11,4 bilhões de euros, 98,7%), em particular petróleo e produtos petrolíferos. O total de importações da UE da Líbia totalizou 11,6 bilhões de euros em 2017. 

por Yara Monteiro, em Buala

Tinha-a presa ao pescoço. A pequena sapatilha de madeira estava presa ao cordão.

Houve um tempo em que se quis matar. Logo após a sua chegada. Uma tentativa ridícula: enforcando-se com o cordão que tinha ao pescoço e prendia a sapatilha de balé. 

Embora fosse Passado, a sua memória não é leve nem fluida como a espuma do mar. É maré. Primeiro, inunda o Presente da sua tímida glória com perguntas e suposições, para logo o esvaziar e mostrar a ruína soterrada no seu peito. 

Sobrevivera à guerra, aos dias no mar e à chegada à Vila Terra Nova. Tinha alcançado o Norte: o desejado destino.

Logo que se espalhou a notícia da sua chegada, houve mesmo quem de imediato se prontificasse a ajudá-lo e a felicitá-lo pela sorte.

Também houve quem tivesse feito juízo diferente: Vila Terra Nova não era sítio para o seu tipo de gente. Talvez o melhor fosse o recém-chegado ir para a capital, sugeriu-se.

Por decisão maioritária, Teófilo ficou. Ficou e sentiu-se bem-vindo.

Já se havia passado sete anos, mas Teófilo não conseguia perder o medo. Expandir sentimento. Olhar em frente. Sonhar. Fruir da vida. O Sul e ela sempre tão presentes.

Teófilo não mais entrou no mar. Mesmo assim, gosta de ir mostrá-lo à filha, Fátima. Vão para a falésia contar as ondas que chegam à praia.

Na Vila Terra Nova, a praia é o centro da vida: pescadores, banhistas, surfistas e vendedores ambulantes partilham o mesmo areal.

Fátima alegra-se sempre com a ida da família à praia. «Tudo pela pequenina. Tudo por ela.»

Teófilo tudo faz por Fátima. O que ganha é para ela. O trabalho, noite adentro, na fábrica de bolos, o part-time de carpinteiro e os biscates de consertos nas casas particulares que recebem turistas. Pouco gasta. Tudo junta. Trabalha para que Fátima possa ir estudar balé para a cidade grande. O seu sonho de pai é Fátima tornar-se bailarina.

A mulher, Luísa, por vezes, zanga-se. O sonho é de Teófilo, apenas. O sonho de uma outra vida perdida no mar.

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Na época balnear, Teófilo faz o sacrifício e vai com a mulher e a filha à praia. Fica debaixo do guarda-sol, na toalha estendida longe da água. Gosta de enterrar os pés na areia, observar quem se diverte, controlar as suas tâmaras – Fátima e Luísa – a saltarem a rebentação das ondas.

Nunca lhes confessou a ansiedade – o pânico até – de que houvesse um mesmo malicioso destino que as levasse.

«Não mais o mar.» Era o que sempre para consigo murmurava, e recusava-se a entrar na água.

«És um homem grande, forte e com medo do mar», brincava Luísa, não se esquecendo da mágoa do marido.

O rosto de Fátima ilumina-se perto do oceano. A menina gosta de brincar à beira-mar, de desenhar no areal os peixes e as sereias que imagina existirem. Com paus e lixo, cria escamas e barbatanas. Pega em algas e faz cabeleiras e, com conchas, borda vestidos inteiros.

Das primeira vezes que foram à praia. Teófilo estava sempre vigilante. Mais ainda se a mulher e a menina estivessem na água ou «demasiado» perto desta. Com o tempo, a convivência com a praia vigiada pelo salva-vidas e a tranquilidade dos veranistas começaram a descontraí-lo. Um dia, deu por si no areal molhado. 

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O Sol vai alto no azul polido do céu. A ondulação goza de um ligeiro e desencontrado balançar que se desmancha como um tule branco na orla da praia. Teófilo tem os olhos fechados. Levanta a cabeça para que o Sol lhe aqueça o rosto serenado pela felicidade momentânea. Sem que nada o provoque, o agito toma conta de si. A voz acossa-o: «Mas… e se o mar não tem fim? O mar! Mas… e se o mar não tem fim?»

Sacode a cabeça para que as palavras caiam no chão com os solavancos. Pede que lhe deixem em paz. A luminosidade ligeira e familiar altera-se. É como se uma mão se tivesse colocado entre os seus olhos e o Sol.

Surpreso, Teófilo abre os olhos. Acredita que fora quase de imediato. Não o podia ser.

Desnorteia-se.

O vento levanta-se e arrasta consigo nuvens repentinas. Firma-se, enruga o azul do alto, agita a corrente, leva Teófilo para o mar alto. O dia sai. Entra a noite. A ondulação vive, o mar sem fim, o barco vira no azul.

Dentro de Teófilo, um grito implode. Desperta. Só o passado o consegue ouvir.

A filha puxa-o pela mão e pergunta:

– Mas… e se o mar não tem fim? – como se ela, tão pequenina, conseguisse ler o pensamento do pai.

Teófilo sacode a angústia. Olha para a filha e vê-a com o dedinho a tocar o horizonte.

– Queres saber porquê? Tens medo?

– Eu não. A menina é quem pergunta.

– Quem?

Fátima responde com um encolher de ombros. O pai volta a insistir.

– Não a vi, juro. A voz veio do mar – diz Fátima, enrolando uma das suas finas tranças entre os dedos.

Teófilo sente a angústia antiga a regressar. Toca na sapatilha que tem ao pescoço. Desperta-se o medo de não voltar a calcar a terra com os próprios pés.

No dia seguinte, decide-se a ir sozinho à falésia. Acorda cedo, põe o gorro sobre a careca negra e veste o impermeável. Já tinha aberto a porta de casa quando volta atrás. Entra no quarto e aconchega o lençol ao corpo da mulher e ao da filha. A madrugada fria vestia um tutu de nevoeiro.

Chega e deixa-se estar na falésia. Ajusta o olhar à neblina. É como ter à sua frente uma cortina que não o deixa ver além. Num movimento pesado, passa a mão pela barba curta e sacode a humidade que nela se tinha acumulado. Por momentos, não se reconheceram: a mão e o rosto. Também ele fora finitude de vida. Morrera miúdo no mar. Nascera homem naquela praia.

Decide-se a descer a escadaria até à praia. A praia onde tinha chegado sem ela.

«Mas… e se o mar não tem fim?», interroga-se em uníssono com a voz, seguindo a cadência dos degraus.

Nesta manhã de domingo cinzenta, apenas os barcos de pesca marcam presença na areia. Teófilo toca na sapatilha. Pensa em rebentar o cordão da sapatilha, mas não o faz. O certo é lançá-lo ao mar. Impedir que continue a enforcar-lhe a vida. Talvez chame por ela. Talvez. Sim, talvez, se tiver coragem.

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«Mas… e se o mar não tem fim?», continua a ouvir. O mar. O mar que o trata como um inimigo. Desistiu da desigual luta. Assume a derrota por exaustão. Não mais é necessário que o mar o tente dominar. Jaz com os braços abertos sobre o pequeno barco arrombado pelo forte jorro de água.

Atira-se. Sem destino, com tão pouca vida. Sem sobra de instinto para continuar a viver. Mas é a água tão gelada que o mantém desperto. Acodem-lhe as recordações que nos alentam e aquecem perto da hora da nossa morte. Teófilo vê-se a correr descalço, a subir às árvores, a comer tangerinas; delicia-se com o aroma a roupa lavada no rio; sente nos lábios o beijo despachado dado à mãe, sem saber ser aquele o último; saboreia o arroz com carne, primeira refeição depois da fuga da aldeia destruída; vê-a com o vestido azul e a dançar com o tutu branco.

O tule branco que cobre o mar, a sua mente enfeitiçada que não deixa de lhe perguntar: «Mas… e se o mar não tem fim?»

Aos poucos, enregelam-se a mente, os dedos e os ossos. Desfalece para, de imediato, voltar a marear em direção à sua voz, até ela. Até ao dia em que a viu pela primeira vez.

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Sentou-se no passeio debaixo da argânia. Fugia do sol forte do meio-dia. Era um intervalo merecido entre a venda e o trabalho de carpintaria.

Dormitava deitado no papelão com um olho aberto e outro fechado, deixando hipnotizar-se pela marcha desordenada de pernas e pés que passavam.

Foi o movimento solto de um vestido que o resgatou do sono. O azul do vestido ondulava por entre a multidão, deixando um rasto de candura e leveza distinto de tudo o que à sua volta se encontrava. Por momentos, pareceu-lhe que estava no mar, onde, até então, nunca tinha estado, só imaginado.

Seduzido pela curiosidade, os seus olhos voltaram-se para cima e seguiram a rapariga do vestido azul. Deviam ser mais ou menos da mesma idade. «Não mais do que dezoito e não menos do que dezasseis», balizou Teófilo.

Quis segui-la.

Num impulso estúpido, levantou-se demasiado rápido. Caiu de imediato. Pelo chão, espalharam-se cigarros soltos, isqueiros, pastinhas elásticas, rebuçados e pacotes de lenços de papel. Recuperado da queda, Teófilo, rapidamente, colocou o recheio da venda na mochila e seguiu a namoriscar a sombra criada pela airosa e esguia figura. Acreditou que a rapariga levitava. Depois duvidou-se. Levou o olhar ao chão de terra batida e viu as suaves marcas deixadas pelos seus sapatos.

Quis ver-lhe o rosto.

Sem que a rapariga do vestido azul desse conta, passou-lhe à frente. Deu dez passos, voltou para trás e fez com que ambos se cruzassem. Na macieza e fluidez dos seus olhos cor de óleo de argão, Teófilo dissolvera-se. Não mais desejou regressar.

Fátima estudava na escola de dança. Teófilo ia espreitá-la à janela do edifício com ares coloniais.

Viu meninas e mulheres apoiadas a uma barra, dando pequenos e delicados saltos. Dançavam nas pontas dos pés, ao ritmo de um batuque. Era a primeira vez que via aquela dança estrangeira, em que os braços davam a ilusão de fazerem um movimento contínuo.

Teófilo estava apaixonado. Quis namorar Fátima.

Quando o apanhavam a espreitar à janela, fechavam a cortina. Mesmo assim, Teófilo conseguia imaginar Fátima a dançar.

No início, a atenção dada por Fátima a Teófilo era restos de comida velha colocados no prato de um cão. Ele aceitava-os. Não se queixava. Persistia, querendo sempre mais um bocadinho que fosse. Fátima cedia com mais um pouco de ternura quando o via «desfalecer à beira da estrada»

Juntos, iam ao cibercafé ver O Lago dos Cisnes. Fátima sonhava em ser a bailarina principal. Mostrava a Teófilo o quão longo e fino era o seu pescoço. Orgulhava-se do seu pescoço de cisne. Teófilo admirava-lhe a confiança.

Fátima queria seguir para o Norte. Fugir da estreiteza da vida, gradeada pela miséria, sem direito ao sonho da Vida… a vida n’O Lago dos Cisnes.

Não demorou a que Teófilo selasse o amor de ambos. Talhou duas pequenas sapatilhas em madeira. Ofereceu uma a Fátima com a notícia da partida para o Norte. 

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– Levar mulher fica mais caro.

– Paguei o que me pediram na loja. Não temos mais dinheiro – reclamou Teófilo com o dono do barco.

– Uma menina tão bonita assim… pode trazer alegria a um velho sozinho como eu.

Passados alguns minutos, o pequeno barco zarpou pela madrugada adentro.

As ondas amontoavam-se como degraus de pedra, impedindo a sua passagem. O mar era a fronteira dos seus sonhos.

O vento levantou-se. Arrastou consigo nuvens repentinas. Firmou-se, enrugou o azul do alto, agitou a corrente, virou o barco em mar alto.

A ondulação vive. Vem a onda. A onda leva-a. O mar sem fim.

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E eis que agora, na praia, Teófilo aguarda para que o sibilar do vento erga as ondas. Vê-a agitar as asas com graciosidade. Os seus pulsos tocam-se na fluidez da respiração. As penas negras da cabeça confundem-se com o tutu negro e o ondular de todo o corpo flutua em círculos pelo mar. E, de repente, uma perna tem a liberdade de um braço. A cabeça basculante debate-se. Fátima voa, foge, tem medo, encolhe-se. Mergulha e emerge. É devorada pela água. Emerge. Vai para cima e para baixo, repetidamente. Entre o mar e o céu, o céu e o mar.

Teófilo tira o gorro e o casaco e descalça-se. Tira o cordão que leva ao pescoço e guarda-o na mão fechada.

Entra no mar.

Desejando adormecer à sombra do seu ombro.

Querendo o eterno azul, a neblina que acolhe em silêncio.

Ser tudo de bom e de sonho.

Querendo ser o que se guarda no fundo do coração e que se revela no leito do paraíso.

Querendo o azul.

O azul à sombra do seu ombro…

E pergunta ao horizonte: «Mas… e se o mar não tem fim?»

O horizonte, como um cordão de prata que estanca toda a água salgada, dissolve-se.

«Nunca terás um fim. Tu és o (meu) mar.» 

A todos os que perderam a vida na travessia do Mar Mediterrâneo.

Escrita enquanto ouvia a música O vento, de Dorival Caymmi (no vídeo abaixo: Heineken Concerts – 1996).

Instalação de Daniil Galkin, Tourniquet, 2013. Sejla Kameric, EU/Others, 2000. Exposição Europa Endlos, Copenhaga, 2019

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