De olho no STF, governo goiano e indústria do amianto jogam pesado para retomar atividades

Principal polo de exploração no país fica em Minaçu (GO), onde a população convive com casos de câncer abafados pelo setor há décadas, em meio à pressão do grupo Eternit; governador Caiado é um dos políticos que defendem interesses da empresa

Por Caio de Freitas Paes, em De Olho nos Ruralistas

Para os mais de 30 mil habitantes de Minaçu (GO), próximo da divisa com o Tocantins, há um tema mais importante que o julgamento sobre prisões em segunda instância. A ministra Rosa Weber incluiu na pauta do Supremo Tribunal Federal uma discussão essencial à saúde de seus habitantes e ao futuro do município: está nas mãos da corte autorizar ou não a retomada local da mineração de amianto. Uma substância encontrada, por exemplo, em telhas —  que ganharam até o apelido da empresa que produz o material, a Eternit.

O minério é extraído neste ponto do nordeste goiano pela mineradora Sama há cinco décadas. A empresa pede ao STF uma prorrogação dos trabalhos por até dez anos. Em 2017, o tribunal proibiu a produção, a venda e o uso de materiais fabricados com o amianto crisotila. Em novembro daquele ano, o plenário da corte determinou a proibição por 7 votos contra 2 — de Alexandre de Moraes e Marco Aurélio Mello. Os ministros Dias Toffoli, por ter sido Advogado-Geral da União, e Luís Roberto Barroso, por ter prestado serviços para a indústria brasileira do amianto, não votaram.

A Sama é controlada pelo grupo Eternit desde os anos 90 e é acusada pelo adoecimento e pela morte de trabalhadores e ex-funcionários em Goiás e no Nordeste, onde atuou das décadas de 40 a 60. A mineradora já foi condenada pela justiça a pagar R$ 500 milhões por danos morais coletivos, após ter deixado resíduos que contaminaram um número indeterminado de pessoas nos municípios de Bom Jesus da Lapa, Caetano e Poções, na Bahia.

O grupo Eternit foi controlado até o início da década de 2000 pelo grupo francês Saint-Gobain — que se desfez da companhia assim que o amianto foi proibido na França. Dali em diante a Eternit esteve sob a batuta de acionistas individuais de destaque na bolsa de valores: figuras bilionárias como Lírio Parisotto, com fortuna estimada em mais de US$ 1,4 bilhão; Luiz Barsi, com patrimônio especulado, somente em ações, em R$ 1 bilhão; e Victor Adler, com posição de destaque entre os acionistas individuais do Banco do Brasil.

Hoje, Barsi e Adler seguem com papel relevante na companhia — juntos, detém quase 20% das ações da empresa —, ao lado do fundo de investimentos DVG1, gerido por empresas especializadas no mercado financeiro, como a Mundinvest e a Oliveira Trust.

‘TODOS CALAM SOBRE AS DOENÇAS’, DIZ AUDITORA

O grande polo de amianto no Brasil atualmente fica em Minaçu, a pouco mais de 500 quilômetros de Goiânia. Ali, a Sama começou a explorar a mina de Cana Brava em 1967, quando Minaçu sequer era um município, e desde então se entranhou completamente na vida local.

Aposentada em 2016, a auditora-fiscal do trabalho Fernanda Giannasi acompanha há décadas os problemas causados pelo amianto. Ela fundou a Associação Brasileira de Expostos ao Amianto (Abrea) e esteve envolvida na luta pelo banimento da substância nos últimos 30 anos. Fernanda diz que o poderio financeiro de empresas como a Sama influencia políticos e silencia os atingidos em vários cantos do país.

“É um problema complexo porque acontece em lugares que, em uma família, o pai pode estar doente, mas se o filho trabalha na fábrica, todos calam sobre as doenças”, afirma. “Durante anos, ex-funcionários [da Sama] assinaram acordos com a empresa em troca de indenizações — quando estavam, sem saber, renunciando a boa parte dos seus direitos legais”.

Ao longo de mais de 50 anos, a mineradora do grupo Eternit investiu milhões em doações políticas e pesquisas direcionadas, bancou juntas médicas que subnotificaram o total de atingidos e, até hoje, luta para manter ativas suas operações em Goiás. Com laudos definidos como forjados, pesquisas direcionadas e, à disposição, uma “tropa de choque” política.

A partir da década de 90, o grupo Eternit contou com uma junta médica exclusiva para o atendimento de funcionários e ex-trabalhadores expostos ao amianto crisotila. Com o passar dos anos, revelou-se que essa equipe médica diagnosticava sistematicamente seus pacientes, estivessem eles bem ou à beira da morte. Os trabalhos eram supervisionados pelo médico Ericson Bagatin, professor da área de saúde do trabalhador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Junto a outros dois especialistas, os doutores Mário Terra Filho, da Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Eduardo Nery, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele abriu em 1997 um consultório próximo do campus da Unifesp, na zona sul de São Paulo: o Centro Diagnóstico de Doenças Respiratórias. Entre os clientes do consultório estavam o grupo Eternit e a Saint Gobain Brasilit — condenada pela justiça a pagar R$ 30 milhões, ao lado da Sama, por danos ambientais na Bahia, em ação movida pelo MPF no estado.

“[A Sama] propunha que, com os trabalhadores que tivessem doenças relacionadas com o amianto, estaria disposta a discutir uma negociação, uma compensação, e para isso precisaria ser composta uma junta médica”, disse Bagatin a uma comissão especial da Câmara, formada nos anos 2000 para esclarecer os problemas em torno da mineração de amianto.

Em seu relatório, essa comissão parlamentar revelou que os três médicos assinavam laudos usando o nome de suas respectivas universidades — enquanto eram bancados pela indústria do amianto, em um típico conflito de interesses. “A clínica que realiza os trabalhos da junta pertence a Bagatin”, explica a comissão no documento, divulgado em 2010. “Ela não tem vínculos com a universidade [Unicamp] e tem contrato com a Sama e a Eternit para realizar este trabalho”.

À época, a auditora-fiscal Fernanda Giannasi acompanhava de perto a polêmica. No processo para desmascarar os conflitos de interesse de Bagatin e equipe, ela descobriu como era a rotina no consultório dos médicos pró-amianto em São Paulo:

— Não havia transparência no tratamento com os pacientes. Em geral, diagnósticos assinados pelo Bagatin, pelo Mário Terra ou pelo Nery sempre traziam a frase “ausência de alterações pleuro-pulmonares por exposição ao amianto crisotila”, enquanto na verdade os pacientes estavam, muitas vezes, à beira da morte.

O De Olho nos Ruralistas procurou os três médicos para comentarem as denúncias. O único a responder foi Bagatin, que enviou um vídeo de uma audiência pública sobre amianto realizada em 2012 no STF. Ali ele não enxergou conflito de interesses: “O que tem de diferente o dinheiro privado do público? Foi buscado o financiamento na Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] e foi feito um convênio de cooperação técnico-científica entre a mineradora e a universidade. A gente não põe a mão nesse dinheiro”.

EFEITOS VÃO DAS DOENÇAS PULMONARES AO CÂNCER

Existe uma série de doenças associadas à exposição do corpo humano ao tipo de amianto extraído em Goiás. Muitas delas são gravíssimas, com alto risco de vida: a fibrose pulmonar, mais conhecida como “pulmão de pedra”, que enrijece o órgão e diminui a capacidade de respiração; o câncer de pulmão e outro tipo muito específico de câncer, o mesotelioma de pleura, uma espécie de fina camada que reveste a parede interna dos pulmões. Uma vez diagnosticado, o mesotelioma pode matar as vítimas em menos de um ano.

Em Minaçu, o real número de vítimas ainda é uma incógnita. Um dos motivos é o controle que a Sama exerce sobre esse tipo de informação e diagnóstico. A empresa do grupo Eternit manteve uma tropa de especialistas e médicos ocupacionais a seu dispor, como a junta médica liderada por Bagatin, Nery e Terra Filho, prontos para colocarem panos quentes sobre as denúncias. Ainda nos anos 90, o médico e professor da Unicamp tornou-se uma espécie de porta-voz das pautas favoráveis às mineradoras de amianto. Membro da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, Ericson Bagatin foi o coordenador do Projeto Asbesto — outro dos nomes do minério tóxico —, considerada a mais abrangente pesquisa epidemiológica já realizada no Brasil.

Mas o estudo estava contaminado pelos interesses da indústria. “Houve um problema com o financiamento das pesquisas, porque só quando tudo estava encaminhado é que descobrimos que tinha um ‘aditivo’: mais de metade dos recursos viria da própria Sama e do Instituto Brasileiro de Crisotila”, diz Fernanda Giannasi, ao recordar das iniciativas, do fim dos anos 90. Esse instituto representa a indústria do amianto.

No total, mais de 60% dos recursos para a primeira etapa da pesquisa — algo em torno de R$ 1,3 milhão – teriam vindo da mineradora e do instituto. O próprio médico confirmou o envolvimento da indústria no financiamento: em audiência na Câmara, ele disse que “recursos de infraestrutura através do convênio Sama vieram em abril de 1998, quase um ano após o início da pesquisa”.

Justamente esses estudos são, até hoje, referenciados por políticos pró-amianto no Brasil — mesmo que refutados há tempos pela comunidade acadêmica. Um exemplo recente aconteceu quando o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) disse que os trabalhos científicos “mostram que o amianto não causa câncer”, durante sua visita a Minaçu em abril de 2019.

SILÊNCIO ESTÁ ASSOCIADO AO PODER ECONÔMICO

A Sama não investiu apenas em diagnósticos e pesquisas científicas favoráveis ao uso do amianto. Em Minaçu, a empresa consolidou-se como um alicerce para o município ao longo das décadas, especialmente por ser a principal fonte de recursos para a população e para o poder público. Tamanho poder assusta quem ousa denunciar os verdadeiros impactos da mineração.

Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Arthur Pires Amaral foi ao município para pesquisar a abrangência dos danos à saúde dos habitantes. Enquanto esteve lá, notou um silêncio imposto sobre as vítimas e seus familiares, com medo de retaliações:

— Há um hospital público e outro, mais conhecido como o “hospital da Sama”. Desde 2001, a empresa o administra junto com médicos locais, que atendem nos dois hospitais e também na policlínica particular: assim os trabalhadores acabam silenciados porque eles são atendidos por quem está sob a influência da Sama.

Isso sem contar os trabalhadores direcionados às clínicas favoráveis ao setor, como o Centro Diagnóstico de Doenças respiratórias em São Paulo. Tudo isso em meio a uma pressão socioeconômica, como relata Amaral: “Existe um discurso muito forte no município: se a Sama fechar, Minaçu acaba”.

EMPRESA AJUDOU A BANCAR CAMPANHA DE CAIADO

Foi só em 2019 que o grupo Eternit realmente interrompeu sua produção em Minaçu. A demora de mais de um ano deveu-se à demora do STF em publicar o veredito tomado em 2017. O tempo jurídico no Brasil, como se vê, é outro — e, justamente por isso, a bancada do amianto pelo país se reagrupou. Hoje, parlamentares jogam pesado em prol da indústria.

Em eleições de todas as esferas, a Sama injetou milhões de reais em campanhas para que os eleitos pudessem defender seus interesses. O atual governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), fundador da União Democrática Ruralista, a UDR, foi um dos favorecidos. Só em sua corrida eleitoral para o Senado, em 2014, foram R$ 300 mil em doações da mineradora. Os recursos foram repassados por meio do diretório estadual do Democratas, segundo a prestação de contas de Caiado à justiça eleitoral.

Ainda em 2014, a empresa do grupo Eternit gastou R$ 2,3 milhões em doações para partidos de todos os espectros — como PT, PSB, PMDB e PSDB, entre outros. Somando esse valor às doações realizadas em 2010, o montante chega a R$ 3,8 milhões em diferentes candidaturas, não apenas em Goiás.

O investimento da empresa em pleitos municipais também foi polpudo. Segundo estudo feito pelo doutor em geografia pela USP Fábio de Macedo Tristão, a Sama gastou  nas eleições de 2004, 2008 e 2012 pelo menos R$ 2 milhões com campanhas municipais em Goiás e na Bahia. Ele descobriu esse valor após analisar as prestações de contas dos partidos ao TSE.

Nessas mesmas três eleições, a mineradora injetou R$ 1,2 milhão exclusivamente em candidaturas de prefeitos e vereadores em cinco municípios: Minaçu, Goiânia, Poções e Bom Jesus da Serra — ambos na Bahia, onde a empresa atuou há mais de 50 anos atrás — e Anápolis (GO). Os candidatos de Minaçu foram os mais agraciados, com R$ 644 mil no total.

Não é à toa que políticos ainda trabalham em prol da indústria do amianto. Em julho de 2019, o governador Ronaldo Caiado sancionou uma lei estadual que autoriza a mineração e beneficiamento do amianto crisotila em Goiás, para fins de exportação. A medida vai na contramão do que o STF definiu sobre o tema e é vista como uma pressão extra sobre a corte — para que ela autorize uma prorrogação dos trabalhos da Sama em Minaçu.

“Jamais poderia uma lei estadual se contrapor às decisões do Supremo Tribunal Federal”, sustenta a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, por meio de nota enviada ao De Olho nos Ruralistas. É a mesma posição do atual Procurador-Geral da República, Augusto Aras, segundo parecer elaborado para o julgamento no STF.

“A permissão de extração e beneficiamento do amianto no Estado de Goiás implica seríssimos riscos à saúde, não só dos trabalhadores diretamente ligados à atividade extrativa, manuseio e transporte”, disse Aras, em parecer do dia 29 de outubro. “Mas também daquelas pessoas (consumidores ou não) que, difusamente, poderão ser prejudicados pela letalidade do produto”.

Ainda assim, não faltam políticos ao lado da indústria nesse cabo de guerra. Em abril, pouco antes do grupo Eternit “hibernar” seu complexo em Minaçu e demitir 400 funcionários, uma comitiva de parlamentares goianos e de outras regiões visitou o município — com a presença dos senadores Vanderlan Cardoso (PP-GO), Luiz do Carmo (MDB-GO) e Chico Rodrigues (DEM-RR). A figura mais ilustre presente na ocasião era o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-RR).

Naquele dia, junto aos caciques políticos e parte da bancada do amianto em Brasília, o presidente do Senado posou segurando cartazes que diziam: “Somos todos Sama”. Antes, declarou que “não é possível que a frieza de uma linha da lei possa se sobrepor à vida das pessoas”. Os parlamentares fazem parte de uma comissão especial criada no Senado para “conhecer a realidade em Minaçu” e disseram que vão se empenhar para reverter a decisão do STF.

Procurado, o grupo Eternit decidiu não comentar o tema.

Foto: Sama (mina de Cana Brava)

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