As duas prisões de Lula. Por Marcio Sotelo Felippe

Sendo o outro “extremo”, o que teria feito ou dito Lula, um político de centro-esquerda, que pudesse ser a outra face de Bolsonaro? (Foto: Ricardo Stuckert)

Na Revista Cult

Linguagem é poder. O modo mais eficaz e econômico de controlar uma sociedade é controlar a linguagem. A coerção física é custosa e menos eficaz. Já a coerção por instrumentos ideológicos, que implicam o uso da linguagem, faz o cidadão supor que usa a própria racionalidade e que é um ser humano livre e senhor de suas escolhas. Quanto mais sua consciência é enredada, mais livre ele se supõe.

Matéria de um jornalão da grande mídia após a consumação do golpe na Bolívia dizia que havia “distúrbios” no país. Os “distúrbios” eram a reação de forças populares nas ruas contrárias à deposição de Evo Morales. Poderíamos imaginar que, fosse na Venezuela, o fato não seria narrado como “manifestações populares contra o governo de Maduro”? Se a manifestação é contra um governo de direita é distúrbio. Se é contra um governo de esquerda é manifestação mesmo. E assim molda-se pela linguagem a consciência da massa.

O evidente e tedioso esforço da grande mídia e de assustados colunistas a serviço do neoliberalismo, após a soltura de Lula, para colocá-lo no mesmo saco do “extremismo” com Bolsonaro, algo como “duas faces da mesma moeda do radicalismo”, é um perfeito exemplo de uma tentativa de controle da linguagem, do poder invisível, mas tremendo, que se pretende exercer sobre a consciência dos cidadãos e de dar à irracionalidade a aparência de um adequado uso da razão.

Na novilíngua de George Orwell (1984), por exemplo, havia a expressão “negrobranco”. Conforme as circunstâncias, negro podia ser branco e vice-versa. Era o Estado, ou o Partido, que determinava quando o branco era negro e quando o negro era branco. Assim embotada, pela linguagem, a racionalidade do cidadão, o absurdo se normalizava.

De um lado temos um político que passou quase 30 anos defendendo a violência, a tortura, defendendo a ditadura que errou porque torturava em vez de matar uns 30 mil; que, candidato à presidência, na véspera da eleição declarou que mandaria os opositores para a “ponta da praia”, gíria da Marinha para o local em que eram assassinados os opositores da ditadura militar; e que não escondia o racismo e a misoginia. Em síntese, um perfeito e clássico fascista.

Sendo o outro “extremo”, o que teria feito ou dito Lula, um político hoje de centro-esquerda que respondeu por dois governos de conciliação, que pudesse ser a outra face de Bolsonaro? Trata-se aqui de novilíngua. Lula pode ser branco ou negro, de acordo com os interesses de quem fala e pouco importa o que ele foi ou é hoje. Quando convém ele passa a ser extremista.

Mas esta novilíngua é sutil. Trata-se de uma neutralização cautelar da eventual atuação do Lula livre. Se ele criticar as medidas antipovo tomadas pelos golpistas de 2016, passa a ser extremista e radical e a outra face de Bolsonaro. É preciso cuidar para que Lula não faça oposição real. Não saia em caravana pelo país criticando a reforma da previdência, a reforma trabalhista, o teto de gastos sociais, a entrega do pré-sal. Usa-se a novilíngua. A palavra oposição muda de significado. O que é o salutar e democrático exercício de oposição transforma-se em extremismo e radicalismo irresponsável que vai incendiar o país, tumultuar o clima político, quem sabe provocar uma guerra civil e quem sabe levar a um golpe de direita, já que os militares não podem ser provocados e precisamos tomar muito cuidado para que o Estado de Direito não pereça. Se não se conseguiu manter a prisão física de Lula, que se coloque nele uma tornozeleira política manipulando conceitos e linguagem. A segunda prisão de Lula.

Nem por isso desiste-se da primeira prisão, de encarcerar de novo fisicamente Lula. Para isso a novilíngua está aí mesmo para ser usada. A Constituição diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Não se pode alterar a Constituição porque se trata de cláusula pétrea, mas pode-se tentar convencer a sociedade de que branco é negro e negro é branco.

Se culpado é quem o Judiciário diz que é culpado depois que todos os recursos foram esgotados, muda-se o significado de culpado para aquele que é condenado apenas pelo julgamento dos fatos, já que as decisões dos Tribunais Superiores, nos Recursos Especiais (STJ) ou Extraordinários (STF), não podem versar sobre fatos, apenas sobre o Direito. E assim temos um novo significado para trânsito em julgado, completamente desconhecido da cultura jurídica. Pouco importa – tomando apenas um dado parcial – que as Defensorias Públicas obtenham sucesso em 48% dos seus Recursos Especiais no STJ sem apreciar fatos. Trânsito em julgado é o que se decide que deve ser, não um conceito.

O advogado Luciano Rollo, em uma rede social, foi lapidar sobre o tema: “uma definição pode ser alterada, aprimorada. Não um conceito formado na evolução científica sob pena de perda do sentido geral do todo”.

Esse uso da novilíngua para o trânsito em julgado já ocorria antes do julgamento das ADCs pelo STF. Após, ganhou uma nova versão em forma de emenda constitucional sugerida pelo jurista e deputado Luiz Flavio Gomes, que tenta espertamente contornar a barreira da cláusula pétrea. O dispositivo constitucional da presunção de inocência não pode ser alterado por emenda? Emende-se a Constituição para dizer que o trânsito em julgado, que era verde, passa a ser azul e a cláusula pétrea lá permanece com as exatas palavras, mas com um significado novo. Remeto o leitor ao artigo de Lenio Streck e Marcelo Cattoni no Conjur, que não invocam a novilíngua, mas o personagem de Alice no País das Maravilhas, Humpty Dumpty, para quem as palavras podiam ter qualquer significado.

Marcelo Semer, em artigo desta coluna, adverte da gravidade da questão: “em 31 anos de vida, a Constituição chegou a ser maltratada por várias vezes, esquecida outras tantas. Mas nunca – o que é um sinal importante – nunca teve algum de seus direitos inscritos no art. 5º suprimido.”

Por outra abordagem, trata-se da diferença entre doxa e episteme. A doxa é a opinião vulgar que não está comprometida com o conhecimento do real, que é episteme. Tratar a Constituição como doxa é mais um episódio do seu esvaziamento, em curso desde o golpe de 2016, e mostra como o Direito é presa fácil da dominação e da hegemonia de classe. Domina-se pela força física, domina-se por instrumentos ideológicos, domina-se pelo controle da linguagem, e Direito é linguagem. Quem controla a linguagem controla o Direito.

Cláusula pétrea é cláusula pétrea. Oposição é oposição. Fala-se em uma frente antibolsonaro. Se essa frente não tiver como bandeira a revogação de todas as medidas que desde 2016 aprofundam a miséria de uma sociedade em que 23 milhões vivem com menos de R$ 233,00 por mês, R$ 7,76 por dia, com os quais só se pode tomar apenas um pingado no balcão da padaria, se essa frente se constituir com setores que não querem ser “radicais” ou “extremistas” (tal como se exige de Lula), teremos mais um exercício de novilíngua: oposição é situação.

Porque tal frente, enfim, nada mais será do que a proposta de uma versão bem-educada de Bolsonaro à qual se dará o nome de oposição. Tal como negro é branco, situação e oposição podem ser o que se quiser. Mas a essência permanecerá: a execução, já em curso, de um lento e cruel genocídio dos brasileiros miseráveis. Ah sim, mas em plena “democracia”. Afinal, branco é negro e negro é branco.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Foi procurador-geral do Estado de São Paulo

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