No dia 21 de novembro, a Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), emitiu nota alertando para a gravidade de um conjunto de medidas legislativas e administrativas atualmente em construção e implementação, que visam atender interesses de grupos econômicos nacionais e internacionais sobre as terras indígenas e apontam para o desmonte de fundamentos da política indigenista.
NOTA PÚBLICA
A POLÍTICA INDIGENISTA POR UM TRIZ
A Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), vem a público alertar para um conjunto de medidas legislativas e administrativas que, ora em elaboração ou implementação, alteram significativamente a política indigenista nacional, com graves consequências para os direitos e a vida dos povos indígenas.
A Funai tem a obrigação de trabalhar, entre outros temas, com identificação, demarcação, fiscalização e proteção de terras indígenas. A autonomia dos povos indígenas sobre seus territórios, no entanto, está hoje sob crescente vulnerabilidade, seja a partir do descaso com situações de ameaças e de efetivas invasões e violência, seja a partir das iniciativas aqui abordadas.
Trata-se de propostas construídas em gabinetes fechados, em diálogo privilegiado não com representantes indígenas, mas com grupos interessados na exploração econômica de suas terras e dos recursos naturais nelas existentes. Sobre os processos de formulação das propostas, faltam informações oficiais transparentes. Os interessados em seus conteúdos obrigam-se a recorrer, sobretudo, a publicações de imprensa.
As iniciativas em curso situam-se em três frentes: (1) entendimento e aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, em especial seu dispositivo referente à Consulta Livre, Prévia e Informada; (2) aproveitamento dos recursos hídricos e minerais nas terras indígenas (normatização do parágrafo 3º do artigo 231 da Constituição Federal); e (3) alteração do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas (Decreto 1.775/96).
Na primeira frente, encontra-se em funcionamento, segundo a imprensa, um Grupo de Trabalho (GT) coordenado pela Casa Civil, que se orienta por documento do Gabinete de Segurança Institucional no qual se encontra a ideia de que a Convenção 169 acarretaria impactos ao desenvolvimento do país. Isso significa colocar os direitos dos povos indígenas – e também dos quilombolas – a reboque de outros interesses, como os que se mobilizam em torno de empreendimentos de aproveitamento de recursos hídricos e minerais das terras indígenas.
Há, nesta segunda frente, outro GT interministerial que vem se reunindo sem a participação de representantes indígenas para discutir, em especial, a regulamentação da mineração em sua terras. Declarou-se que a proposta seria encaminhada ao Congresso ainda em novembro. Um dos seus pontos centrais seria a impossibilidade de os povos indígenas rejeitarem a exploração de empreendimentos de terceiros em seu próprio território. Isso significa que, mesmo comunidades notoriamente marcadas por experiências danosas com a mineração e, portanto, contrárias à atividade em seu ambiente de vida, estariam obrigadas pela lei a ver avançar projetos desse tipo.
A agressividade da medida pode agradar a grupos econômicos nacionais e internacionais e a parlamentares que representam esses interesses, mas não encontra respaldo na opinião pública brasileira: em pesquisa recente, 86% dos entrevistados afirmaram-se contrários à abertura de terras indígenas à mineração.
Ademais, pesquisas em terras tomadas por garimpos, como a do povo Yanomami, indicam vertiginoso crescimento da contaminação por mercúrio – em rios, peixes e nas pessoas – e de doenças associadas, além do assoreamento de rios, desmatamento, violência e alto grau de desestruturação da organização social indígena.
Se houvesse diálogo com as organizações indígenas, os formuladores da proposta de mineração em terras indígenas teriam de lidar com questionamentos frontais a ela, como os da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e de indígenas Munduruku, os quais, para defender seus territórios, exigem respeito ao seu direito à consulta.
Com suas vidas em risco, é inaceitável que os povos indígenas não sejam chamados para debater o projeto de aproveitamento econômico dos recursos minerais presentes em seus territórios. A incorporação da Convenção 169/OIT ao ordenamento jurídico nacional torna obrigatório que esses povos sejam consultados pelo Estado brasileiro sempre que decisões administrativas e legislativas possam afetá-los. Outros pontos do projeto destacados pela imprensa seriam a atribuição do controle ambiental às próprias mineradoras e a promoção da regularização dos garimpos clandestinos, medidas que aprofundam o desmonte dos órgãos e políticas socioambientais, colocando-os a serviço da exploração de recursos naturais por terceiros, incluindo megacorporações internacionais.
A terceira frente apontada na presente nota diz respeito à iniciativa de revisão do Decreto 1.775/96, que regulamenta o procedimento demarcatório de terras indígenas. A proposta surge após o fracasso do atual governo em retirar a demarcação da Funai e entregá-la ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, por meio da Medida Provisória 870/19. Novamente, os gabinetes do Palácio do Planalto e do Ministério da Justiça acolhem discussões entre servidores e agentes públicos escolhidos a dedo, sem qualquer participação indígena.
A orientação, nesse caso, são ideias que circulam publicamente há vários anos. As constantes declarações de políticos e novos dirigentes sobre a necessidade de paralisar as demarcações em curso e rever as já concluídas, em função de fraudes afirmadas e nunca comprovadas, tentam deslegitimar o trabalho técnico da Funai e dos profissionais que compõem os grupos técnicos multidisciplinares de identificação e delimitação, em especial antropólogos. Tais declarações promovem uma campanha de discriminação e difamação em diversas regiões do país, aumentando significativamente os conflitos e violências contra indígenas, servidores e colaboradores da Funai.
No que tange à demarcação, desconhecem-se eventuais avanços realizados pelo GT em curso. Dentro da Funai, porém, destaca-se a tentativa de normalizar a aplicação do Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União. Os aspectos problemáticos desse instrumento normativo, expressão da força de interesses ruralistas junto a sucessivos ocupantes do governo federal, já foram destacados em anteriores posicionamentos de organizações indígenas, do Ministério Público Federal, por intermédio de sua 6ª Câmara Técnica de Coordenação e Revisão, e da própria INA, todos eles apontando para a incompatibilidade entre o Parecer e os direitos indígenas constitucionalmente assegurados.
Soma-se ao quadro a recente edição de Portarias que, na composição de grupos técnicos de identificação e delimitação de áreas reivindicadas por grupos indígenas de Pernambuco, substituíram profissionais qualificados e servidores da Funai por recentes nomeados em cargos de confiança – pessoas que possuem no currículo meros cursos de especialização em antropologia e trabalhos de inspiração reversa à da atuação técnica em questão: contestação administrativa a procedimentos demarcatórios, a serviço de entidades de classe do agronegócio. As substituições, repudiadas pela Associação Brasileira de Antropologia, chocam-se com o princípio normativo segundo o qual as demarcações devem fundamentar-se em trabalhos desenvolvidos por antropólogos de qualificação reconhecida (Art. 2° do Decreto 1.775/96).
A INA entende que alterações tão substantivas na política indigenista quanto as aqui comentadas não podem ocorrer pela via da imposição, sem interlocução do governo com ampla representação indígena, levando-se em conta suas organizações e os Protocolos de Consulta elaborados por diversos povos Brasil afora. Reiteramos nesta nota a preocupação com a paralisia de instâncias de governança como o Conselho Nacional de Política Indigenista e o Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas.
Como resultado do desmonte das políticas ambientais e indigenistas, verifica-se o aumento exponencial de invasões nas terras indígenas e de violência praticada por invasores, como denunciado nas TIs Yanomami, Wajãpi, Vale do Javari e Araribóia, culminando em brutais assassinatos – do cacique Emyra Wajãpi, em 22 de julho, do colaborador da Funai Maxciel Pereira dos Santos, em 06 de setembro, e do guardião indígena Paulo Paulino Guajajara, em 1º de novembro – e no agravamento das condições de trabalho com índios isolados e de recente contato.
Desde 1988, o instituto da tutela foi suplantado pelo reconhecimento do direito à diferença e à autonomia dos povos indígenas. Nesse sentido, a Funai e a política indigenista não deveriam voltar a ser caudatárias da política de “integração” e suposto “desenvolvimento nacional” que, levada a cabo durante o regime militar, resultou no extermínio de ao menos oito mil indígenas, segundo a Comissão Nacional da Verdade. Qualquer alteração mais profunda nos rumos da política indigenista deve preceder-se de amplo debate com lideranças indígenas, indigenistas e juristas. O caminho dos gabinetes fechados e da imposição é o caminho do conflito e da violência.
INDIGENISTAS ASSOCIADOS
21 de novembro de 2019.