Jovens Cabanos fazem história no PAE Lago Grande

Inspirados pela Cabanagem, revolta popular importante na região, e movidos pela necessidade de defender o território e o seu modo de vida, juventude realizou a – já histórica – I Romaria do Bem Viver

Por Patrícia Bonilha, no Greenpeace

O sol ainda nem tinha aparecido por trás do Rio Arapiuns – que mais parece um mar – quando os primeiros barcos regionais começaram a aportar na histórica e calma praia da Comunidade de Cuipiranga – último polo de resistência da Cabanagem. Um a um, eles foram chegando. Os jovens das comunidades mais distantes chegaram a viajar por 9 horas para estar ali. Refletindo o alvorecer, o rio foi tingido por um exuberante rosa-alaranjado que parecia anunciar os inesquecíveis dias que estavam para começar. Sim, para as comunidades do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, localizado em Santarém, na região oeste do Pará, a I Romaria do Bem Viver, realizada nos dias 16 e 17 de novembro, foi um evento inesquecível!

De manhãzinha, a praia foi se enchendo de gente vinda de todo canto desse território de mais de 250 mil hectares. Com 144 comunidades, a reunião de centenas de pessoas das três regiões – Arapiuns, Arapixuna e Lago Grande -, em si, já é bastante desafiadora porque, além das grandes distâncias entre as comunidades, as estradas são, de modo geral, muito ruins, ainda mais nesta época de chuva.

Em um grande círculo, uma mística conduzida pelos jovens deu início às atividades da Romaria. Ali foram firmados os compromissos anteriormente definidos por eles: defender o modo de vida tradicional de ribeirinhos, extrativistas, pescadores e indígenas que vivem há décadas, ou até mesmo séculos, naquele território e lutar para que o PAE Lago Grande seja um território livre de mineração.

Interesses inconciliáveis

Na sequência, com uma multidão que já reunia mais de mil participantes, embaixo da palha da palmeira curuá – que amenizava um pouco o sol e a imensa umidade Amazônica – teve início o seminário “PAE Lago Grande: Território do Bem Viver – livre de mineração”. Um dos principais focos aqui era compreender os impactos da exploração de bauxita no PAE, especialmente por parte da mineradora estadunidense Alcoa – que já explora o vizinho município de Juruti. 

Sandrielem Corrêa Vieira, de 19 anos, da Comunidade Coroca, deu início ao seminário: “É muito gratificante testemunhar o esforço de cada um pra chegar aqui. E por que, nós, jovens, pensamos em fazer isso? Olhem ao redor, esta paisagem… Olhem onde estamos. Isso aqui é o próprio Bem Viver. Mas ele está ameaçado por uma mineradora que está entrando em nossos territórios. Vamos ficar de braços cruzados? Não! Vamos informar as pessoas sobre os riscos que estamos correndo e fortalecer nossa resistência”.

Na sequência, Danicley de Aguiar, da Campanha Amazônia do Greenpeace, mostrou em um mapa-banner do PAE Lago Grande quais são as áreas que as mineradoras querem explorar. “Para as comunidades, o território é abrigo, é comida, é vida. Mas as mineradoras não entendem esta linguagem. Para elas, o que interessa é o lucro, o que está em cima da terra não tem nenhum valor. E é exatamente a área de floresta, onde tem terra preta, nascem os igarapés, onde tem caça, que a mineradora quer explorar”, afirmou. 

O engenheiro agrônomo Raul Couto apresentou dados do Diagnóstico Socio-Econômico-Ambiental do PAE Lago Grande, que está sendo produzido pela Fase. “Trata-se de uma fotografia do PAE, de hoje, 2019. Porque é muito importante a gente se conhecer. Quem é esta população agroextrativista? Como vive esta gente? Como produz? Como se sustenta?”. Ele informou que a análise deste diagnóstico, que entrevistou 661 famílias de 56 comunidades, será concluída no dia 20 de dezembro.

O dever de defender a vida, a terra e os direitos humanos, inscrito no documento final do Sínodo da Amazônia, foi o foco da fala do padre Edilberto Sena. “A defesa do PAE Lago Grande é uma exigência de fé. Não posso louvar a Deus, sem fazer isso. Se não cuidarmos do planeta, a situação vai se agravar muito. A luta contra este monstro de sete cabeças, que é a Alcoa, está nas mãos da juventude. Não basta resistir e enfrentar, é preciso vencer!”, provocou ele, bastante aplaudido por todos.

Muitos participantes deram seus depoimentos, inclusive sobre a necessidade de garantir a titulação coletiva da terra (e não a individual, que fragiliza a resistência dos comunitários) e de estender a  luta para outros temas, como a luta contra os agrotóxicos e as madeireiras. Ao reconhecerem que os interesses da mineradora e das comunidades não são conciliáveis, gritaram em coro: “Nossas vidas não fazem sentido sem a terra, sem os rios, sem os igarapés. Não queremos mineração aqui”.

Greicy Nardines Branches Gomes, de 24 anos, da Comunidade Araci revelou: “Fiquei muito emocionada quando, a multidão estava sentada na areia vermelha, na terra sagrada de nossos ancestrais, e um rapaz que mora na ponta, do outro lado do Lago Grande, nos falou sobre o que está acontecendo na comunidade dele. Ele deu seu testemunho sobre os impactos que já acontecem lá. Mostrou pra nós, jovens, que se aceitarmos a mineração, nossas praias, nossos igarapés, nossas vidas serão destruídas. Isso me tocou muito. Ele veio aqui só para alertar os romeiros que vieram para a luta. A Romaria está abrindo os olhos de muita gente. Que venha a próxima! Somos os jovens Cabanos de hoje”.

Ansiosos… para assumir a responsabilidade

Já no final da tarde, na concentração antes da caminhada, novamente feita em um grande círculo, a presença era predominantemente de jovens. Mas crianças, inclusive bebês, e idosos se fizeram presentes. Era difícil acreditar que eles percorreriam os longos 35 km do percurso, que ia da Comunidade de Cuipiranga à Comunidade Murui. As cinco paradas previstas tinham o propósito de conscientizar os moradores sobre a importância de defender o seu modo de vida ancestral.

De repente, após tomarem uma necessária sopa, a poeira levantou. Com sandálias nos pés e faixas nas mãos, os jovens dispararam na estrada, como se estivessem esperando este momento há muito tempo: uma oportunidade de serem protagonistas, de assumirem a autonomia da defesa de suas próprias vidas. O ritmo até a comunidade Aparecida, a primeira do trajeto, foi bastante intenso.

Uma eclética seleção de músicas – que ia da MPB (Chico, Clara Nunes, Gil, Alceu), ao rock (Titãs, Paralamas, Francisco, el hombre), passando por sucessos da região, como Dona Onete, Calypso, Caprichoso, Garantido e, claro, hits de tecnomelody, e contemplava ainda cânticos de louvor e as criativas músicas políticas compostas pelos próprios jovens – animava a multidão.

De mãos dadas ou até mesmo abraçados em grupos de quatro ou cinco, os jovens seguiram firmes. Nas três primeiras comunidades, a recepção foi bastante calorosa e fogos de artifício anunciavam a chegada dos romeiros. Havia palco montado, faixas de apoio e dezenas de pessoas ofereciam frutas, água e sucos. Houve também cordel e falas emocionadas sobre os temas propostos – todos sintonizados na defesa do Bem Viver, cuja essência é comunitária e sustentada pela diversidade. 

No caminho, entre as comunidades, diversas famílias iam para a beira da estrada Translago, por onde a Romaria seguia, para manifestar seu apoio com luzes, buzinas, enfim, do jeito que conseguiam. Muitas pessoas se juntaram aos romeiros. E a multidão vibrava. A Romaria tornava-se maior do que tinham imaginado.  

Até que próximo da comunidade Ajamuri, uma refrescante garoa transformou-se em uma chuva torrencial. Ainda havia muitos quilômetros à frente, e não seria mais possível fazer as duas últimas paradas previstas. Mas os resistentes jovens Cabanos seguiram firmes ao destino final, a Comunidade Murui. Os mais animados, mesmo debaixo de chuva, dançavam e cantavam com alegria versos do típico carimbó.

Um grande puxirum

E, assim, por volta das 6h do dia 17, após quase 12 horas caminhando à noite, numa estrada de terra e cercados pela floresta, mais de 1.300 romeiros completaram o propósito almejado. Estavam exaustos e felizes. 

Após muitas rifas, bingos, venda de camisetas, bolsas, salgados; após meses de preparação; após a mobilização de dezenas de comunidades; após centenas de reuniões; após muitos puxiruns (mutirões); após a criação das músicas, dos rituais, do cerimonial, de toda a programação; após levantarem com suas próprias mãos o barracão que recepcionou todos os participantes; após tantos e tantos desafios, a I Romaria do Bem Viver configurava-se agora como um importante episódio na história de resistência do PAE Lago Grande. E todos ali, e muitos outros que não puderam se juntar, eram parte essencial desta história.

“Sem dúvida, a Romaria vai entrar para a história dos nossos povos, e para a história da juventude do PAE. Ela já consolidou um fortalecimento e uma união muito grande entre os jovens. Certamente, vamos nos empenhar ainda mais a partir de agora nesta luta que já começou e não vai terminar tão cedo. Também foi muito marcante que, apesar da maioria dos participantes serem jovens, havia pessoas mais idosas. Conversei com pessoas de 60, de 65 anos. Havia muitas. E elas caminharam 35 km! Esta geração mais velha mostrou que tem o compromisso de incentivar a juventude a lutar pelo território. Foi demais!”, avaliou, animadamente, Darlon Neres, 19 anos, Comunidade Cabeceira do Marco.

O jovem Yan Sousa Tavares, de 19 anos, da Comunidade Camará, compartilhava da euforia de seu colega. “Nós conseguimos reunir mais de 1.300 pessoas em defesa do território e da vida, caminhando rumo à civilização do amor. Mostramos a toda a população que é preciso defender o Bem Viver, defender o nosso território. Pois sem eles, somos como folhas ao vento, sem saber onde ir, sem saber onde pisar e firmar as pernas. Nós, muito ao contrário, temos culturas, temos tradições, temos histórias. Nossas raízes estão fincadas neste chão sagrado e o sangue dos Cabanos corre em nossas veias. Estamos cansados, mas somos vitoriosos! Sozinhos não somos nada, mas juntos podemos destruir qualquer inimigo que queira invadir nosso território”, concluiu poética e assertivamente.

Organizada pela Pastoral da Juventude – Região 8, a Romaria contou com o apoio do Grupo Mãe Terra, da Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande (Feagle), do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR-Stm), da Fase-Amazônia e do Greenpeace.

Leia o Manifesto de Cuipiranga, que traz mais informações sobre o movimento de resistência no PAE Lago Grande

Denominando-se de Cabanos, os jovens assumiram para si a proteção do seu território. Foto: @Tuane Fernandes / Greenpeace

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Maria Emília Pacheco

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