PM em Paraisópolis: chacina, limpeza urbana ou modus operandi militarizado? Por Paulo Mariante*

O noticiário do final de semana nos destacou a tragédia ocorrida em Paraisópolis, município de São Paulo, SP, na qual nove pessoas morreram como resultado de uma operação da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Ainda há muito a ser apurado mas algumas questões já podem ser observadas, e impõem a todes nós, além da reflexão, uma ação urgente.

Sobre a apuração, a história das investigações oficiais sobre a violência – e mesmo a letalidade! – policial é pouco animadora. Do massacre do Carandiru, passando pela emboscada da Castelinho e os “crimes de Maio” de 2006, às chacinas na Grande SP e em Campinas entre 2012 e 2014, com dezenas de jovens negros, pobres e de periferias e favelas executados, as respostas do Estado, com raras exceções, foram pífias, ou descaradamente hipócritas.  E nos referimos ao sistema de justiça como um todo, com Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público e Poder Judiciário.

Mas o que aconteceu em Paraisópolis, neste final de semana, que provocou a morte trágica – ou devemos falar em homicídios – de 9 pessoas depois de uma operação da PM?

A Secretaria de Segurança Pública publicou em seu site uma nota acerca da convocação de uma coletiva para falar sobre ação em Paraisópolis, na qual lemos sobre “tumulto entre frequentadores de um baile funk que terminou com nove mortos e sete feridos”, e que membros da PM “realizavam Operação Pancadão na região, quando dois homens em uma motocicleta atiraram contra os agentes. A moto fugiu em direção ao baile funk, ainda efetuando disparos, ocasionando um tumulto entre os frequentadores do evento”.

As notícias que já circulam em quase todos os meios de comunicação dão conta de outras versões, inclusive com vídeos que evidenciariam uma ação truculenta e equivocada dos membros da PM. A declaração ao Uol do Tenente-coronel Diógenes Lucca, fundador e ex-comandante do Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais), evidencia que houve um conjunto de erros por parte dos policiais militares.

É necessário sim exigir-se a apuração rigorosa dos fatos, e para isso contamos com a atuação do CONDEPE – Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de SP, órgão criado a partir da determinação do art. 110 da Constituição Estadual de 1989, por meio da Lei Estadual nº 7.576 de 1991, e por sua postura firme e combativa já está na mira da “bancada da bala” na Assembleia Legislativa de SP. Contamos igualmente com a atuação exemplar da Ouvidoria de Polícia do Estado de SP, órgão que foi uma conquista da luta dos movimentos de direitos humanos em SP em 1995, através da Lei Complementar nº 826 de 1997, e que igualmente encontra-se na mira da “bancada da bala” na ALESP.

O Ministério Público do Estado de SP, através do Procurador Geral de Justiça, Gianpaolo Smanio, designou a 1ª promotora de Justiça do I Tribunal do Júri, Soraia Bicudo Simões, para acompanhar as investigações. E a Defensoria Pública do Estado de SP anunciou que, respeitado este período inicial de luto, irá se colocar à disposição dos familiares de vítimas fatais para o devido atendimento individualizado e reservado, em domicílio, bem como está sendo organizado para os próximos dias um plantão de atendimento na própria comunidade afetada, voltado aos moradores locais. E recorda que ajuizou em 2014 uma ação civil pública, para que a Justiça determine uma série de medidas para coibir excessos por parte de policiais em manifestações públicas, incluindo manifestações culturais, e depois de uma sentença favorável em primeira instância, o caso aguarda julgamento de recurso de apelação pelo Tribunal de Justiça.

Mas ainda que a apuração seja a mais eficaz – diferente da regra vigente até os dias atuais – o ponto crucial da tragédia de Paraisópolis está em outro lugar. Não se trata, com o devido respeito às opiniões contrárias, a uma situação na qual membros da Polícia Militar se excederam ou atuaram incorretamente. Seguir tal raciocínio nos levaria à conclusão de que o problema está na atuação destes policiais militares.

A questão fundamental é que a política de segurança pública no Brasil – se é que podemos reconhecer tal política com essa denominação – até nossos dias é um instrumento de controle dos “de baixo” pelas oligarquias, e não é por acaso que vemos declaração de comandante da ROTA (PM) afirmando que os procedimentos de abordagens da PM nos Jardins não podem ser os mesmos da periferia, ou uma ordem de serviço na PM de Campinas priorizando a abordagem de jovens pretos e pardos numa região nobre da cidade.

E a militarização das polícias estaduais, como forças auxiliares das Forças Armadas, inclusive para atuar no combate às forças de oposição ao regime militar, modelo adotado pela ditadura militar e lamentavelmente mantido na Constituição Federal vigente, apenas agrava as consequências desta violência do estado. A truculência que era marca da ditadura se manteve na perspectiva militarizada das polícias militares.

Pode parecer um delírio, quando temos um governo federal presidido por um fascista – Bolsonaro – e um governo do estado de SP comandado por outro fascista – Dória –, a retomada de uma bandeira que nos mobilizou fortemente nos anos 2000 e até meados dos anos 2010: a desmilitarização das polícias. Mas essa maré conservadora e reacionária não será eterna, e mesmo neste momento de tantas dificuldades, é necessário fazer esse debate sem temores.

Precisamos igualmente levantar a bandeira do fim desta hipocrisia chamada “guerra às drogas”, que nada mais é do que a matança de jovens pobres e negros, e cujo efeito na redução do uso de substâncias ilegais que causem dependência é inócuo. Os próprios órgãos de segurança admitem essa realidade mas os setores conservadores, com o apoio da mídia e em especial dos programas “policialescos”, trabalham o discurso do “pânico moral” em relação às ditas “drogas” para construir legitimidade social a esse genocídio higienista social.

Muitas medidas paliativas poderão ser tomadas, em relação ao agravamento da violência, da truculência e da letalidade policial, para tentar mitigá-las, e não desmerecemos os esforços de tantas pessoas que vêm trabalhando neste sentido. Mas é importante que compreendamos que a superação efetiva deste quadro de atuação violenta e arbitrária das forças do estado só poderá se dar quando avançarmos na desmilitarização das polícias e na construção de uma política de segurança pública que esteja subordinada à democracia e aos direitos humanos. E ao lado disso, a revogação da chamada “guerra às drogas”, substituindo-se o direito penal e o sistema de justiça nesta área pelas ações da área da saúde mental anti manicomial. Para que não se repitam os massacres do Carandiru e as chacinas que têm ceifado tantas vítimas, como os nove seres humanos assassinados em Paraisópolis.

*Advogado e militante LGBTI e dos direitos humanos em Campinas, SP. Whatsapp (19) 993394111 – e-mail [email protected]

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