Um retrato do Brasil: os índios no Censo 2020. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Seria tão bom se o Censo 2020 do IBGE pudesse apurar quantos brasileiros estão tristes, deprimidos ou raivosos. Ou alegres e esperançosos. Tive vontade de falar isso – mas me contive – no X Seminário de Demografia dos Povos Indígenas no Brasil: na iminência do Censo Demográfico 2020, realizado em 4-5 de dezembro no Rio, organizado pelo IBGE, a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP). Estou consciente de que recenseadores são sérios, não bisbilhotam emoções, só xeretam estado civil, idade, sexo, religião, grau de instrução, renda, emprego e babados similares sobre a dinâmica populacional.

Convidado para proferir a conferência de abertura, minhas perguntas foram outras, focadas sobre os povos indígenas: será que o censo de 2020 trará dados sobre suas aldeias, línguas e culturas, tão necessários para elaborar políticas públicas e demarcar territórios?  O que o IBGE entende por “aldeia indígena”? Como serão contados os índios que vivem em área urbana?  Como é que entraram nas estatísticas do período colonial e da nação brasileira já independente? Como eram feitos no passado os levantamentos censitários?

Não foi o primeiro encontro da Universidade com os técnicos do censo. Em abril de 2008, reunimos com eles no Centro de Documentação e Disseminação de Informações do IBGE para discutir os critérios do conteúdo do Censo Demográfico de 2010.  Embora a demografia histórica não seja a minha praia – aliás nem sei se tenho uma – fui convidado naquela ocasião pelo fato de haver pisado nessa areia movediça para elaborar minha tese de doutorado sobre a história das línguas indígenas na Amazônia. Eu estava querendo saber quantos eram os falantes de Nheengatu e de Português no séc. XIX e quais as outras línguas faladas no Grão-Pará..

As línguas “estrangeiras”

Até então, o Brasil desconhecia uma questão de interesse para o patrimônio da humanidade: quantas línguas eram faladas em nosso território. Um único censo – o de 1940 – havia se ocupado com a diversidade linguística porque, no contexto da 2ª guerra mundial, o governo Vargas queria controlar estrangeiros que viviam no Brasil, especialmente alemães, italianos e japoneses. Duas perguntas constaram no questionário: “O recenseado fala o português? Que língua usa habitualmente no lar?”.  Descobriu-se, sem querer, que 3.6% dos “estrangeiros” eram falantes de “guarani ou outra língua aborígene”.

A glotodiversidade ficou diluída na categoria “outra”, porque depois de 1940, os censos oficiais continuaram silenciando sobre as línguas indígenas.  Em 1979, com a assessoria de Bartomeu Meliá e Egydio Schwade, o jornal Porantim aproveitou a III Assembleia Nacional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) para fazer um levantamento demográfico que registrou a existência de 155 línguas e 210.360 índios distribuídos por oito regiões do país. A boa notícia foi que, ao contrário do que então se pensava, a população indígena estava crescendo.

O fato foi confirmado por diversos levantamentos, um deles feito pelo CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação, coordenado pelo antropólogo Carlos Alberto Ricardo, o outro pelo Censo Indígena Autônomo do Rio Negro com orientação de Marta Azevedo, antropóloga e doutora em demografia.

O censo do IBGE de 1991 havia introduzido, no questionário de amostra, a categoria “indígena” na pergunta sobre “cor ou raça”, que passou a fazer parte, no de 2000, do questionário básico aplicado pelos recenseadores. Mas foi preciso esperar o Censo de 2010 para saber da existência no Brasil de 274 línguas indígenas autodeclaradas, de 896.917 índios e de 305 etnias. Esse descuido em colocar os índios no mapa do Brasil vem desde o período colonial.

As ideologias

As crônicas de viajantes e missionários que passaram pela Amazônia apresentam cifras elevadas. O cronista de Orellana, frei Gaspar de Carvajal, diz ter encontrado em 1541, numa só aldeia Omagua, comida suficiente para alimentar um exército de 1.000 homens durante um ano. Mais abaixo, entre os rios Tefé e Coari, registrou “grandíssimas povoações que reúnem 50 mil homens”. No século seguinte, em 1639, o padre Acuña que desceu o rio Amazonas de Quito até sua foz, escreveu que “são tão seguidas estas Nações, que dos últimos povoados de umas, em muitas delas se ouvem lavrar os paus nas outras”. Seu colega Alonso de Rojas registra que “são tantos os índios que se agulhas caírem do céu, não haverão de dar no chão, mas nas cabeças dos índios”.

No entanto, o mais conhecido historiador da Amazônia, Arthur Cezar Ferreira Reis, em seu livro “A Amazônia que os portugueses revelaram” (1956) escreveu que se tratava de fantasia e que os índios não ultrapassaram os 200.000 em toda a Pan-amazônia. Ele não diz em que se baseou para fazer tal estimativa. Não exibe qualquer prova documental, nem fontes históricas confiáveis. Usa o argumento da autoridade e o pressuposto preconceituoso de que as sociedades indígenas eram tão inferiores e atrasadas, que não poderiam ter mantido grandes populações. Tratava-se de um ato de fé.

Os que inflacionaram também tomaram ao pé da letra as cifras apresentadas nos documentos da época. O arquivo de Évora, em Portugal, conserva uma declaração juramentada de janeiro de 1654 escrita pelo cônego Manoel Teixeira, vigário de Belém, no leito de morte – a hora da verdade. Ele jura que só no Maranhão e Grão Pará, em 32 anos, foram exterminados “a trabalho e ferro mais de 2.000.000 de índios de mais de 400 aldeas”.

Já no séc. XX muitas estimativas foram feitas sobre a quantidade de índios que viviam no continente americano no momento da chegada do europeu. As cifras variam de 10 milhões a 120 milhões de indivíduos Os demógrafos da Escola de Berkeley criticaram a diferença brutal entre as somas apresentadas também como atos de fé, sem qualquer rigor. Propuseram, então, métodos refinados, com cálculos da densidade demográfica de cada bioma, a partir do uso crítico de dados de documentos históricos cruzados com estudos de arqueologia e antropologia e cálculos da taxa de depopulação originada por guerras, escravidão e epidemias de doenças infecciosas. Com tal metodologia, um deles, William Denevan, calculou para a Pan-amazônia a população original de 6.700.000 índios.

Caso de polícia

No séc. XIX, no Brasil independente, a imprecisão e a ideologia continuaram presentes num período denominado de proto-estatístico, no qual a demografia era uma questão religiosa ou um caso de polícia. Num esforço para identificar os falantes de Português e da Língua Geral Amazônica – o Nheengatu – no séc. XIX, procurei as fontes existentes.

Os dados demográficos não existem para certas áreas e certos períodos. Quando existem, são incompletos, insuficientes, dispersos e descontínuos. E hoje, já não é mais possível realizar um levantamento, para preencher as lacunas deixadas no século XIX. Essas limitações, porém, devem servir, não como um impedimento para tratar o problema, mas como um indicativo para elaborar estratégias de abordagem.

Na ausência de recenseamentos oficiais, é possível encontrar dados numéricos sobre a população em documentos produzidos pela Igreja – os censos eclesiásticos; pela Polícia – as listas nominais dos distritos; pela Coletoria de Rendas – as relações feitas pelos coletores da décima urbana e das rendas provinciais; pela Diretoria de Índios – os mapas de índios aldeados; e pela administração provincial – os arrolamentos populacionais publicados nos relatórios e mensagens dos presidentes de província.

Os censos eclesiásticos elaborados pelos vigários, com base nas listas nominais de habitantes das paróquias, funcionavam como uma espécie de registro civil. No entanto, o seu resultado era apenas a soma da população religiosamente ativa de um determinado universo e não a soma de toda a população deste mesmo universo.

Já as listas nominais dos distritos eram elaboradas por agentes policiais que visitavam casa por casa e lançavam os nomes de seus moradores no caderno de censo. Limitavam-se, no entanto, às cidades, vilas e algumas povoações, deixando de fora centenas de vilarejos, freguesias, lugares, sítios, fazendas, seringais, barracões, castanhas, balatais e outros agrupamentos extrativistas.

Até mesmo os dois censos nacionais (1872 e 1890) realizados por um órgão especializado, criado em 1870 – a Diretoria Geral de Estatística – estão repletos de imprecisões. Organizados com critérios mais rigorosos do que os levantamentos locais e regionais, esses censos nacionais, no entanto, foram efetuados, na Amazônia, em plena “época das vazantes dos rios, quando se tornam difíceis as comunicações para o interior”, e grande parte da população, localizada em lagos e em seringais, fica privada do único meio de transporte – o fluvial – “impossibilitando, dessa forma, que os recenseadores fizessem um serviço completo. Houve, necessariamente, vultosas omissões”, como assinala Agnelo Bittencourt.

Na Amazônia, todos esses levantamentos, devem ser usados com precaução, já que os seus resultados podem ter sido alterados pelos procedimentos de confecção das listas, que desconsideraram as formas de vida da população e as especificidades da economia regional. É que os moradores tinham, de fato, dois domicílios. Na maior parte do ano, permaneciam ocupados com a extração de produtos naturais da floresta, residindo em sítios ou fazendas, às margens de inúmeros rios, lagos e igarapés, longe das povoações, às quais retornavam somente por ocasião das festas religiosas. Ficavam, portanto, de fora do censo.

Com todas as deficiências e incompletudes, os levantamentos do séc. XIX e os censos nacionais posteriores constituem a fonte mais útil e confiável de dados demográficos. Eles funcionam para o pesquisador como o jogo do Lego, que permite realizar múltiplas combinações e, a partir de dados fragmentados, atribuir a eles sentidos.

Que venha o Censo de 2020 e que nos traga um retrato mais completo do Brasil, documentando a diversidade aqui existente. Rezamos para que a barbárie dominante não produza um censo fake. O capital e o mercado precisam de informações fidedignas para se reproduzir.

P.S. – Esta crônica já havia sido enviado ao Diário do Amazonas, quando soubemos do falecimento do linguista Bartomeu Meliá, um jesuíta catalão que se guaranizou. Ele ocupará o espaço da próxima coluna.  

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