Povos indígenas podem nos ensinar muito sobre o poder materno divino. Artigo de Christine Schenk

IHU On-Line

“Somos chamados a viver em harmonia – e a reconhecer que não estamos apenas na terra, mas também somos da terra. Como Jesus, somos sustentados por um Deus maternal cuja energia íntima e sagrada traz esperança, força e cura.”

A opinião é da Ir. Christine Schenk, das Irmãs de São José, mestre em Enfermagem e Teologia, cofundadora da FutureChurch, em artigo publicado em National Catholic Reporter. Seu livro recente Crispina and Her Sisters: Women and Authority in Early Christianity, foi premiado pela Catholic Press Association. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Como enfermeira parteira, devo admitir que fiquei fascinada com a escultura cuidadosamente talhada de uma mulher grávida nua e de joelhos – identificada diversamente como símbolo da mãe terra e/ou de Nossa Senhora da Amazônia – que ofendeu tanto um crítico conservador a ponto de ele mandar um cinegrafista gravá-lo enquanto pegava várias esculturas de uma igreja e as jogava no Rio Tibre.

Quanta maturidade da parte dele.

Apesar de uma abundância de evidências em contrário, esse homem mal orientado acusou os participantes do Sínodo dos Bispos para a Amazônia de idolatria. A confusão que se seguiu continua até hoje, e alguns – com um gesto para provocar medo – chegaram até a pedir orações de exorcismo.

Essa versão artística de uma figura ajoelhada e reverente retrata uma criança no ventre da mulher – daí a sua identificação com Maria, a mãe de Jesus.

O padre missionário Roberto Carrasco Rojas, que atua no Peru, disse à New Evangelization Television que os povos indígenas reverenciavam a arte como “Nossa Senhora da Amazônia”, porque “a Amazônia é uma mulher, ela é feminina, ela tem um rosto feminino. Por quê? Porque a terra é mãe, a terra dá vida. Então, isso é a Amazônia”.

Foi a nudez do corpo feminino grávido que incomodou os críticos conservadores de Francisco? Se foi isso, esses meninos (literalmente) precisam cuidar da sua vida. Por que alguém que é supostamente pró-vida tentaria destruir um retrato artístico de uma mulher nua e lindamente grávida?

Há muita dissonância cognitiva aqui, o que, a meu ver, aponta para um profundo desconforto em associar o sagrado com os corpos femininos, até mesmo – como nesse caso – o corpo de Maria representado de uma forma artística compreensível para os povos amazônicos.

Os detratores do Sínodo acusaram os cristãos indígenas de adorarem a deusa feminina inca dos Andes, a Pachamama. De acordo com um blog da comunidade da Abadia de Saint-Cyran-en-Brenne, os Andes não fazem parte da bacia amazônica, e esse culto é predominante na região amazônica, onde a palavra “pachamama” significa simplesmente mãe terra, semelhante ao uso em outras partes do mundo.

No entanto, mesmo que Maria estivesse associada à deusa Pachamama, não seria a primeira vez que o cristianismo se apropria de imagens do feminino sagrado das culturas vizinhas.

Por exemplo, como observa a teóloga e irmã Elizabeth Johnson, das Irmãs de São José, em seu livro seminal de 1989 intitulado “Mary and the Female Face of God” [Maria e o rosto feminino de Deus] (Nota de IHU On-Line: o livro pode ser encontrado, em português, nas Edições Loyola), não é por acaso que a proclamação do século IV de Maria como Theotokos – portadora de Deus – foi proclamada em Éfeso, local de um grande templo à deusa grega Ártemis (chamada pelos romanos de Diana), onde milhares de peregrinos haviam prestado culto durante séculos.

Mais perto do nosso tempo, temos o exemplo de Nossa Senhora de Guadalupe – um evento cientificamente inexplicável em que um simples índio nahua (hoje santo), Juan Diego, encontrou-se com uma jovem mestiça. Vestida com roupas reais astecas decoradas com pictogramas, ela falou com ele na língua nativa Nahuatl e se apresentou como “a mãe do único Deus verdadeiro por quem se vive”.

Ela pediu que Juan dissesse ao bispo local para construir uma pequena casa no lugar que (como ocorreu) também é o local de um antigo templo dedicado a Tonantzin, a virgem mãe asteca dos deuses. Mas o bispo disse a Juan que precisava de provas.

Após outro encontro com a bela dama, uma imagem milagrosa da mestiça real Maria foi impressa na simples capa de Juan – uma imagem ainda preservada e venerada na Cidade do México até hoje, para a qual os cientistas não conseguem encontrar uma explicação.

Na cosmovisão asteca, a perfeição divina sempre incluía elementos masculinos e femininos. Era impossível para os povos astecas se relacionarem com o deus sempre-totalmente-homem adorado pelos conquistadores espanhóis. Pior ainda, a população indígena devastada do México acreditava que seus deuses a haviam abandonado.

De acordo com o livro “Our Lady of Guadalupe” [Nossa Senhora de Guadalupe], de Jeanette Rodriguez, “historiadores seculares e religiosos nos dizem que a população indígena passou de 20 milhões para 2 milhões no século XVI como resultado de disputas entre os diversos grupos indígenas, das doenças encontradas através do contato europeu e, é claro, da perturbação e da devastação da conquista [do México pela Espanha]”.

Após a surpreendente aparição ocorrida em 1531, um grande número de astecas se converteu ao cristianismo. A santa mulher de Guadalupe deu à luz o México moderno e sua fusão de culturas indianas e espanholas. Mais ainda, essa “mãe do único Deus verdadeiro por quem vivemos” trouxe esperança, compaixão e cura a um povo indígena em desespero.

A devoção a Maria, mãe de Jesus, floresce em toda a América Central e do Sul até hoje. Como observou Johnson em seu ensaio mencionado acima:

“O culto de Nossa Senhora de Guadalupe não é simplesmente um canal para um imaginário feminino de Deus pertencente a uma antiga religião agora desaparecida. Ao contrário, em sua atual eficácia como veículo de experiência religiosa, esse culto medeia a realidade compassiva de Deus na forma de uma mulher. A figura de Guadalupe é um locus vivo de um imaginário feminino do divino.”

Isso nos leva de volta à Pachamama.

Em um artigo apresentado no Simpósio de Estudos Liberais de Pós-Graduação em 2017, Lynette Yetter explorou o sincretismo da Virgem Maria e da Pachamama nas origens da Bolívia colonial. Nos Andes, a imagem da Virgem Maria se combinaria com a representação andina do feminino divino, a Pachamama:

“A Pachamama era a mãe terra, assim como a mãe da terra. A Pachamama era a paisagem senciente e também mãe de todo o continuum espaço-temporal, que, sem sua totalidade, se manifestava como um microcosmo contendo o macrocosmo e vice-versa. Essa cosmovisão continua até hoje, em que todos compartilham a mesma matriz de substância animada, são imbuídos de uma força vital comum, que pode ser chamada de Pachamama. (…) O culto à Pachamama [no fim, Maria] não era nem hierárquico nem contraditório: era um assunto de família focado na manutenção de relações harmoniosas.”

A nossa experiência cristã do Espírito Santo pode ressoar com a experiência andina de uma “matriz de substância animada (…) imbuída de uma força vital comum”.

As pessoas que vivem perto da terra têm muito a nos ensinar sobre como viver em harmonia com um mundo fraturado e amado por Deus, que, nas palavras do Papa João Paulo I, é “nosso papai; mais ainda, é mãe”.

A compaixão pelo povo da terra está intimamente ligada ao Natal. A festa da encarnação celebra a unidade entre céu e terra, como revelada em Jesus Cristo, nascido da mulher Maria.

Essa unidade encarnacional parece especialmente bem compreendida pelos povos indígenas, que têm muito a nos ensinar sobre o poder materno divino que permeia o nosso planeta.

Nós também somos chamados a viver em harmonia – e a reconhecer que não estamos apenas na terra, mas também somos da terra. Como Jesus, somos sustentados por um Deus maternal cuja energia íntima e sagrada traz esperança, força e cura.

Esculturas de madeira resgatadas das águas poluídas do Tibre. Foto: Aloir Pacini e Paulo Tadeu Barausse

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